O imperativo da mudança
A dinâmica das relações entre a sociedade, a educação, a ciência,
a tecnologia e a natureza muda qualitativamente a partir da revolução
industrial. As inovações científicas e tecnológicas, incorporadas aos processos
produtivos, modificam exponencialmente a escala de produção e consumo,
colocando-se a necessidade de ampliação dos mercados, além do Estado Nacional,
criando novas relações políticas, econômicas e sociais nos planos nacional e
internacional.
Desde então, desencadeou-se um processo de mundialização,
transformando o modelo de ser e agir da humanidade nas suas relações entre si e
com a própria natureza, impactando, como nunca antes na história, os
ecossistemas, colocando em risco a sobrevivência da própria humanidade.
Construiu-se uma lógica de produção e consumo que, histórica e atualmente,
mostrou-se insustentável.
Portanto, coloca-se a necessidade de construir uma outra
perspectiva de sociedade, ampliando as formas e os conteúdos da democracia, a
partir de novas relações políticas, econômicas e sociais, nas quais a Educação,
a Ciência e a Tecnologia cumprem um papel de destaque.
Continua moderno e contemporâneo o desafio de melhor realizar a
distribuição da riqueza material produzida pelos que trabalham, incorporando os
ganhos proporcionados pela Educação, Ciência e a Tecnologia, a favor do bem
estar e da felicidade humana, preservando e valorizando a diversidade cultural
e espiritual da sociedade, afirmando os direitos, deveres individuais e
coletivos da cidadania, onde a sustentabilidade econômica, social e ambiental
são fundamentos para a sobrevivência do planeta e da própria humanidade.
Vamos fazer esta travessia? Ou queremos continuar a nos
autodestruir e ao próprio planeta? Nós somos os únicos responsáveis pela
destruição da própria humanidade e dos ecossistemas planetários, tanto nos
tempos de guerra, como de paz, com bilhões de pessoas ainda excluídas das
conquistas sociais modernas.
Até quando vamos nos agredir, nos autodestruir e a própria
natureza?
Quais os nossos compromissos com a nossa casa comum, com a nossa memória ancestral, com as gerações atuais e futuras?
Os desafios da Ciência, da Tecnologia e da Inovação (CTI)
Até os anos de 1960, a inovação científica e tecnológica era
desenvolvida por meio de processos sucessivos e independentes de pesquisa
básica, aplicadas fundamentalmente na área industrial.
A partir de então, os processos de inovação passam a ser
trabalhados a partir de uma visão além da economia industrial, relacionando a
educação, o sistema financeiro, o mundo do trabalho e da cultura, construindo o
que se passou a chamar de economia do conhecimento (OCDE, e outros).
Assim, os países da OCDE vão incorporando, nos seus Sistemas de
Inovação (SIS), novas áreas de conhecimento e de aprendizagem que se
retroalimentam e vão construindo novas relações na comunidade científica com os
diversos atores governamentais, do mercado e da sociedade em geral.
Os SIS vão sendo estruturados na Europa e nos Estados Unidos para
alcançar determinados objetivos científicos e tecnológicos, trazendo resultados
econômicos e sociais, particularmente nos planos regional e setorial, trazidos
na maioria das vezes pela integração das cadeias produtivas, a partir de
investimentos do próprio Estado, aliado ao capital privado ou com empresas de
economia mista na Europa, nos EUA e no Brasil (Petrobras, Eletrobras, Embraer,
Embrapa).
Atualmente, as principais economias mundiais, concentradas no G20,
particularmente os Estados Unidos, a China e a Rússia, consomem mais da metade
dos recursos naturais do planeta. Esses países concentram os avanços das
eiências e das principais tecnologias mundiais. Construíram os seus Sistemas de
C&T&I e novas formas de relações econômicas, sociais e ambientais,
concentrando e excluindo populações nos centros urbanos e industriais, com
danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, impactando a vida de milhões de
pessoas em todos os continentes, onde a questão das mudanças climáticas é a
mais perfeita tradução da inconsequência humana nas suas relações com a
natureza.
