Revista Política Democrática Online (52ª edição)
Voto
da maioria dos brasileiros pobres veio carregado de expectativas de
prosperidade, inclusão e equidade
Após
um início tormentoso de governo, a agenda política tende a retornar a um curso
de relativa normalidade. Forma-se, aos poucos, um calendário de batalhas
legislativas, nas quais o governo deverá jogar suas forças e recursos no
propósito da aprovação das proposições, a efetivação concreta de sua agenda
programática.
Por enquanto, o ponto culminante desse calendário em construção é a reforma tributária, em suas diversas etapas, que alguns pretendem, numa visão otimista, ver equacionada até o final do ano. Há motivos fortes para essa prioridade. As duas vertentes da proposta de reforma, a simplificação e transparência, de um lado, e a progressividade, de outro, são os atalhos para avançar, de forma rápida e eficiente, no coração das promessas de campanha do governo: prosperidade, inclusão e equidade. Afinal, o voto da maioria dos brasileiros pobres, nos dois turnos de 2022, veio carregado dessas expectativas.
No
caminho, contudo, estão os obstáculos de sempre. Partidos divididos, nomeações
que não resultam em votos de deputados e senadores, tentativas de barganhas que
beiram, às vezes podem mesmo exceder, os limites da razoabilidade e da
moralidade pública.
Não
é difícil antever o tamanho dos problemas políticos que podem se avolumar numa
situação como essa. A sociedade permanece marcada pelas denúncias de corrupção
que emergiram nos escândalos sucessivos conhecidos como mensalão e petrolão.
Esse poderá vir a ser, portanto, o flanco vulnerável do governo e o caminho
preferencial a ser seguido pela oposição bolsonarista, se encontrar condições
para tanto.
Nas
condições presentes, há dois caminhos para lidar com os problemas postos pela
construção e manutenção de coalizões majoritárias governistas no Legislativo. O
primeiro deles aposta nas qualidades de liderança e negociação do presidente da
República e de seus operadores políticos. Esse caminho, a aposta na
experiência, na sensibilidade política e na capacidade de diálogo, foi aquele
anunciado pelo candidato Lula na campanha e seguido até agora.
No
entanto, esse caminho é complexo, custoso, de resultados incertos. A qualquer
momento, portanto, o segundo caminho poderá fazer novamente sua entrada no
debate político, do qual é, até agora, o grande ausente. Trata-se de avançar na
reforma política, ir além das medidas, exitosas até agora, tomadas para reduzir
o número de partidos políticos com representação no Congresso Nacional.
Nesse
caso, seria necessário debater o próprio sistema eleitoral, as desigualdades de
representação dos brasileiros de diferentes estados, a responsabilidade dos
representantes perante partidos e eleitores, toda uma pauta, enfim, que
retorna, periodicamente, desde 1988, ao centro da agenda política do país.
Lula precisa condenar ditadura na Nicarágua
O Globo
Diplomacia do Brasil demorou a reagir. A
voz do presidente teria outro peso na luta pela democracia
É conhecida a tolerância — para não dizer
apoio — dos governos petistas a ditaduras tidas como “amigas”. Na América
Latina, isso tem se traduzido na inexplicável vista grossa para os crimes
cometidos pelos governos de Cuba, Venezuela e Nicarágua. É notável, por isso, a
volta-face da diplomacia brasileira em relação ao regime nicaraguense. Demorou,
é verdade, mas, se a guinada representar mesmo mudança de rumo, merecerá
aplauso.
Na reunião do Conselho de Direitos Humanos
da ONU, em Genebra, o representante brasileiro, Tovar Nunes, registrou pela
primeira vez preocupação “com o relato de sérias violações dos direitos humanos
e restrições ao espaço democrático naquele país [Nicarágua], particularmente execuções
sumárias, detenções arbitrárias e tortura contra dissidentes políticos”.
