domingo, 28 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Setor privado desmente arautos do intervencionismo

O Globo

Com investimentos estimados em R$ 170 bilhões, empresas privadas se tornam solução para infraestrutura

Os investimentos estimados para este ano e os próximos em infraestrutura deverão somar pelo menos R$ 170 bilhões. O destaque, ao contrário do que imaginam os arautos do novo intervencionismo estatal, é a iniciativa privada. Sem ela, estradas continuariam em decrepitude, linhas de transmissão de energia não existiriam, portos deixariam de ser ampliados, e o saneamento básico se manteria no estado de indigência em que esteve nas últimas décadas.

Ao mesmo tempo que anunciou investimentos de R$ 300 bilhões numa nova versão de política industrial — cujos detalhes têm despertado inquietação —, o BNDES elabora no momento a modelagem de 138 concessões e projetos de Parceria Público-Privada (PPP), segundo levantamento do GLOBO. Ao todo, eles podem significar obras no valor de R$ 268 bilhões.

A carência brasileira em infraestrutura representa uma enorme oportunidade de negócios. Investimos abaixo de 2% no setor, ante necessidade de mais de 4% ao longo de 25 anos, segundo cálculos da consultoria Inter. B. Mas tudo depende da regulação. Em vez de resgatar o dirigismo estatal, a preocupação do governo deveria ser criar condições atraentes e estáveis para o capital privado poder apostar em projetos de longo prazo no Brasil.

Um bom exemplo é o saneamento. Atendendo a pressões políticas contrárias ao Marco do Saneamento Básico, o Planalto tentou atender ao pleito das empresas estaduais de água e esgoto, responsáveis há décadas pela insalubridade que castiga grande parte da população. O Congresso reagiu rejeitando as mudanças. Houve negociação, o governo obteve apenas parte do que queria, e os investidores se mantiveram interessados. Estão com o BNDES projetos de saneamento em 185 cidades de Pernambuco (estimados em mais de R$ 16,5 bilhões), 75 de Sergipe (R$ 6,2 bilhões), 48 de Rondônia (R$ 6,7 bilhões) e em Porto Alegre (R$ 5,3 bilhões). Apesar de ainda haver uma brecha aberta a municípios resistentes às concessões, o balanço final foi positivo.

A venda do controle da Eletrobras também abriu espaço ao setor privado no mercado de linhas de transmissão. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, apenas duas licitações neste ano mobilizarão investimentos de R$ 24,7 bilhões. Uma terceira prevê obras de R$ 20,5 bilhões em 6.500 quilômetros de linhões. Tais cifras confirmam que a única alternativa para arcar com as constantes e crescentes necessidades de ampliação do setor elétrico é a iniciativa privada — e desmentem o mito de que só o Estado pode conduzir grandes projetos de infraestrutura.

Apesar da resistência ideológica do governo petista às privatizações — como as do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, ou do Porto de Santos —, o Ministério dos Portos e Aeroportos mantém planos de concessão de terminais portuários que poderão somar R$ 8 bilhões em investimentos. Nas rodovias, a resistência é menor, e já existem no país operadores consolidados. A concentração de concessionárias, prevista para os próximos anos, deverá gerar empresas mais robustas, com menor necessidade de crédito subsidiado.

Esse quadro dinâmico deveria transmitir ao governo um recado simples: regras claras, estáveis e acolhedoras ao capital são mais importantes para atrair os investimentos de que o Brasil precisa — não apenas em infraestrutura — do que qualquer plano mirabolante urdido nos gabinetes de Brasília.

Lei sobre guarda de filhos deve ser aperfeiçoada, não revogada

O Globo

Apesar dos problemas no uso do conceito de 'alienação parental', vazio legal não é melhor alternativa

As ações de alienação parental, instauradas nas situações de conflito entre pai e mãe separados, multiplicaram-se por 13 entre 2014 e 2023 — de 401 para 5.152 —, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não há consenso sobre o uso da Lei da Alienação Parental (LAP), aprovada em 2010, a ponto de polos ideologicamente opostos serem favoráveis a revogá-la. Parlamentares do PSOL e do PL assinam projetos distintos contra ela. Ativistas veem na coincidência de opinião entre esquerda e direita um argumento favorável à revogação. Mas não necessariamente a solução drástica seria a melhor resposta.

Definida na lei como “interferência na formação psicológica da criança ou adolescente” por um dos genitores, a alienação parental tem sido usada como escudo de defesa de pais acusados de violência doméstica contra os próprios filhos. A LAP é frequentemente mencionada por advogados quando a mãe pede guarda unilateral a um pai a quem acusa de abusar dos filhos.

