Folha de S. Paulo
Energia libertina da cantora pop americana
perdeu o impulso libertário dos anos 70 e 80
"Eu não sou bonita, sou pior". Atribui-se esta frase a uma personagem do grand-monde francês no século passado. Já Madonna, a maior estrela pop da atualidade, declara-se "uma feminista má". Entre as duas medeia a distância da sutileza estilística, mas uma proximidade de sentido que autorizaria uma releitura do tipo "não sou feminista, sou pior". Ou seja, a diva coloca-se além das atribuições de qualidade que se possam fazer de um ícone mundial. Ela se quer como pós-si-mesma, transidentitária.
É o que se reiterou frente a um público de um
milhão e meio de pessoas na praia de Copacabana. O megashow
"Celebration Tour" é uma espécie de caixa de Pandora que
libera não as desgraças do mundo, mas os simulacros das liberações de costumes
em meio século. Pandora é, aliás, o mito grego da criação da mulher por Zeus. A caixa
pop simula transexualidade nas variações hermafroditas e
andróginas em performances musicais, cênicas, dançantes, audiovisuais. Um prato
cheio para o esconjuro conservador daqui. Mas é hipócrita o choque moral: entre
nós, nada mais pornográfico do que extorquir dízimo de miseráveis.
No show, o escândalo envelheceu, a diva abre
a mesma caixa há quarenta anos. A energia libertina perdeu o impulso libertário
dos anos 70 e 80, democratizada na banalização das relações sociais. Gêneros
antes disruptivos se institucionalizam em laços matrimoniais, próteses
anatômicas, não-binarismos, assimilados pelo sistema. Cada pequeno-burguês é
hoje virtualmente um metamorfo, o mutante mais humano que existe, apto a
transformar-se em sua própria fantasia identitária. Disso tudo, Madonna,
pós-pessoa-física de si mesma, é um ídolo sintético.
"Celebration" é transexualidade, o
pós-sexo genital, conjugada no presente do passado recente. Tudo é
"pós": pós-músicos (não há banda), pós-canto (playback), pós-coito
(gestos vazios), homenagens póstumas. O ectoplasma ganha estatuto artístico.
Por que atrai? Talvez porque a transexualidade, mesmo normalizada, seja hoje
apreendida como base essencial de toda revolta.
Real é o efeito do hibridismo tecnológico de
linguagens, que acende com canhões luminosos os simulacros libertinos. Um
apoteótico karaokê de 280 toneladas de equipamentos. Reais são os efeitos
econômicos. A mobilização do público aumenta o faturamento do turismo numa
parte privilegiada da cidade.
Esquerdistas ou direitistas, governantes
saltitam de júbilo centrista para justificar os 20 milhões, esbanjados no
megaevento, que certamente negariam à prevenção climática. À distância, com
seus filhos, mesmo em sua glacialidade aeróbica, Madonna deixa boa impressão:
nada de bad girl, é uma riquíssima senhora a cavaleiro do velho extrativismo
econômico-cultural americano.
2 comentários:
Excelente!
Estava na torcida para que esta maravilha de texto fosse compartilhada aqui.
👏🏿👏🏿👏🏿
Genial mesmo,quem sabe,sabe!
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