Governos de diversas inclinações
ideológicas — como Argentina, Uruguai, Colômbia, Chile, Equador ou México — já
haviam aceitado acolher nicaraguenses cuja cidadania foi cassada pela ditadura
de Daniel Ortega e sua mulher, a vice Rosario Murillo — medida arbitrária
destinada a perseguir opositores. Agora, e só agora, o Brasil também se juntou
ao grupo.
A decisão é significativa porque, ainda na
semana passada, o Brasil se recusou a assinar, como fizeram 54 países, uma
declaração condenando os crimes cometidos pela ditadura nicaraguense. E também
porque o vínculo de Ortega com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é antigo.
Em 1980, Lula visitou Ortega, então líder da Revolução Sandinista que depôs o
ditador Anastasio Somoza em 1979. Derrotado nas eleições de 1990, Ortega voltou
ao poder em 2007. Por meio de reformas constitucionais, interveio no
Judiciário, no Legislativo, mudou o sistema eleitoral e se consolidou como
ditador. Tem perseguido adversários com violência e prisões arbitrárias. Na
prática, tornou-se um clone de Somoza.
Entre as vítimas do regime de exceção está
a estudante de medicina brasileira Raynéia Lima, assassinada em 2018 em
Manágua. O assassino confesso está livre e, de acordo com organizações humanitárias,
recebe salário do governo. A Igreja Católica é um dos principais alvos da
ditadura. Pelo menos 11 padres já foram presos. Ortega também tem cassado a
cidadania de adversários. No início de fevereiro, deportou 222 presos políticos
com perda de cidadania, sob a acusação de “traição à pátria”. Há três semanas,
voltou a tornar apátridas outros 94 opositores.
“Lula conhece muito bem a Nicarágua, e isso
torna o seu silêncio ainda mais difícil de entender”, afirmou ao GLOBO o
escritor e ex-líder sandinista Sergio Ramírez, hoje exilado na Espanha. Ele
lembra a participação de Lula num Congresso da Frente Sandinista depois da
derrota de 1990: “Naquele momento, em que discutíamos se nossa frente deveria
fazer um giro autoritário, o discurso de Lula foi a favor da democracia”.
Ortega era contra.
Lula sabe que a Nicarágua não resgatará a
democracia sem pressão externa. O Itamaraty se pronunciou em Genebra, mas falta
o peso do presidente no repúdio à ditadura. Ele tem de ser coerente não apenas
com o que falou décadas atrás, mas também com sua atitude de respeito às
instituições e à Justiça no Brasil. Lula liderou uma coalizão contra o risco
autoritário representado por Jair Bolsonaro e foi alvo de uma tentativa de
golpe no início do governo. Como democrata, não pode mais ter nenhuma
tolerância com “ditadores amigos”.
Além de coibir a filtragem racial, cabe ao
STF julgar porte de drogas
O Globo
Tribunal discute validade de provas usadas
para condenar homem considerado suspeito pela cor da pele
Em maio de 2020, a Polícia Militar paulista
prendeu em Bauru Francisco Cícero dos Santos Júnior, com 1,53 grama de cocaína.
Não por causa de uma investigação sobre drogas, mas por ele ter chamado a
atenção dos policiais pela cor da pele. Os próprios agentes disseram que o
julgaram suspeito por ser negro. Francisco terminou condenado por tráfico,
apesar da quantidade ínfima de cocaína que levava. Não é novidade que diversos
Franciscos, presos em razão da cor e condenados por delitos tratados noutros
países como contravenção ou caso de saúde, contribuem para a superlotação das
penitenciárias brasileiras.
Graças a um recurso da Defensoria Pública,
o STF começou a julgar a validade de provas obtidas por meio de visão
preconceituosa e discriminatória da cor do acusado, chamada “perfilamento
racial” ou “filtragem racial”. Para os defensores, as provas obtidas assim
deveriam ser consideradas ilícitas. Não será um julgamento com repercussão
geral, que estabelece jurisprudência, mas certamente servirá de referência a processos
similares.