Mas, embora não haja dados oficiais do CNJ, um levantamento em 404 acórdãos de tribunais de Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo constatou que 63% das reclamações com base na LAP haviam sido feitas por pais, 19% por mães e 18% por outros responsáveis legais. Depoimentos de psicólogos da Defensoria Pública de São Paulo e do Tribunal de Justiça do estado confirmam que as mães também são atingidas pela LAP quando os pais recorrem à Justiça para ter acesso aos filhos.

Uma queixa recorrente se baseia no conceito de Síndrome da Alienação Parental (SAP), formulado pelo psiquiatra americano Richard Gardner para descrever a “lavagem cerebral” feita por um dos genitores para que haja rejeição ao outro. Gardner acusava em especial as mães de procurar afastar os filhos dos pais com base em denúncias falsas de abuso sexual. Como a tese não tem comprovação científica, as Nações Unidas pediram ao Brasil que proibisse seu uso nos processos judiciais.

Na América Latina, há leis específicas sobre o tema apenas no Brasil, no México e em Porto Rico (na Argentina há referência no Código Penal, desde 1993). Em 2022, houve alterações na lei brasileira para assegurar atendimento especializado às crianças envolvidas em conflitos. Mas elas foram insuficientes para acabar com as divergências. Em razão da alta carga emocional associada ao tema, é improvável que haja uma solução capaz de atender a todas as demandas. Melhor do que a simples revogação de uma lei que trata de assunto tão vital para as famílias é o CNJ, auxiliado por parlamentares que têm acompanhado a questão, ouvir opiniões especializadas para tentar aperfeiçoar a legislação. O vazio legal não parece a melhor alternativa.

Assédio à Vale

Folha de S. Paulo

Lula recua na ofensiva por Mantega; pior é tentar intervir em empresa privada

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encenou um recuo em sua pretensão absurda de conduzir o ex-ministro Guido Mantega a um cargo na cúpula da Vale, mas não se deve crer que cessarão as pressões do Planalto sobre a mineradora privatizada em 1997.

Mesmo sem declarações explícitas das autoridades, o movimento governista pelo nome de Mantega foi conduzido sem segredo nas últimas semanas e derrubou o valor de mercado da empresa. Na sexta-feira (26), diante da resistência de acionistas e críticas na sociedade, Brasília fez saber que a ideia indecorosa seria deixada de lado.

Por incrível que pareça, a hipótese menos ruim para a motivação de Lula é a recusa em reconhecer os fracassos, a má gestão e os casos comprovados de corrupção ocorridos nas gestões petistas anteriores —além do objetivo de recompensar pessoas que lhe foram fiéis nos seus piores momentos.

Para tanto, não importam competência ou lisura, nem as necessidades atuais do país.

No caso de Mantega, não deve haver dúvida de que o histórico é ruinoso. Como ministro, ele teve papel na degradação da política econômica que culminou, no mandato de Dilma Rousseff (PT), em um das mais profundas recessões já documentadas no país.

Não há nenhuma injustiça nessa avaliação, como quer fazer crer a presidente do PT, Gleisi Hoffman, que saiu em apoio ao ex-titular da Fazenda. Em sua defesa, no máximo se pode dizer que não tinha autoridade suficiente para influir nos desígnios da ex-presidente.

Mais grave e temerária, porém, é a rigidez ideológica de Lula e de seu partido, que continuam presos a concepções anacrônicas. Não olham para frente e buscam reescrever um passado de supostas glórias, como se a economia e a sociedade brasileira não tivessem evoluído e as necessidades atuais não fossem diferentes.

No caso da Vale há reincidência de Lula, que nos mandatos anteriores criticou a empresa por investimentos fora do Brasil e pela aquisição de bens de capital, como navios, de fornecedores estrangeiros.

Já naquela época a mineradora não era estatal, mas o governo tinha influência em sua gestão pela participação de fundos de pensão no capital e o alinhamento prévio do voto de acionistas de peso.

Hoje nem isso existe, felizmente —o capital é mais diluído, não há um bloco de controle e o conselho é independente.

Mas Lula insiste em suas teses passadistas, quando faria melhor em se preocupar com o Orçamento e medidas que atraiam investimentos. Deveria ser desnecessário apontar o despautério de um governo buscando interferir na gestão de uma companhia privada.

