- Valor Econômico
A democracia é um regime político que exige constante aperfeiçoamento das regras e práticas políticas. Supõe-se que governantes e eleitores aprendam com o debate das ideias e, sobretudo, das propostas que se transformam em políticas públicas. Claro que nem sempre o avanço é linear. Muitas vezes são os erros que levam ao aprendizado. De todo modo, os países democráticos abrem mais espaço para melhorias do que as ditaduras, nas quais os problemas são escondidos da população e/ou o povo não pode punir nem trocar quem os governa. Esse argumento serve como base à seguinte questão: o quanto os brasileiros aprenderam com a eleição de 2014?
Para refrescar a memória de todos, os dois principais candidatos à Presidência da República praticamente negligenciaram a situação que o país vivia. A presidente eleita, Dilma Rousseff, pintou um cenário róseo na campanha e tomou medidas duras de ajuste quando começou a governar. Em grande parte das medidas, ela estava correta, mas como enganara o eleitorado, criou o caldo de cultura que gerou uma enorme mobilização social pelo impeachment. Esse episódio deveria servir de lição para os candidatos em 2018, que deveriam propor medidas exequíveis para não darem uma nova decepção ao povo brasileiro - e, de quebra, correrem o risco de perder o mandato.
Mas o aprendizado deveria se estender aos eleitores. Quando começa o processo eleitoral, vem uma onda de promessas. É preciso ter cuidado com as propostas que apresentam soluções aparentemente óbvias, capazes de resolver completamente os problemas. Num contexto de crises múltiplas como o atual, muitos eleitores, mesmo os com maior escolaridade, ficam suscetíveis a discursos que prometem uma nova forma de fazer de política. Para evitar que isso se transforme em método de enganação, os eleitores deveriam prestar atenção em pelo menos cinco aspectos: o diagnóstico apresentado, a consistência das ideias, a factibilidade das propostas, o time que acompanha o candidato e a trajetória do presidenciável, com impacto principal no seu estilo politico.
Deve-se começar analisando a qualidade do diagnóstico apresentado pelo candidato. É muito comum procurar as soluções primeiro, antes de traçar claramente quais são os problemas. Não se pode melhorar uma política pública antes de saber as causas ou fatores que incidem sobre ela. Por exemplo, a maior parte do "exército" de jovens que entra no tráfico faz parte do grupo de alunos que evadem da escola, a partir do final do ensino fundamental II e, com maior ênfase, no ensino médio. Desse modo, qualquer solução aparentemente engenhosa de segurança pública que ignorar o efeito das falhas educacionais para a violência juvenil estará fadada ao fracasso. A adoção das ações meramente repressivas, tão populares nos meios de comunicação de massa, é um tipo de combate das consequências que não estancará as causas.
Claro que é possível encontrar problemas que possuem diagnósticos rivais em disputa. Isso acontece muito na área econômica, mas também é verdadeiro na área social. Questões complexas, aliás, nunca terão uma radiografia única e definitiva. Parte de nossas opções alimentam-se de informações, mas parte deriva de visões normativas e/ou de nossa experiência de vida. A discussão racional das propostas pode ser valorizada e incentivada nas democracias, porém, há filtros que nos aproximam mais da direita, da esquerda, do centro e de sua combinação com os outros dois espectros ideológicos. É bem verdade que, ademais, o irracionalismo e a loucura também fazem parte dos discursos e das posições em disputa, e a eleição presidencial brasileira tem vários elementos nesse sentido.
Mesmo com todos os vieses possíveis, o eleitor deve exigir que o candidato apresente os dados, informações e valores referendados pela experiência que embasam sua posição. Esse é o segundo elemento necessário para definir a qualidade das propostas. Se tem uma determinada posição sobre a reforma da Previdência, que mostre quais são as evidências que sustentam sua visão de mundo. Se defende a reforma trabalhista, que mostre números e casos que alicerçam sua opinião. Ao final, pode-se não ter completa certeza sobre qual é a ideia perfeita sobre a questão, mas será possível saber quais são os candidatos consistentes, e isso é essencial para a escolha eleitoral. Garanto que muitos serão eliminados como alternativas após fazer esse teste.