Por enquanto, apenas o relator, ministro
Edson Fachin, votou por invalidar as provas contra Francisco. Os ministros Dias
Toffoli, Alexandre de Moraes e Nunes Marques seguiram a divergência aberta pelo
ministro André Mendonça, que considerou inválidas as provas obtidas em
abordagem discriminatória, mas não viu evidência de perfilamento racial no caso
específico de Francisco. O ministro Luiz Fux pediu ontem vista do processo e
prometeu devolvê-lo na semana que vem, quando o plenário estiver completo.
A questão do perfilamento racial é crítica
num país onde jovens negros são o principal alvo da polícia e formam a maioria
da população carcerária. É inconcebível, numa sociedade que se pretende
civilizada, que a cor da pele justifique uma abordagem policial. Nos Estados
Unidos, o racismo da polícia também está sob escrutínio desde o assassinato de
George Floyd, negro asfixiado em 2020 por um policial branco (depois julgado e
condenado).
O caso de Francisco também levanta outra
questão relevante: a punição por tráfico de quem porta pequenas quantidades de
droga. Três ministros — Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin — já
votaram por descriminalizar a posse para consumo próprio noutro processo, que
trata de um homem detido em São Paulo com três gramas de maconha. Relator do
caso, Gilmar votou pela inconstitucionalidade do artigo da Lei das Drogas que
estabelece penas nessas situações, quando deveria prever sanções
administrativas ou cíveis. Fachin e Barroso acompanharam o relator e foram
além, ao apresentar proposta sobre quanta maconha a lei deveria considerar
consumo próprio, sem prever punição.
A falta desses parâmetros na Lei das Drogas se soma ao racismo da polícia para multiplicar casos como o de Francisco. Não faltam exemplos no exterior para ajudar o Congresso a aprimorar a legislação brasileira. O Supremo deveria não apenas concluir o julgamento do perfilamento racial, mas também retomar o da Lei das Drogas.
Ditador companheiro
Folha de S. Paulo
Simpatia do PT por tiranias de esquerda
ameaça afetar diplomacia do governo Lula
Alberto Cantalice, membro do diretório
nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido,
expressou não mais que um truísmo. Disse
que Venezuela e Nicarágua são ditaduras —e que não faz sentido
criticar o autoritarismo de Jair Bolsonaro (PL) e, ao mesmo tempo, poupar esses
dois regimes latino-americanos.
A obviedade da afirmação não evitou que
lideranças petistas mais identificadas com a velha guarda desautorizassem
Cantalice, que também fizera crítica a Cuba, posteriormente relativizada.
Entre os representantes dessa ala, ligações
afetivas com os dirigentes estrangeiros de esquerda e uma fetichização da
história de movimentos populares parecem falar mais alto do que as evidências
presentes de graves violações a direitos humanos e outros crimes
Enquanto esse tipo de controvérsia fica
restrito ao âmbito do partido, trata-se de uma questão "interna
corporis", ou seja, que diz respeito apenas à legenda e seus filiados. Se
o PT quiser queimar seu capital político louvando ditaduras, é direito seu
fazê-lo.
O problema é que há indícios de que a
ambiguidade petista em relação às ditaduras de esquerda esteja novamente
afetando posicionamentos diplomáticos do Brasil, agora sob a administração de
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o que a transforma numa questão pública.
E, com efeito, o governo brasileiro demorou mais
de um mês para oferecer acolhimento aos opositores do regime nicaraguense de
quem Daniel Ortega, em mais um lance de sua escalada autoritária, suprimiu a
cidadania, convertendo-os em mais de 300 apátridas.
Governantes sul-americanos de uma esquerda
menos fossilizada, casos do Chile e da Colômbia, foram bem mais rápidos no
tempo de reação e na condenação a outras violações de direitos humanos por
parte do líder sandinista.
Não se pede que o Brasil rompa com países
suspeitos de torturar presos ou que oriente sua atuação diplomática pelo
moralismo. Relações internacionais, ninguém o ignora, são pautadas
primordialmente pelo interesse. O Brasil pode e deve relacionar-se tanto com
Cuba como com a Arábia Saudita.