Hora do juízo

Folha de S. Paulo

Capaz de retroceder, relógio fictício aponta 90 segundos para fim do mundo

Em 1947, dois anos após as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, cientistas envolvidos na criação dessas armas de destruição em massa lançaram ideia criativa: um relógio fictício para marcar quanto tempo falta para o fim do mundo. Hoje, os ponteiros indicam 90 segundos para o Juízo Final, a pior situação em 77 anos.

A estimativa resulta de uma avaliação do contexto global feita pelo Conselho de Ciência e Segurança da organização Boletim de Cientistas Atômicos, fundada em 1945 por Albert Einstein e J. Robert Oppenheimer, entre outros.

Os ponteiros não se moveram em 2024, embora a análise do grupo tenha delineado que a situação do planeta piorou em relação a 2023.

A guerra na Ucrânia, com risco de uso de armas nucleares pela Rússia, completou dois anos e não dá sinais de arrefecer. Bombas atômicas, ainda que táticas, não ficariam sem resposta da Otan.

Outra conflagração veio agravar a possibilidade de um conflito amplo: a de Israel contra o Hamas, que perpetrou o ataque terrorista contra de civis israelenses em 7 de outubro. A retaliação impiedosa na faixa de Gaza pode arrastar nações do Oriente Médio.

Preocupa o envolvimento do Irã e seu programa de enriquecimento de urânio. E não se descarta nova corrida armamentista, em especial com Rússia e EUA a discordar sobre tratados de controle nuclear.

O boletim aponta ainda a mudança de patamar na crise do clima, com 2023 alcançando a marca de ano mais quente já registrado —pior, sem indicações de que governos comecem a dar passos mais decididos para contra-arrestar o aquecimento global.

Assinala uma boa notícia com o investimento de US$ 1,7 trilhão em energia limpa no ano passado. Contudo ressalva que se destinou outro US$ 1 trilhão para combustíveis fósseis, cuja queima segue em alta, quando precisaria retroceder 43% nos próximos seis anos.

Outro perigo arrolado é o avanço de técnicas de manipulação genética, que podem servir a armas biológicas e gerar novas pandemias.

Por fim, indicia a inteligência artificial, por seu potencial para disseminar desinformação e assim erodir a governança capaz de administrar crises, além do potencial uso militar de armas autônomas, alheias a controle humano.

Se há algo a propiciar alento, o Relógio do Juízo Final é capaz de retroceder, como já fez em outros momentos da história.

Remendo novo em roupa velha

O Estado de S. Paulo

Economista que inspirou o novo programa industrial defende ‘Estado empreendedor’ e se tornou a musa dos desenvolvimentistas, certamente por propor solução fácil para problema complexo Economista italiana que defende “Estado empreendedor” vira “musa”.

Os desenvolvimentistas têm uma nova musa. Ao lançar sua “Nova Indústria Brasil”, o governo de Lula da Silva destacou o trabalho da economista italiana Mariana Mazzucato como fonte de inspiração. “Musa” é um pouco mais que metáfora. Segundo a própria Mazzucato, seu livro seminal, O Estado Empreendedor, é uma “batalha discursiva”. A escassez de dados é tão notória quanto seu diagrama mostrando que tudo o que há de importante no iPhone foi uma dádiva dos governos. Seu talento é contar histórias mostrando o sucesso do envolvimento do Estado em grandes inovações.

O senso comum liberal é que a iniciativa privada cria as inovações e o crescimento que financiam o setor público, mas para Mazzucato é o contrário: através de missões “ousadas e inspiradas”, políticos carismáticos e burocratas visionários apontam o caminho para resolver grandes problemas e financiam as tecnologias que, depois, são empregadas pelas empresas privadas para comercializar produtos lucrativos.

A crise financeira de 2008, as tensões geopolíticas, o crescimento da China e a pandemia parecem justificar essa narrativa. Políticas industriais e protecionistas se popularizam entre estatistas à esquerda e nacionalistas à direita como condição para criar empregos, dominar mercados e vencer rivalidades geopolíticas.

No entanto, essa epopeia do Estado empreendedor é obviamente uma falácia. As evidências de Mazzucato são exageradas e anedóticas. Os casos de sucesso são selecionados a dedo, negligenciando a proporção muito maior de fracassos.