Assim, tem funcionado a dinâmica do sistema capitalista mundial,
do capital produtivo e financeiro. Atenção especial para o funcionamento do
Complexo Industrial Militar consolidado durante o século XX, entre as duas
guerras mundiais, durante a guerra fria, até a atualidade. Imaginem se, apenas
durante o século XX, todos os investimentos em C&T&I deste Complexo
Industrial Militar tivessem sido aplicados para a cultura da paz e o
enfrentamento dos nossos inimigos reais: a fome, a pobreza, a habitação, o
saneamento básico, o analfabetismo...
Portanto, é imperativo a construção de uma outra sociedade, na
qual a cultura da paz seja o fundamento da sustentabilidade humana e do próprio
planeta.
Assim, estamos desafiados a superar, com a urgência devida, os
graves problemas decorridos dos modelos industrial e urbano construídos historicamente,
concentradores de populações, indústrias e pobreza, responsáveis pela ampliação
do nível de poluição das águas, da atmosfera e dos solos, impactando, cada vez
mais, os ecossistemas e as populações do planeta. São urgentes as mudanças a
serem realizadas para a melhoria do funcionamento dos organismos multilaterais,
a exemplo da ONU, do FMI e do Banco Mundial, organizações que não sinalizam de
maneira efetiva para a implementação das medidas necessárias e já aprovadas nas
Agendas das conferências mundiais da ONU desde a I Conferência Mundial de Meio Ambiente
em Estocolmo-1972, decisões sempre referendadas pelos governos nacionais, pela maioria
da comunidade cientifica e pelas organizações da sociedade civil a nível
mundial.
Desde então, de Estocolmo em 1972 a Rio+20, em 2012, avançou-se
pouco em termos globais, em relação às demandas ambientais, aos investimentos e
apoios aos programas educacionais e aos Sistemas Nacionais de C&T&I: a maioria
das questões agendadas não foram enfrentadas e as soluções continuam sendo
adiadas.
Em 2012, na última conferência mundial, a RIO+20, o cenário era de
frustração em relação ao que fora planejado, em 1992, no Rio de Janeiro,
principalmente em relação às metas da Agenda 21 e às medidas que deveriam ser implementadas
para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, que vêm causando danos
irreversíveis aos ecossistemas planetários e às populações em distintas regiões
do planeta.
Por outro lado, constata-se, de maneira positiva, a ampliação da
consciência mundial, dos movimentos
políticos e sociais e uma participação cada vez mais ampla da comunidade
científica e da sociedade civil em geral, clamando por tratar com a urgência
devida as questões ligadas à degradação dos ecossistemas, das mudanças
climáticas e das relacionadas com a exclusão social, como também a necessidade
de uma nova economia, de baixo carbono, com incentivo do uso de energias
renováveis, variáveis a serem consideradas no caminho da sustentabilidade
econômica, social e ambiental, onde a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação
podem e devem cumprir um papel de destaque.
Ainda, entre as guerras e conflitos regionais em andamento, há de
se destacar, de maneira preocupante, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia como
parte integrante de um conflito internacional de disputa geopolítica,
principalmente entre os EUA e a China. Os impactos econômicos, sociais e
ambientais causados pelas guerras; os conflitos étnicos e religiosos; a
ampliação da migração de milhares de pessoas do continente africano e do asiático
para a Europa e as migrações internas no continente americano; apontam para
realidades econômica, social e ambiental insustentáveis.
Assim, em um contexto de crises econômicas recorrentes do capitalismo, desde a década de 1980, e a atual situação econômica e social desfavorável da própria Comunidade Europeia, agravada com a guerra Rússia x Ucrânia em andamento, coloca-se ainda mais a necessidade de efetivas mudanças a favor desta sustentabilidade mundial. O cenário continua adverso. A guerra se prolonga, com a prevalência do capital financeiro em relação ao capital produtivo em sintonia com a brutalidade do complexo industrial-militar. As conquistas do Estado de Bem-Estar Social na Europa vão sendo subtraídas, colocando as populações e os países em situação de graves retrocessos políticos, econômicos e sociais. Também é preocupante a realidade pós- pandemia dos países da Ásia, África e América Latina que não conseguem avançar nas suas agendas econômicas e sociais, perdurando os conflitos políticos e as guerras regionais, destacando-se os conflitos recentes e em andamento na África.
O Brasil em uma perspectiva sustentável
Em relação à realidade brasileira, os desafios históricos
continuam atuais, agregando-se novos desafios para a construção de uma
sociedade democrática, com uma outra perspectiva política, no caminho de uma
nova economia, social e ambientalmente sustentável.