É importante, entretanto, que os interesses
sejam modulados por princípios. A própria Constituição, em seu artigo 4º,
elenca dez deles, entre os quais estão a prevalência dos direitos humanos e a
concessão de asilo político. A sinalização visa tanto ao público externo, isto
é, a comunidade de nações, como ao interno, os cidadãos brasileiros.
Lula foi eleito para governar para todos,
não apenas para petistas e aliados ideológicos. Isso exige que enterre de vez
suas simpatias por ditaduras amigas, pois agora representa o Estado brasileiro.
O nó dos transplantes
Folha de S. Paulo
Poder público deve identificar problemas
para superar retrocessos da pandemia
Ao sobrecarregar a rede de saúde, a
pandemia de Covid-19 afetou o tratamento de outras doenças e causou distorções
na logística do sistema. Uma das áreas afetadas foi a de transplantes, com
efeitos que ainda perduram.
Segundo o Ministério da Saúde, entre janeiro
e julho de 2020 o número desses procedimentos caiu 37% se
comparado ao mesmo período do ano anterior, e as mortes de pessoas que estavam
na fila para receber um órgão subiram 34%.
Relatório da Associação Brasileira de
Transplantes de Órgãos (ABTO) aponta que o número de doadores efetivos também
foi afetado, interrompendo tendência de crescimento verificada de 2015, quando
registraram-se 14,1 doadores por milhão da população (pmp), a 2019, com 18,1.
Já em 2020, a taxa caiu para 15,8, e em 2021, para 15,1.
O fenômeno tem várias causas. No início da
pandemia, considerava-se que o procedimento aumentaria a transmissão do vírus,
mas pesquisas científicas atestam que esse risco é mínimo ou ausente.
Além disso, a demora para obter resultados
dos testes causou lentidão na fila e a pressão para agilizar sepultamentos
gerou aumento da recusa de familiares. A logística de transporte aéreo ficou
precarizada, e doadores vivos negavam o procedimento por causa do risco de
transmissão hospitalar.
Mesmo com o arrefecimento da
pandemia, os números
ainda não atingiram os patamares anteriores. De 7.404 doações e 15,1
pmp em 2021, passou-se a 8.021 e 16,5 pmp em 2022. Em 2019, antes da crise
sanitária, eram 9.224 e 18,1 pmp.
Especialistas apontam que, em 2022, o
índice de doadores aumentou mais do que o de transplantes, o que sugere
dificuldades técnicas.
As contraindicações médicas são feitas pelo
centro de doação quando o doador não é adequado para o receptor ou quando o
centro de transplante não tem plena capacidade para realizá-lo. No ano passado,
o índice de negação foi de 17% —abaixo dos 23% de 2021, mas ainda acima dos 15%
de 2019.
Disparidades regionais são complicadoras.
Em 2017, por exemplo, Santa Catarina tinha 40,8 de pmp, mas Tocantins sequer
teve doadores. A falta de equipes preparadas para preservar corpos e órgãos e
realizar procedimentos complexos impede a cobertura do território.
Para superar o retrocesso gerado pela pandemia, é preciso que o poder público investigue os nós da cadeia de transplantes e proponha soluções adequadas a cada região.
Lula e os ditadores ‘companheiros’
O Estado de S. Paulo.
Brasil se nega a endossar denúncia de
crimes contra a humanidade na Nicarágua de Ortega; se quer que o País seja
levado a sério, Lula não deve igualar opressores a oprimidos
Há poucos dias, durante reunião do Conselho
de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, o Brasil se recusou a acompanhar os
mais de 50 países que denunciaram a prática de crimes contra a humanidade pela
tirania de Daniel Ortega na Nicarágua.
É compreensível. Como é que o presidente
Lula da Silva pode endossar uma denúncia grave como essa contra um amigão que o
chama de “irmão e companheiro”? As profundas afinidades entre Lula e Ortega
passam pela devoção a Fidel Castro e pelo cacoete de culpar os EUA por todo o
mal da América Latina. Para muitos petistas, censurar Ortega (ou o ditador
Nicolás Maduro, ou o comandante Fidel) equivaleria a fazer o jogo dos
imperialistas americanos e, pior, trair a esquerda.