Enquanto o anarcocapitalista Javier Milei, presidente argentino, exagera ao dizer que não existem “falhas de mercado”, Mazzucato peca pelo excesso oposto, como se não houvesse “falhas de Estado”. “Não são levados em conta problemas de economia política e dificuldades no processo de escolha pública que resultam em problemas como corrupção, captura das políticas públicas, resistência a mudanças e ineficiência decisória”, resumiu Marcos Mendes numa crítica a O Estado Empreendedor publicada no site do Insper. “Tampouco se considera a importância da capacidade de governança pública, e o fato de que mais de 90% da população vive em países com governos de baixa capacidade técnica e operacional.”

O problema de fundo é uma visão ingênua de como funciona a inovação. “Grandes rupturas nunca vêm de planos de governo ou gênios solitários, mas da efervescência de ecossistemas intelectuais com a constante fertilização cruzada entre diferentes disciplinas e atividades”, notou o economista Johan Norberg, ao sumariar a história da tecnologia traçada por Matt Ridley no livro Como surgem as inovações. “Elas se sustentam em uma complexa rede de colaborações, surpresas, inspiração e improvisação.”

O “milagre econômico” chinês poderia contradizer essas ideias. Mas o crescimento dos anos 1980 aos anos 2000 começou precisamente com a liberalização quase acidental em pequenas comunidades rurais, depois abraçada por Deng Xiaoping para o comércio e a indústria e impulsionada por uma forte urbanização e investimentos em educação. Na última década, porém, o medo de Xi Jinping de que a liberalização econômica incite a liberalização política tem motivado intervenções agressivas que estão exaurindo essas condições.

Há muitas iniciativas do Estado brasileiro que estimulariam as condições de inovação e crescimento, como mais segurança jurídica, burocracia eficiente, infraestrutura e, sobretudo, educação e pesquisa. O País nunca teve uma “política agrícola” com “missões” grandiloquentes como as das inúmeras “políticas industriais” que resultaram em voos de galinha e deixaram um rastro de corrupção, ineficiência, dívida e inflação. Mas o investimento estatal nas pesquisas da Embrapa foram cruciais para o espetacular crescimento do agro.

Uma política industrial realmente nova buscaria assimilar essas lições e remover as barreiras que tornam o ambiente de negócios do Brasil um dos mais inóspitos do mundo. Mas, tal como está, a “Nova Indústria Brasil”, por mais sedutor que seja o canto da sereia de Mazzucato, é só remendo novo em roupa velha.

Enquanto o futuro não chega

O Estado de S. Paulo

Projeção de exportação recorde de petróleo em 2024 é aviso prático de que é possível trabalhar pela transição energética sem desperdiçar a demanda imediata por combustível fóssil

O Brasil pode colher um valor recorde com a exportação de petróleo bruto em 2024, informou reportagem do Estadão, com base na projeção da Associação de Comércio Exterior do Brasil. As vendas devem atingir 83 milhões de toneladas e somar mais de US$ 43 bilhões, rivalizando com a soja e o minério de ferro na liderança da pauta brasileira. Caso a projeção se confirme, será o desempenho mais robusto da história, não obstante os números sejam passíveis de revisão ao longo do ano, sujeitos a questões geopolíticas e consequente variação na cotação do preço do barril. O protagonismo do petróleo, sugerem especialistas, tem tudo para se consolidar até 2030, quando a extração do présal começará a perder força.

Tamanha expectativa pode estremecer os corações ambientalistas mais empedernidos e parecer fora de lugar para muita gente envolvida no debate da transição energética e climática – sem a qual o mundo seguirá mergulhado na dependência dos combustíveis fósseis e seus riscos inerentes. Mas os números projetados não só reforçam outros alertas já emitidos por países produtores, como reafirmam o que deveria ser uma preocupação nacional, já sublinhada aqui: não há lugar para o petróleo nas matrizes energéticas do futuro, mas no presente e no horizonte do curto prazo, gostemos ou não, ele ainda é o maior combustível do crescimento econômico. Desperdiçá-lo será um grande erro.

Dessa constatação derivam outras, especialmente relevantes neste momento-limite para a tomada de decisão que definirá a posição que o Brasil ocupará ao fim da transição energética. A primeira delas é que, por se tratar de empreitada complexa, a transição requer não um estalar de dedos movido por uma providencial “vontade política”, e sim esforço, planejamento e execução de longo prazo. Serão anos, ou mesmo décadas, de iniciativas que, ao fim do processo, não resultarão propriamente na extinção da geração fóssil, sobretudo porque nenhuma modalidade exibe condições, sozinha, de responder ao crescimento da demanda mundial por energia. Estimativas sugerem que a procura global por energia aumentará 23% até 2045. Renunciar a qualquer modelo de produção é contratar uma crise energética futura.