A superação das desigualdades sociais, a construção de uma
economia de baixo carbono, a preservação do meio ambiente, dos valores
culturais e espirituais construídos ao longo da história da sociedade
brasileira são horizontes a serem perseguidos para a construção de uma
perspectiva sustentável para o Brasil, onde a educação, a ciência, a tecnologia
e a inovação podem e devem cumprir um papel de destaque.
O Brasil atual é uma das sociedades com maiores exclusão social e concentração de riquezas do planeta. A população brasileira é aproximadamente de 210 milhões de pessoas, com menos de 200 mil pessoas proprietárias da metade da riqueza nacional.
Como mudar esta realidade?
O Brasil construiu-se a partir de um modelo extrativista e de
exploração da natureza, desde a época colonial, através de ciclos econômicos e
um processo de industrialização tardio. Os conflitos econômicos, sociais e
ambientais gerados por este tipo de desenvolvimento permanecem como resultado
das relações predatórias e desiguais entre os diversos atores políticos,
econômicos e sociais que histórica e atualmente determinam o funcionamento do Estado,
do mercado e da sociedade em geral e as relações estabelecidas do Brasil com o
mundo.
Os custos econômicos, sociais e ambientais deste modelo são
alarmantes, a exemplo do que aconteceu com a mata atlântica (apenas 8% da mata
original está preservada). Nos últimos anos, ampliou-se o nível de degradação
da Amazônia, dos cerrados e do pantanal.
A partir de 1950, com a consolidação da matriz energética
brasileira (biomassa, hidráulica, petróleo-gás e nuclear), com a construção de
parques industriais e a ampliação das fronteiras agrícola e pecuária, amplia-se
a escala de poluição do ar, do solo e da água, colocando o desafio de
preservação do meio ambiente como uma questão do Estado, do mercado e de toda a
sociedade brasileira.
O processo de urbanização acelerada, a partir dos anos 70, agravou
ainda mais as questões relacionadas à segurança pública, mobilidade, saneamento
básico, moradia, educação e saúde, chamando a atenção para os graves problemas
a serem enfrentados e historicamente adiados pela sociedade brasileira.
Assim, o Brasil fez uma modernização conservadora. Tecnologicamente
avançou em algumas áreas, a exemplo da indústria de petróleo e gás, alcoolquímica,
aviação, armas e equipamentos militares, agricultura e pecuária. Por outro
lado, como na Colônia, continua exportador de recursos naturais e produtos de
baixo valor agregado: minérios de ferro, produtos agropecuários, alumínio,
papel e celulose, soja e carnes, com consumo gigantesco de água e energia
incorporado nesses processos produtivos.
Portanto, fica evidente a dependência-subordinação da economia
brasileira às principais economias mundiais como fornecedora de
matérias-primas, água, energia e mão de obra. A economia continua muito
dependente do valor das commodities
no mercado internacional. Nos últimos anos, agravou-se esta situação, com a
diminuição do setor industrial na participação do PIB brasileiro.
Neste cenário internacional de ameaças e oportunidades, o Brasil
pela sua dimensão territorial, pelas riquezas naturais, base técnica e
científica que construiu nos últimos anos, aliado ao ativismo da sua sociedade
civil, tem jogado um papel relevante no cenário internacional na discussão de
uma agenda sustentável, desde a RIO+92.
Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem se manifestado de uma
maneira muito clara, querendo reformas e um outro tipo de representação
política. No Brasil, as mortes, os assassinatos, fazem parte do nosso cotidiano,
na maioria das vezes atingindo a população pobre, indígena e negra, que
constituem a maior parte dos brasileiros.
Portanto, deve-se aproveitar a atual crise política e de valores da nossa sociedade para a construção de um novo pacto político, econômico e social, que ajude a avançar a democracia rumo a esse futuro sustentável, onde a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel relevante.
Os fundamentos de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e
Inovação para a sustentabilidade econômica, social e ambiental do Brasil
A implementação da Agenda 21 brasileira, compromisso do Brasil com
a ONU, desde a ECO-92, ficou a desejar, por muitas razões. Fundamentalmente, porque
os compromissos desta Agenda não são obrigatórios, mas sim declaratórios, como
a maioria das agendas e declarações da ONU.
