domingo, 12 de maio de 2024

Bernardo Mello Franco - Enxurrada de desinformação

O Globo

Notícias fraudulentas atrapalham equipes de resgate, desestimulam entrega de donativos e incitam revolta contra quem tenta salvar vidas no RS

Enquanto milhares de brasileiros morriam diariamente na pandemia, a máquina da desinformação atuava para desacreditar as vacinas e sabotar as medidas sanitárias. Seria muito otimismo esperar algo diferente na tragédia que abate o Rio Grande do Sul.

A catástrofe climática veio acompanhada de uma enxurrada de fake news. Na tragédia, as notícias fraudulentas fazem mais do que emporcalhar o debate público. Atrapalham as equipes de resgate, desestimulam a entrega de donativos, incitam a revolta contra quem tenta salvar vidas.

No domingo passado, um coach mentiu que o governo gaúcho estaria barrando caminhões de doação e impedindo a distribuição de quentinhas a desabrigados. “É ano político, a mídia não vai mostrar direito o que tá acontecendo, entendeu? Por causa dos políticos”, disse, com ar de indignação.

Era tudo mentira, mas o vídeo viralizou nas redes. Seu protagonista tem quase 10 milhões de seguidores no Instagram e quer ser candidato a prefeito de São Paulo. Enriqueceu com a venda de cursos em que promete ensinar os outros a ganhar dinheiro fácil na internet.

Os exemplos de má-fé se sucedem. Um médico que já teve o registro suspenso inventou que a Anvisa teria proibido a distribuição gratuita de medicamentos. Um ex-participante de reality show alegou que a polícia estaria bloqueando a passagem de barcos de resgate.

Perfis apócrifos divulgaram um vídeo que descreve a catástrofe como uma “calamidade planejada” e um “evento climático artificial”. O motivo alegado: “promover agendas ocultas” e “controlar as massas” em benefício da “elite global”.

Oportunistas aproveitam a tragédia para faturar. Ao disseminar o pânico, desgastam adversários políticos e monetizam cliques e compartilhamentos. Sem regulação, as grandes plataformas permitem que os algoritmos continuem a serviço das fake news. As mentiras correm como lebres, os desmentidos caminham a passos de tartaruga.

A imprensa e as agências de checagem tentam esclarecer o público, mas também são alvo de campanhas de ódio. Seu efeito mais visível são os ataques a jornalistas, que viraram rotina na cobertura da enchente.

O desastre gaúcho evidencia a urgência de medidas para frear a indústria da desinformação. Isso exige mecanismos ágeis para remover conteúdo fraudulento e punir quem lucra com a mentira deliberada. A liberdade de expressão, sagrada em qualquer democracia, não pode mais servir de pretexto para proteger o extremismo e encobrir a prática de crimes.

Nos últimos dias, o governo federal e o governo gaúcho acionaram suas polícias para tentar conter o chorume das redes. A iniciativa é compreensível, mas deve ser fiscalizada para que não haja excessos ou censura ao direito de crítica.

Se é difícil parar as mudanças climáticas, não parece impossível estabelecer regras claras para responsabilizar as big techs e enfrentar o negócio milionário das notícias falsas. Já estamos atrasados: outras tragédias virão.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente e muito verdadeiro! A quantidade de mentiras divulgadas pelas redes bolsonaristas é impressionante, não há respeito ao trabalho exaustivo dos agentes públicos na catástrofe do RS. Os canalhas esquecem dos dias em que Bolsonaro PASSEAVA de jetski em SC enquanto as enchentes matavam dezenas de brasileiros na Bahia.

ADEMAR AMANCIO disse...

É tudo muito triste.