Pouco importa que governos esquerdistas
acima de qualquer suspeita, como os do Chile e da Colômbia, firmaram o
documento crítico ao regime de Ortega. Quando o esquerdismo se torna “doença
infantil”, patologia desse lulopetismo de grêmio estudantil, qualquer
manifestação de racionalidade é desde logo denunciada como “desvio”.
Quem sentiu isso na pele foi Alberto
Cantalice, membro do Diretório Nacional do PT, que ousou criticar os ditadores
Ortega e Maduro. No Twitter, escreveu que o nicaraguense “enxovalha a esquerda
latino-americana” e que os petistas não podem criticar o autoritarismo de Jair
Bolsonaro enquanto fazem vista grossa às barbaridades cometidas pelos ditadores
“companheiros”. Foi o bastante para que Cantalice fosse qualificado como
traidor do “campo democrático popular” em favor do “campo imperialista”.
É claro que qualquer presidente brasileiro
deve adotar a prudência, sobretudo em temas espinhosos, em que os interesses do
País estejam em risco. Não é, no entanto, o caso da condenação da ditadura
nicaraguense. Abster-se de denunciar essa ditadura e seus crimes contra a
humanidade equivale a insultar as vítimas dessa tirania. Não cabe, aqui, falar
em respeito à “soberania”, como habitualmente dizem os petistas, pois nenhum
governo é soberano para massacrar seu próprio povo; também não cabe falar em
respeito à “autodeterminação” dos nicaraguenses, pois nenhum povo submetido a
uma ditadura é capaz de determinar seu próprio futuro.
A defesa dos direitos humanos é, por definição,
uma questão que está além das fronteiras nacionais. É um imperativo da
comunidade internacional demandar que os direitos básicos dos cidadãos em
qualquer país sejam respeitados. Não é por outra razão que governantes
autoritários menosprezam os direitos humanos e consideram sua defesa uma
interferência indevida em assuntos internos.
Por isso, o Brasil não podia se abster no
caso da Nicarágua, ainda que fosse sob o argumento, invocado pelo Itamaraty, de
que a declaração conjunta não abria “canais de diálogo” com a Nicarágua. Ora,
não se pode falar em “diálogo” sem que haja antes, da parte de quem agride, a
iniciativa de interromper a agressão. Não há como igualar algozes e vítimas,
como faz o Brasil sob Lula.
Depois da reação negativa ante o posicionamento
brasileiro, o Brasil, numa manifestação em separado no Conselho de Direitos
Humanos, expressou “extrema preocupação com os relatos de sérias violações de
direitos humanos e restrições de direitos democráticos” na Nicarágua e se
ofereceu para receber os cidadãos nicaraguenses degredados por serem
considerados opositores do regime. No entanto, em nenhum momento o Brasil
condenou a ditadura de Ortega com a firmeza e a veemência que as incontestáveis
violações de direitos humanos – atestadas por um grupo de peritos independentes
a serviço da ONU – impõem.
Se Lula da Silva tem a pretensão de
reposicionar o Brasil no mundo, depois de quatro anos de ostracismo voluntário
determinado pelo bolsonarismo, precisa livrar-se urgentemente das amarras
ideológicas que o impedem de se alinhar ao mundo civilizado quando isso é tão
flagrantemente necessário. Para voltar, de fato, a ser um país relevante em
áreas outras que não apenas a ambiental, como deseja Lula, o Brasil deve
perfilar com os países que definem suas políticas externas a partir de um
patamar mínimo de civilização.
Um CNJ capturado pelo corporativismo
O Estado de S. Paulo.
Juiz não pode receber presente de ente
privado. Regulamentação do CNJ sobre evento acadêmico precisa ser revista.