Assim, nem a ONU, nem as organizações multilaterais mundiais, nem
os governos nacionais se sentem obrigados, inclusive o governo brasileiro, a implementar
as agendas nacionais propostas. Faltam as condições materiais, planejamento,
investimentos, principalmente os financeiros.
Em geral, no Brasil, os avanços sociais, econômicos e ambientais
são reativos. Acontecem em função da pressão da sociedade em relação a
determinados programas e projetos internacionais/governamentais, ou quando
acontecem tragédias com grandes impactos sociais e ambientais, com reflexos
negativos na qualidade de vida das populações, o que, há décadas, faz parte do
cotidiano brasileiro, atingindo, na maioria das vezes os mais vulneráveis da
sociedade.
Desde 1970, avançou-se no Brasil a consciência em relação à
questão ambiental e as suas relações econômicas e sociais. No entanto, ainda
não se incorporam estas variáveis nos processos de construção das políticas públicas,
tanto a nível federal, como estadual e também na maioria dos municípios
brasileiros: a maior parte não considera a educação, a ciência, a tecnologia e
a inovação como valores estratégicos para a sustentabilidade e o futuro da
sociedade brasileira.
A Constituição de 1988, que nos traz de volta a democracia,
declara no capítulo VI que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida, sendo
responsabilidade do poder público e da sociedade o dever de defender e
preservar o meio ambiente para as atuais e futuras gerações.
Nessa perspectiva construiu-se a Política Nacional de Meio
Ambiente, que tem como maior objetivo a preservação e a recuperação da
qualidade ambiental do Brasil, criando as condições para a sustentabilidade
econômica, social e ambiental.
Assim, nos últimos trinta e cinco anos de redemocratização da
sociedade brasileira, foram criadas as condições institucionais para a
construção de políticas públicas, que incorporem de maneira transversal as
questões econômicas, sociais, ambientais e educacionais, fundamentos para a construção
de uma outra perspectiva de sociedade que se quer sustentável.
No entanto, a realidade é muito mais complexa. No Brasil, desde os
anos 1970, os grandes programas e projetos de infraestrutura construídos, desde
o regime militar e que continuam atualmente, não incorporam a questão ambiental,
a educação, a ciência e a tecnologia como valores estratégicos. Via de regra,
os nossos governantes e a elite empresarial brasileira criam maneiras e
artifícios para o não cumprimento da legislação, acarretando, muitas vezes em
graves acidentes e impactos sociais e ambientais, atingindo, na maioria das vezes,
as populações mais vulneráveis da sociedade. A questão da água, da gestão das
bacias hidrográficas, dos aqüíferos, do oceano atlântico e das florestas ainda
não são considerados ativos estruturantes para nortear um Plano Nacional de
C&T&I, fundamento de um novo ciclo econômico para a indústria, a
agricultura e o turismo, crucial para a construção da sustentabilidade
brasileira.
Os limites impostos à economia baseada em carbono colocam o Brasil
em uma situação de destaque, em relação à questão ambiental, com vantagens comparativas,
na perspectiva de uma nova economia para um novo ciclo industrial com base na
inovação científica e tecnológica, no caminho da sustentabilidade econômica,
social e ambiental.
Portanto, deve-se trabalhar a construção de um Sistema Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil em função das suas realidades
regionais e potencialidades: biodiversidade, território, riquezas minerais,
água, energia solar e eólica em sintonia com a base científica e tecnológica
brasileira e as necessárias parcerias internacionais, com foco na integração
latino-americana.
Assim, continuamos desafiados à construção de novas relações
políticas, econômicas e sociais entre os diversos atores do Estado, do Mercado
e da Sociedade Civil. Nesta perspectiva, vão sendo criadas as condições
políticas, econômicas e sociais para a construção de uma sociedade sustentável,
na qual a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação devem cumprir um papel
de destaque.
Finalmente, há que se compreender e trabalhar as relações
sociedade, ciência, tecnologia e inovação como parte integrante da história da
humanidade em suas relações com a natureza, procurando entender os conflitos e contradições
da sociedade atual, buscando soluções, sobretudo identificando as diferenças e
os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão, criando os
fundamentos de novas relações políticas, econômicas e sociais, no caminho da
sociedade futura que se almeja sustentável.
*Professor da UFBA e do Instituto Politécnico da Bahia
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