O terceiro aspecto essencial para qualificar o debate democrático está na avaliação da factibilidade das propostas. Neste caso, uma das coisas mais perigosas é propor uma ideia ou política que não se inspire em uma experiência bem-sucedida no Brasil ou no mundo. Inovar completamente em políticas públicas é um risco muito grande, que pouquíssimas vezes dá certo. E não se trata aqui de defender a cópia de algo, mas sim, de buscar referências que tornem menor a possibilidade de errar nos caminhos e soluções.
As propostas de Jair Bolsonaro, por exemplo, não passam minimante por esse filtro. Quando propõe que a população deve se armar como forma de resolver a questão da violência e da criminalidade, deve-se perguntar: qual foi o país que tomou essa atitude e teve um resultado positivo? A resposta: nenhum. Quando ele advoga que a solução da educação passa por expandir a lógica dos colégios militares para todo as escolas públicas, muitas questões ficam no ar. Quanto custará isso? O que será feito com os professores do atual sistema? E, o mais importante, qual foi a nação que adotou esse modelo e melhorou substantivamente sua posição no exame do PISA? Novamente, a resposta é nenhum.
Na verdade, esse problema se alastra por boa parte da classe política brasileira, que geralmente tem uma visão provinciana do mundo e dá pouca bola para evidências na escolha das políticas públicas. Não que o país não tenha exemplos de sucesso. Basta lembrar, entre inúmeros casos, o Plano Real e o Bolsa Família. Só que mesmo nestes dois casos é interessante notar como as oposições a eles - o PT ao primeiro, e o PSDB ao segundo - usaram argumentos descabidos, sem paralelo com a experiência de outros países ou desvinculados de avaliações científicas.
O fato é que toda vez que o eleitor se deparar com alguma proposta nova, aparentemente atraente ou supostamente inovadora, pergunte: em que lugar isso deu certo? Ou então: há alguma experiência ou prática internacional/nacional que inspira esse modelo? Se ele não apresentar dados em relação a tais questionamentos comece a desconfiar que ele dará um tiro no escuro caso coloque em prática as suas ideias.
O debate democrático fica mais rico se for possível comparar as ideias com as pessoas que estão por trás delas. Muitos riem quando Bolsonaro diz que terá uma série de "postos Ipiranga" para solucionar os problemas do país. Só que, embora o presidente tenha de ser um líder de seus assessores, capaz de ter uma visão sistêmica do país, não seria ruim que todos os presidenciáveis indicassem quais são os seus principais interlocutores/formuladores em cada setor relevante de política pública. Desse modo, seria possível cotejar as ideias genéricas que aparecem nos planos de governo com o elenco de pessoas que serão responsáveis pelo seu desenvolvimento.
Não se pede aqui que os presidenciáveis já digam agora quem serão os seus ministros. Estes são figuras que dependem, evidentemente, de um processo político maior do que a campanha. Todavia, todo bom presidente precisa ter um grupo de "policy makers" que o acompanha, independentemente dos cargos que ocupam. Se tais nomes forem conhecidos pelo público, desde a campanha eleitoral, será possível prever com mais exatidão o que poderá ser o futuro governo. Tais assessores geralmente têm maior capacidade de detalhar a política pública e serão peças-chave no processo de implementação. Presidentes não podem tudo e conhecer o seu time melhora a qualidade do debate.
Os eleitores não devem escolher propostas apenas pelas ideias contidas nelas. Um quinto e último aspecto na definição do voto deve estar na análise da trajetória dos candidatos. Como dito antes, fatores normativos pesam aqui, e tendemos a optar por um certo espectro ideológico, mesmo que, de forma saudável, possamos evitar os extremos e nos abrirmos a mais de uma alternativa ou à combinação de visões. De todo modo, tomando como base alguma restrição de opções que façamos, é preciso olhar para a experiência desses escolhidos.
Provavelmente não encontraremos nunca uma congruência completa entre projetos e experiência política, especialmente naqueles que estão há muito tempo na carreira - o que abarca todos os candidatos principais. Afinal, como dizia Kant, "de madeira tão torta que foi feito o homem, nada tão reto será talhado". Porém, é possível, olhando para a prática efetiva dos concorrentes, vislumbrar o estilo de governo.
A maneira como se governa é tão importante quanto as ideias. A partir disso, pense como cada presidenciável se portará no Palácio do Planalto e leve em conta o tamanho da crise e da polarização do país. Que perfil precisamos para nos tirar dessa enrascada? Essa é a pergunta mais importante para definir o próximo governante do país.
-------------------
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário