terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Rana Foroohar* - O comércio global precisa de revisão

Valor Econômico

Correção de desequilíbrios de longo prazo entre países superavitários e deficitários deveria estar no topo da agenda da OMC

John Maynard Keynes previu os atuais problemas comerciais. Em 1944, em Bretton Woods, ele defendeu um sistema comercial global que visasse os desequilíbrios persistentes entre os países superavitários e os deficitários, em vez de o policiamento de violações comerciais pontuais. Pena que não foi isso que conseguimos.

Com o início da 13º reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) ontem, suspeito que a discussão em torno do comércio continuará sendo pequena e tecnocrática. Isso ignora o principal problema, que é o fato de os desequilíbrios de longo prazo entre os países deficitários e as nações superavitárias terem criado uma economia e uma política insustentáveis ao redor do mundo.

Corrigir isso exige mais do que ajustes graduais. Requer uma reorganização radical do sistema comercial global. O pesquisador sênior do Carnegie Endowment e economista Michael Pettis defende isso em um novo artigo que se baseia no livro de 2020 “Trade Wars Are Class Wars”, do qual é coautor.

Os países deficitários, especialmente os EUA, mas também o Reino Unido, a Austrália e o Canadá, não vêm tendo outra escolha a não ser equilibrar a perda de empregos no setor industrial com o excesso de dívida, resultando em economias mais frágeis e financeirizadas.

Enquanto isso, os países superavitários - sobretudo a China, mas também Taiwan, Coreia do Sul e Alemanha - conseguem criar empregos, mas permanecem presos a uma demanda interna fraca porque as famílias estão, direta ou indiretamente, subsidiando a indústria transformadora.

Para aceitar que os desequilíbrios persistentes são, na verdade, um problema (em vez de uma evolução natural à medida que as economias avançadas se afastam da indústria transformadora), precisamos reconsiderar algumas opiniões arraigadas sobre o comércio.

Para começar, o economista britânico do século XIX David Ricardo, que primeiro apresentou a ideia da “vantagem comparativa”, jamais imaginou um mundo em que a produção industrial subsidiada por Estados estrangeiros deixaria os consumidores domésticos incapazes de absorver a produção interna. Para ele, vantagem comparativa significava trocar tecidos por vinho - e não abandonar as capacidades industriais.

Os economistas podem inferir de Ricardo que os EUA ou partes da Europa simplesmente têm uma desvantagem comparativa na indústria, enquanto partes da Ásia têm uma vantagem. Mas isso basicamente interpreta mal o conceito. A vantagem comparativa do século XIX não era baseada em uma política industrial que transferia dinheiro globalmente dos consumidores para os produtores. As exportações destinavam-se a maximizar o valor das importações - e não, como coloca Pettis, “externalizar as consequências da demanda interna reprimida”.

Da mesma forma, embora muitos economistas tradicionais assumam que o dinheiro estrangeiro que flui para os dólares americanos deveria reduzir as taxas de juros nos EUA e financiar os investimentos americanos, este não tem sido o caso há décadas. Isso porque ele está fluindo para países onde os investimentos das empresas têm sido limitados pela demanda. Consideremos, diz Pettis, que grande parte do dinheiro estrangeiro que flui para os EUA vá para os ativos de companhias multinacionais que estacionam esse dinheiro, em vez de investi-lo.

Seria possível, é claro, aumentar a demanda interna com uma política industrial que incentivasse certas indústrias - como a manufatureira. É isso que o governo do presidente Joe Biden está fazendo no momento. Também se poderia tornar mais caras as exportações baratas, como Donald Trump provavelmente fará com tarifas muito mais altas, se conseguir um segundo mandato.

Mas nenhuma dessas soluções é a ideal, em parte porque elas forçam cada país a agir sozinho. Um plano mais eficaz envolveria a união dos países com maiores déficits para forçar as nações superavitárias a pararem de impor suas escolhas econômicas ao resto do mundo.

Isso provavelmente significaria uma abordagem conjunta às tarifas, aos controles de capitais e ao “friendshoring”, para que ninguém tenha que reconstruir sozinho toda a capacidade industrial.

Até agora, tudo otimista demais. Mas a alternativa é que os EUA continuem adotando uma postura unilateral para reestruturar o sistema comercial global. Vimos como as medidas em torno do esvaziamento do aço e do alumínio chineses se transformaram em preocupações com minerais críticos, veículos elétricos e, mais recentemente, com o transporte e a logística, o que põe em causa não só as práticas comerciais desleais, como também a preocupação com a segurança dos portos e outras infraestruturas críticas.

Na semana passada, o governo Biden despejou bilhões de dólares na produção nacional de guindastes de carga, para conter os temores de que hackers explorem o software em guindastes chineses. Embora as autoridades chinesas tenham classificado as preocupações de “paranoia total”, vale observar que muitos dos portos do mundo, transportadoras de carga e despachantes, além de alguns terminais dos EUA, usam uma plataforma de logística chinesa chamada LOGINK, cuja criação foi subsidiada por Pequim e é fornecida gratuitamente para encorajar seu uso global.

Como afirma um relatório da Comissão de Análise Econômica e de Segurança EUA-China de 2022, a plataforma permite a Pequim ter acesso a “dados sensíveis que incluem o transporte de carga militar dos EUA, informações sobre vulnerabilidades de cadeias de abastecimento e informações de mercado críticas. Tudo isso poderia ajudar empresas chinesas a competirem em condições desiguais no setor de logística terceirizada, que movimenta quase US$ 1 trilhão por ano”.

Se você pensava que o conflito comercial de bens físicos era perturbador, considere o que acontece quando você acrescenta a preocupação sobre os subsídios de Pequim que permitem ao Partido Comunista Chinês monitorar o transporte marítimo global. Suponho que temas como este, e os problemas sistemáticos que os causam, não estarão no topo da agenda da OMC. Mas deveriam estar. (Tradução de Mário Zamarian)

*Rana Foroohar é editora do Financial Times em Nova York.

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