Escândalos afetam imagem e imparcialidade do Judiciário
A Constituição de 1988 proíbe que juízes
exerçam, ainda que tenham disponibilidade de horário, “outro cargo ou função,
salvo uma de magistério” (art. 95, § único, I). Para ser efetiva na proteção da
imparcialidade dos magistrados, a regra constitucional precisava ser
regulamentada de maneira estável e segura. Como órgão de controle do
Judiciário, cabia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fazer a regulamentação.
No entanto, o que parecia funcionar no início vem ganhando limites
assustadoramente frouxos.
Em 2007, o CNJ instituiu a Resolução
34/2007, regulamentando o exercício da docência por juízes. Estabeleceu
diretrizes e parâmetros. Seis anos depois, na Resolução 170/2013, sobre algumas
modalidades de eventos acadêmicos, o órgão lembrou que “ao magistrado é vedado
receber, a qualquer título ou pretexto, prêmios, auxílios ou contribuições de
pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções
previstas em lei”. A menção não foi gratuita. Havia casos de abusos.
Em 2016, o CNJ inovou no tema. A Resolução
226/16 estabeleceu que qualquer participação de magistrados, “na condição de
palestrante, conferencista, presidente de mesa, moderador, debatedor ou membro
de comissão organizadora”, deveria ser considerada “atividade docente”. Na prática,
era uma autorização geral para juízes participarem dos mais diversos eventos.
Na ocasião, como contraponto à liberação
irrestrita, foi instituída a obrigação de informar “ao órgão competente do
Tribunal respectivo” a participação nesses simpósios, indicando, entre outros
detalhes, a entidade promotora do evento. A Resolução 226/2016 também
estabeleceu que cabia ao CNJ e à Corregedoria Nacional de Justiça promoverem “o
acompanhamento e a avaliação periódica” das informações sobre os eventos.
No entanto, toda essa dinâmica foi alterada
em 2021. Por meio da Resolução 373/21, o CNJ revogou o dever de informar sobre
a participação nos eventos, bem como o acompanhamento pelo CNJ dessas
informações. Ao mesmo tempo, manteve a liberação geral, ratificando a atribuição
de caráter acadêmico a todos esses eventos.
Como mostrou o Estadão, sob pretexto de
participação em eventos “acadêmicos”, magistrados têm recebido generosas
benesses bancadas por alguns dos maiores litigantes do País. Entre outras, há
shows exclusivos com artistas renomados, jantar em cassino, baladas, estadia em
hotéis cinco-estrelas e aluguel de lanchas com direito a espumante de brinde.
Fundado por dirigentes de um fundo de
investimentos em ativos de insolvências, o Instituto Brasileiro da Insolvência
(Ibajud) levou, no ano passado, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de juízes de recuperação judicial,
para o Algarve, em Portugal. O congresso terminou com show em um cassino. Por
sua vez, o Instituto Brasileiro de Direito da Empresa (IBDE) promoveu um
encontro em resort na cidade do Porto. Aos olhos do CNJ, tudo isso é evento
acadêmico.
Por óbvio, não basta alegar o “caráter
acadêmico” para que a concessão de mimos e benefícios a juízes esteja liberada.
Segundo Rafael Mafei, professor de Direito da USP, há uma enorme diferença
entre custear uma palestra e “a oferta de uma viagem de luxo”. Além disso,
considera problemática a situação em que o promotor do evento, “diretamente ou
por meio de associações que despistam o vínculo, é parte interessada em casos
julgados pelo magistrado”.
É preciso resgatar a função de controle do
CNJ. Criado em 2004, no âmbito da reforma do Judiciário, ele foi uma tentativa
de moralizar o funcionamento da Justiça. Ao longo desses anos, o CNJ tomou
medidas importantes. Suas inspeções e correições expuseram problemas graves de
nepotismo e corporativismo existentes em tribunais pelo País. No entanto, como
se vê no tema dos eventos acadêmicos, o próprio CNJ parece ter sido capturado
pelo corporativismo.
Além de afetar a imagem do Judiciário e
tornar uma ficção a imparcialidade do magistrado, tudo isso representa descumprimento
direto da Constituição.