Em segundo lugar, o mundo ainda enfrenta alta dependência de petróleo. Isso significa que um desinvestimento acelerado pode causar sérios problemas à economia global. Exigências de descarbonização da atividade de exploração, produção e refino são mais plausíveis do que a mera pregação pela interrupção dos trabalhos exploratórios em novas jazidas, como se viu no debate do ano passado em torno da Margem Equatorial. Essa é uma das razões que levam muitos especialistas e representantes dos países exportadores de petróleo a defender que fortes investimentos em energia renovável sejam acompanhados de outros, igualmente intensos, na exploração de petróleo.

A terceira ponta da história diz respeito à singularidade brasileira. De um lado, o País tem a vantagem de abrigar volumosos reservatórios de petróleo em áreas marinhas ultraprofundas, com expertise para explorá-las com segurança e ao menor custo. É também um mercado promissor na produção de hidrogênio verde, avança na geração eólica e solar e tem condições de planejar o desenvolvimento em diversas frentes energéticas. Se combinar esse potencial duplo, pode não só evitar a dependência da importação de petróleo e derivados, como oferecer sua contribuição para mitigar os efeitos da crise climática, além de tornar menos poluente a geração fóssil. E o fundamental: os próprios recursos gerados pelo petróleo podem ajudar a financiar o elevadíssimo custo da transição.

Até que esse ciclo se complete, o Brasil não pode ignorar o fato de que a era do petróleo ainda parece longe do fim. Nem a indústria de petróleo e gás deve ser vista como vilã da transição nem pode servir de esteio para alimentar a insegurança energética e uma provável desestabilização das economias. Isso não significa resignar-se à maldição dos recursos naturais, tampouco abrir mão do planejamento cuidadoso de longo prazo. Imediatismo, afinal, não combina com transição.

Tombamento que arruína

O Estado de S. Paulo

Se a ordem de proteger o patrimônio acelera sua destruição, o processo precisa mudar

A iminente demolição do “casarão das muletas”, como ficou conhecido um palacete do bairro Bela Vista, um dos mais tradicionais do centro de São Paulo, é a imagem do desprezo pela preservação histórica e cultural. Longe de ser um caso isolado, a degradação posterior ao tombamento, em especial de imóveis particulares, tem sido uma constante nas últimas décadas em grandes centros, regiões turísticas e cidades históricas pelo Brasil afora.

O caso do palacete paulistano, com suas vigas de sustentação que mal equilibram uma estrutura que ameaça desabar a qualquer momento – e já condenada pela Defesa Civil –, é apenas mais um exemplo extremo do descaso. Não é difícil encontrar outros pelas ruas do Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, na própria São Paulo e outras capitais brasileiras. A lista seria interminável. E é justamente essa recorrência que suscita um olhar mais atento para o descaso que já se tornou lugar-comum.

Tombamento é o instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural mais conhecido, como nos ensina a descrição apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Pode ser determinado tanto pelo governo federal quanto por Estados e municípios, e o que se espera com a decisão é que aquele bem, de excepcional valor, seja conservado para que sirva de legado às gerações futuras. Por óbvio, para isso é preciso manter em tutela contínua o estado de preservação.

Ora, tome-se como modelo o tal casarão que, literalmente, tomba um pouco mais a cada ano. Desde que a resolução do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio de São Paulo o incluiu no elenco de bens tombados, em dezembro de 2002, sete prefeitos, dos mais diversos matizes político-partidários, passaram pelo Edifício Matarazzo. Ao longo desses 21 anos, não se constatou qualquer sinal de efetiva e produtiva fiscalização. O que houve foram paliativos, como a instalação de escoras de ferro, um toldo plástico para esconder a deterioração e mais vigas, desta vez de madeira. E, agora, afinal, a demolição foi anunciada, porque a casa se tornou irrecuperável.

Quando os tombamentos rumam para resultados totalmente opostos ao seu fim, que é justamente o de evitar a destruição, é sinal de que é preciso reformular o processo. No caso dos imóveis particulares, não raro a ordem de proteção é mal recebida pelos proprietários, que veem na medida um engessamento de seu patrimônio, tanto pelas exigências em relação a quaisquer alterações ou reformas quanto pela desvalorização imobiliária que costuma ocorrer.

