- Valor Econômico
A falta de legitimidade tira a funcionalidade da democracia e isso anima movimentos totalitários à direita e à esquerda
As novas projeções demográficas do IBGE, divulgadas na semana passada, trouxeram boas notícias, como a contínua alta da esperança de vida ao nascer. Por outro lado, confirmaram o quadro desafiante para áreas como a saúde, onde as despesas continuarão subindo rápido, já que são bem maiores para os idosos, e a assistência à terceira idade, pela queda do número de familiares jovens por idoso.
A notícia mais marcante, porém, foi a antecipação em cinco anos do fim do bônus demográfico - a diferença entre as taxas de crescimento das populações em idade ativa e total. Para a previdência, será um complicador adicional, já que mostra uma queda ainda mais acelerada na razão entre o número dos que contribuem para o sistema e o daqueles que dele recebem benefícios. Também significa que, tudo o mais constante, o PIB per capita vai crescer menos no futuro. Primeiro, porque o número de pessoas em idade laboral por habitante vai cair, em vez de subir, como nas últimas décadas. Segundo, pois a taxa de poupança deve diminuir, já que idosos e crianças poupam menos do que aqueles em idades intermediárias, cuja proporção na população vai cair.
A mudança é significativa. No período pós-1980, o aumento da população ocupada por habitante respondeu por 0,5 ponto percentual (pp) da alta média de 0,7% ao ano na renda per capita, com o outro 0,2 pp vindo do aumento da produtividade do trabalho. Com o primeiro componente desaparecendo e o segundo diminuindo, daqui para a frente, na média, o PIB per capita deve ficar quase estagnado.
Obviamente, o grande "se" é se tudo mais de fato ficará constante. Afinal de contas, o que o Brasil precisa fazer para resolver o problema da previdência e crescer mais rápido é bem conhecido. E, do ponto de vista técnico, não são reformas difíceis de implementar. A questão é que o diagnóstico e o receituário de reformas também já são conhecidos há muito tempo. E nem por isso avançamos.
Há diferentes explicações possíveis para essa inércia. Uma delas é que os não-economistas não entendem bem o porquê desses problemas e das reformas. A solução seria, portanto, insistir em divulgar diagnósticos e propostas de reformas. Eu simpatizo com essa visão, mas não creio que esteja na raiz do problema: afinal, em nenhum país do mundo o eleitor mediano entende dessas coisas e dificilmente isso ocorrerá no Brasil.
Outra possibilidade é que a maioria das pessoas não confia que as reformas serão feitas de forma a beneficiá-la e prefere não arriscar. Haveria, nesse caso, uma dissonância entre o que quer (parte do) segmento mais rico, mais influente, mais escolarizado, mais globalizado, que nos compara a outros países e pede mudanças, e o grosso da população. O problema não seria falta de conhecimento, mas de confiança.
Há também quem considere que o baixo crescimento e as crises recorrentes são um resultado inexorável da democracia. Com a redemocratização e o crescente "empoderamento" de grupos antes excluídos da cena política, os conflitos de interesse se aguçaram e teriam se tornado impossíveis de administrar. Repare, essa não é uma crítica à democracia, mas uma visão de que esta e o bom desempenho da economia são desejáveis, mas irreconciliáveis.
Eu sempre discordei dessa interpretação, pois há vários países onde democracia e crescimento convivem sem problema. No meu entender, o problema está mais na falta de funcionalidade da democracia brasileira. Esta visão foi reforçada nos últimos tempos pelo diagnóstico em torno da perda de funcionalidade da democracia em vários outros países, inclusive desenvolvidos, como exemplificariam o Brexit e as eleições de Trump, Duterte, Erdogan e outros.
Em seu livro "Ruptura" (Ed. Zahar), Manuel Castells defende que a democracia liberal está em crise, fruto da perda de legitimidade das elites políticas: "Aposta-se no surgimento dessa nova ordem, de uma nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos". Esse também me parece ser o caso no Brasil, onde se observa enorme perda de credibilidade das instituições.
As origens dessa falta de legitimidade no Brasil diferem daquelas nos países analisados por Castells, ainda que haja paralelos, como a desigualdade de renda, os escândalos de corrupção e a percepção de captura das instituições pelas elites. Mas a conclusão de que a falta de legitimidade tira a funcionalidade da democracia vale nos dois casos, assim como a de que isso anima movimentos totalitários, à esquerda e à direita, como no passado.
Isso me parece crítico, pois, à véspera das eleições, é fundamental que as elites brasileiras - políticas, midiáticas, empresariais etc - percebam que o processo de reformas só virá se for entendido como legítimo pela população, e para isso ele precisa ser apresentado e defendido pelos candidatos. Claro, isso torna a campanha mais difícil, mas sem isso é ilusão achar que algo de significativo mudará a partir de 1º de janeiro.
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Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor do IE/UFRJ.
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