A sombra da inflação nos EUA
O Estado de S. Paulo.
Perspectiva de alta dos juros americanos deve fortalecer o dólar ante o real e tende a pressionar a inflação
A persistência da inflação continua a
assombrar o mundo. Em sabatina no Comitê Bancário do Senado dos Estados Unidos
nesta semana, o presidente do Federal Reserve (Fed), Jerome Powell, reiterou o
compromisso de conter a inflação e trazê-la de volta à meta de 2%. Segundo ele,
o ritmo de aumento dos juros da economia norte-americana poderá ser
intensificado caso a “totalidade dos dados” justifique tal decisão.
“A restauração da estabilidade de preços
provavelmente exigirá que mantenhamos uma postura restritiva da política
monetária por algum tempo”, disse Powell. Seu recado foi compreendido pelos
investidores, que se anteciparam à divulgação de novos dados sobre o mercado de
trabalho e a inflação e ajustaram suas expectativas a um discurso mais austero.
Até então, o mercado acreditava em um
aumento da ordem de 0,25 ponto porcentual na próxima reunião do Fed. Depois da
sabatina, a maioria passou a esperar uma alta de 0,50 ponto porcentual. Assim,
as estimativas sobre a taxa de juros ao fim do ciclo de aperto monetário
subiram para um patamar entre 5,50% e 5,75%, e já há instituições projetando o
pico dos juros em 6%.
Além da inflação, vários indicadores
recentes, como os de produção e serviços, têm apontado para uma reversão na
tendência de esfriamento da economia dos EUA – observada até o fim do ano
passado. O comportamento do mercado de trabalho foi um dos que mais causaram
surpresas em janeiro, com mais de 517 mil vagas criadas e uma taxa de
desemprego de 3,4%, menor nível dos últimos 53 anos.
O discurso de Powell trouxe mais incertezas
sobre a economia mundial, bem como novos desafios ao trabalho do Banco Central
(BC) brasileiro. Na última ata do Comitê de Política Monetária (Copom), quando os
juros foram mantidos em 13,75% ao ano, o BC já havia destacado que a alta dos
juros nos países avançados demandaria mais cautela dos países emergentes na
condução de suas políticas econômicas.
Se, de um lado, o BC tem sido pressionado
pelo governo a reduzir a Selic e evitar uma recessão, de outro, a inflação
continua a demonstrar resiliência. A queda do Produto Interno Bruto (PIB) no
quarto trimestre, aliada à inadimplência das pessoas físicas e às dificuldades
financeiras de empresas, deu força aos que defendem mais flexibilidade na
condução da política monetária, mas as avaliações sobre a necessidade de maior
comedimento por parte do governo na política fiscal ainda são predominantes.
A esse cenário se soma agora a perspectiva de um aumento mais intenso da taxa de juros norte-americana, movimento que deve fortalecer o dólar perante outras moedas. Internamente, isso pode trazer novos elementos a serem considerados pelo BC, haja vista que a desvalorização do real tende a trazer ainda mais pressão sobre a inflação. Além disso, investidores estrangeiros em busca de maiores retornos financeiros podem migrar do País para outros mercados. Tudo isso reforça a necessidade de um arcabouço fiscal crível, melhor forma de ancorar as expectativas e facilitar a difícil tarefa do BC.
Caso Juscelino mostra margem limitada de
manobra de Lula
Valor Econômico
O time político de Lula fez um lance errado
para fechar com rapidez uma equipe ministerial enorme, e paga caro por isso
Por muito menos suspeitas do que as que
cercam o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil), o PT teria
pedido com estardalhaço sua demissão, se fosse outro o governo. Da mesma forma,
a presença de milicianos conhecidos na campanha da atual ministra do Turismo,
Daniela do Waguinho, seria um motivo vigoroso para retirá-la do cargo, ainda
mais depois das ligações explícitas dessas forças do submundo do crime com o
clã dos Bolsonaro. Ambos são apadrinhados pelo União Brasil, terceira maior
bancada da Câmara, com 59 deputados, que, no entanto, não se reconhece como
parte da base governista, nem admite os ministros como indicações da legenda.