Negociações sobre eventuais desapropriações poderiam ser a solução mais justa e adequada para esses casos. O “casarão das muletas”, que já pertenceu a uma das tradicionais famílias paulistanas, é hoje propriedade de uma empresa que não cumpre sequer com a obrigação do pagamento de impostos. Em casos assim, cabe ao poder público pleitear os imóveis. Por vezes, a deterioração é intencional, para aproveitar do terreno depois da ruína.

Em resumo, é preciso que haja revisão do processo de tombamento e a fiscalização posterior, para que o patrimônio a ser preservado realmente o seja. 

O mundo em uma encruzilhada

Correio Braziliense

Qualquer descuido pode ser fatal para o regime democrático, que, mesmo com todas as suas imperfeições, é o único que garante o poder de escolha a cada um e a liberdade de se expressar e de ir e vir

A democracia enfrentará seu principal teste neste ano, que terá o maior ciclo eleitoral da história. Mais de 70 países, reunindo metade da população mundial, decidirão, nas urnas, que rumo seguirão. Há uma enorme preocupação em todo o planeta com o forte crescimento de movimentos populistas, sobretudo, o representado pela ultradireita. Integrantes desse espectro político têm incentivado o que há de pior para a humanidade: o ódio, a intolerância, o preconceito, a violência. Com um discurso simplista e de fácil compreensão, travestido de conservador, têm cooptado apoio em todas as camadas sociais. Um perigo.

Na Alemanha, a extrema direita já ostenta entre 23% e 24% dos votos, tendo como principal plataforma a expulsão de todos os imigrantes africanos, inclusive daqueles com nacionalidade. O argumento entoado pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD) é o mesmo usado por Adolf Hitler, de purificação da raça branca. Chama a atenção o grande engajamento de jovens a esse movimento radical. Em Portugal, os grupos extremistas marcaram para 3 de fevereiro uma manifestação contra os estrangeiros de origem islâmica. Nas convocações por meio das redes sociais, os organizadores recomendam aos participantes que levem tochas e chicotes para "queimar e escorraçar aqueles que atentam contra os valores europeus".

A Europa terá, em junho, eleições para o Parlamento. Serão escolhidos 720 representantes dos 27 países que integram a União Europeia. Em nenhum outro momento deste bloco a extrema direita reuniu tanta força para formar uma bancada. Os radicais já assumiram o poder na Itália, na Suécia, na Finlândia e na Holanda. Estão próximos de retomarem o governo da Áustria. Conquistaram espaços importantes na Bélgica e podem surpreender na França. O risco de implosão do bloco construído nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial é latente, com os neonazistas ganhando espaço e conquistando corações e mentes.

Nos Estados Unidos, o quadro é semelhante. O republicano Donald Trump tem chances expressivas de retornar à Casa Branca nas eleições marcadas para 5 de novembro. Quem se deu ao trabalho de ouvir os discursos dele nas últimas semanas, em que ele disse que o presidente da República deve ter imunidade para tudo, inclusive para aniquilar seus inimigos, entendeu o caminho que a maior potência global pode seguir caso ele seja eleito. Do outro lado do mundo, sem opositores, Vladimir Putin irá para o quinto mandato, num pleito completamente fake, como se a democracia fosse uma realidade na Rússia.

O Brasil, com as eleições municipais, se insere nesse contexto em que a ultradireita poderá escalar vários degraus no jogo político. O que a maioria dos eleitores decidir para as mais de 5,5 mil prefeituras terá enormes reflexos na disputa presidencial daqui a dois anos. O país já deu claros sinais de que o conservadorismo arcaico se enraizou na sociedade, alimentado pela desinformação. Não tem sido diferente em outras regiões do planeta, que enfrentam o desafio de regular a inteligência artificial, usada para destruir reputações e disseminar o ódio.

Os cerca de 4 bilhões de cidadãos que irão às urnas neste ano enfrentarão eleições marcadas pela transparência, pela coação, pela falta de liberdade e pela ausência de oposição. É fundamental que a maioria democrata prevaleça. Dados mais recentes apontam que, atualmente, há mais autocracias no mundo do que regimes em que as liberdades são conquistas da sociedade. Mais: o ano passado foi de recorde na África em golpes de Estado perpetrados por militares.

Tudo isso comprova que qualquer descuido pode ser fatal para o regime democrático, que, mesmo com todas as suas imperfeições, é o único que garante o poder de escolha a cada um e a liberdade de se expressar e de ir e vir. Que o bom senso seja o grande vencedor neste que será o maior exercício de participação política da humanidade em um único ano.

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