Juscelino só tem causado dissabores ao
governo: não é benquisto em seu partido, trabalha pouco e só em benefício
próprio - e, no entanto, parece inamovível. Para compor e governar com um
Congresso que não controla, o presidente Lula não comanda mais inteiramente seu
ministério. Juscelino esteve enrolado em uso de verbas do orçamento secreto
para construção de estradas perto de sua propriedade, indicou renomados
bolsonaristas para sua pasta e auferiu diárias para cuidar de negócios
particulares, entre outras coisas, mas segue no cargo.
O presidente Lula foi cobrar explicações do
ministro e saiu convencido, pelo menos na versão oficial, de que ele nada fez
de errado até agora. “Esse vai ser um padrão: a presunção da inocência. Não
vamos seguir pré-julgamentos”, disse o ministro das Relações Institucionais,
Alexandre Padilha, para quem o Centrão “é um conceito que não existe”. Como o
Centrão existe e atua, o governo está com problemas justamente para convencer
parte dele a apoiar seus projetos.
As intenções do Centrão, porém, mostram-se
claras. O presidente Lula não está nervoso à toa. Não se trata apenas da
política de juros altos de um Banco Central agora autônomo, com o qual nunca
teve antes de tratar, mas de um Congresso potencialmente rebelde. Os acordos
feitos até agora, como a incorporação de três nulidades do União Brasil - o
outro é o ministro da Integração, Waldez Góes, ex-governador do Amapá condenado
por peculato -, trouxeram mais problemas do que soluções. O reforço que
trouxeram à base governista é pequeno, ainda que o UB, fusão do PSL que abrigou
a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência e do DEM, tenha se mostrado
irritado com a possibilidade de o governo ejetar Juscelino Filho. O time
político de Lula fez um lance errado para fechar com rapidez uma equipe
ministerial enorme, e paga um preço caro por isso.
A relação de forças políticas é adversa ao
governo, fato lembrado com clareza pelo presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), que disse que o governo não tem apoio sequer para aprovar projetos com
maioria simples, quanto mais para os que exigem o quorum qualificado de
matérias constitucionais - como a reforma tributária.
Há uma agenda pesada do governo para ser
seguida no Congresso. Em primeiro lugar, ainda em elaboração, o do regime
fiscal, a principal peça da política econômica a passar pelo crivo do
Legislativo. Sua confecção foi acelerada pelo movimento das peças do xadrez
político. As regras fiscais determinam o jogo de gastos do setor público, em
torno das quais se movem os interesses e alianças partidárias de deputados e
senadores. Aos poucos, o cronograma de sua apresentação foi antecipado de
agosto para abril e daí para março, a tempo de vir à luz antes da reunião do
Copom. A ideia é que o novo regime seja considerado austero o suficiente pelo
BC a ponto de convencê-lo a iniciar o corte dos juros.
Depois virá a agenda de reformas
estruturais, com a reforma tributária à frente. Nunca houve chance maior de
aprová-la do que no governo Bolsonaro, quando os governadores concordaram que
era o momento de por fim à barafunda de tributos. A reforma foi sabotada pelo
governo e, em especial, pelo então ministro Paulo Guedes, que deu prioridade a
uma contribuição sobre transações financeiras que não tinha apoio político.
Lira deu sinais do destino desses dois projetos, quase nos mesmos termos. Sobre o tributário, afirmou que ele terá de ser “médio, prudente, responsável e equilibrado”, um meio termo que agrade a todos. Sobre o regime fiscal, que não pode ser “radical”. Ao ser eleito por pequena diferença de votos, Lula tem um cacife político menor para lidar com um Congresso mais conservador - Lira prefere o termo “liberal”. Talvez por isso ande escolhendo alvos em outros lugares que não o Legislativo, aonde enfrenta problemas óbvios.
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