Estevão Taiar e André Guilherme Vieira | Valor Econômico
SÃO PAULO- A deterioração generalizada da segurança pública ajudou a impulsionar a candidatura do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), mas será um dos principais problemas com os quais ele terá que lidar a partir de 1º de janeiro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram registradas 63.880 mortes violentas intencionais em todo o território nacional no ano passado.
Isso equivale a 30,8 mortos por 100 mil habitantes, crescimento de 10,7% em relação a 2013. Entram na conta homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, homicídios de policiais e mortes resultantes de intervenções policiais.
O quadro é mais grave principalmente no Norte e no Nordeste, embora a crise não se limite a essas regiões. Também entre 2013 e 2017, as mortes violentas internacionais no Rio Grande do Norte saltaram de 48,1 por cada 100 mil habitantes para 68 por cada 100 mil habitantes - o maior índice entre as 27 unidades da federação. Nos últimos dois anos, as forças de segurança potiguares e capixabas foram alvo de intervenções pontuais feitas pelo governo federal, enquanto no Rio de Janeiro e, mais recentemente, em Roraima houve o emprego mais amplo das Forças Armadas por meio da garantia da lei e da ordem (GLO).
Realizada logo após o segundo turno, pesquisa da Kantar TNS colocava a segurança no topo da lista do que deveria ser prioridade do governo eleito. Entre as mil pessoas entrevistadas, 17% afirmaram que o tema era o principal problema a ser enfrentado. Saúde, crescimento econômico e geração de emprego vieram em seguida, com 16%.
Mas é pouco factível que no curto prazo o presidente eleito consiga combater efetivamente o aumento da violência, dizem especialistas, integrantes de governos atuais e até mesmo participantes da gestão Bolsonaro - estes últimos só concordaram em falar ao Valor sob compromisso de anonimato.
O crescimento das facções criminosas, com a expansão de suas atividades para além dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, desponta como um dos gargalos com os quais vão se deparar Bolsonaro e o futuro "superministro" da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
Isso porque o aumento do tráfico de drogas e da incidência de crimes violentos parecem fortemente ligados, de acordo com analistas.
O policiamento militarizado e com foco no confronto, em detrimento de investigação e do uso de inteligência, foi opção equivocada que permitiu o fortalecimento e a nacionalização de facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital, o PCC. A avaliação é de Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (Nev) da Universidade de São Paulo.
Para Paes Manso, é preciso que a polícia substitua as ações ostensivas por operações que mirem a prisão de traficantes que impõem seu poder com emprego de violência.
"Foi justamente o policiamento ostensivo de bairro, com aprisionamento aleatório e excessivo que levou ao fortalecimento das gangues prisionais. É preciso identificar e prender os tiranos armados - traficantes, milicianos, policiais de grupos de extermínio - que impõem seus interesses com violência. Nesses locais imperam duas leis: a do silêncio e a do mais forte."
Operando de dentro dos presídios paulistas, o PCC estendeu seus negócios desde meados da década passada. Atualmente, exporta cocaína para Europa e África e avança para brigar pela hegemonia do tráfico no Brasil.
Desde 2016, por exemplo, a facção ganha terreno na Amazônia, segundo o serviço de inteligência da Polícia Federal (PF) e a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM).
Pesquisador da história do PCC, o procurador de Justiça Marcio Christino, de São Paulo, diz que a rota Bolívia-Paraguai-Brasil já é controlada pela facção.
A disputa na região Norte chegou a ponto de o PCC contratar mercenários, conhecidos como "piratas", para atacar e roubar carregamentos de organizações adversárias e assassinar os responsáveis pelo transporte.
Segundo o procurador, um último obstáculo impede que o PCC controle o tráfico na Amazônia: o domínio por organizações inimigas, como o Comando Vermelho e a Família do Norte, da chamada "rota do Peru".
As cadeias superlotadas são consideradas terreno fértil para o recrutamento de mão de obra pelas facções. A situação pode se tornar ainda mais "explosiva" com a promessa de Bolsonaro de acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias, segundo Ângelo Roncalli, ex-diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
"Quer adotar medidas mais duras, dar uma resposta à sociedade? Faça isso, mas antes crie as condições necessárias", afirma Roncalli, sugerindo, por exemplo, a construção de unidades por meio de parcerias público-privadas (PPPs), como medida para auxiliar a "equilibrar o sistema".
Havia cerca de 603 mil detentos nas penitenciárias estaduais de todo o Brasil, para aproximadamente 400 mil vagas, conforme dados divulgados em agosto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Números do FBSP desenham um quadro ainda mais grave. Em 2016, havia 729 mil pessoas encarceradas, das quais 689 mil estavam sob custódia do sistema penitenciário, e 39,5 mil, das polícias civil, militar e federal. Dessa massa, 37% estavam em situação de detenção provisória, ainda sem julgamento do Judiciário. Estão detidos temporária ou preventivamente, ou foram apanhados em flagrante.
As demais propostas de endurecimento apresentadas por Bolsonaro também são criticadas pelos especialistas. Além do fim da progressão de penas e das saídas temporárias, o presidente eleito prometeu a redução da maioridade penal e maior "retaguarda jurídica" para policiais e Forças Armadas, com adoção do chamado 'excludente de ilicitude' - medida que seria aplicada automaticamente a agentes do Estado que matem em serviço, eliminando a necessidade de investigação.
"Bolsonaro foi mais evasivo nessa discussão, trabalhando com propostas populistas, como o excludente de ilicitude, para ganhar voto", diz Paes Manso.
Outra proposta realizada pelo presidente eleito foi a flexibilização da posse e do porte de armas de fogo. No ano passado, 119.484 armas foram apreendidas em todo o território nacional, 94,9% das quais não foram cadastradas pela Polícia Federal. Além disso, "13.782 armas legais passaram para o circuito ilegal em 2017", diz a equipe do FBSP em relatório. "É como se um mês de trabalho das polícias tivesse se perdido."
A nomeação de Moro, por sua vez, é vista com menos ressalvas. Sócio da GO Associados e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito de São Paulo, Fernando Marcato elogia a proposta feita pelo futuro ministro de aproximar as forças policiais estaduais das federais e do Exército. Vale lembrar que algo semelhante já havia sido sugerido pelo atual ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.
"Inteligência sempre é importante, com poucos ou muitos recursos", diz. "Mas em uma crise fiscal é o único caminho."
Dados do FBSP mostram que, no ano passado, os gastos de União, Estados e municípios com segurança pública somaram R$ 84,7 bilhões. Isso foi o equivalente a 2,5% de todas as despesas do setor público, incluindo gastos primários e com encargos da dívida pública. A média da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 4,5%. Per capita, as despesas do público brasileiro com segurança foram de R$ 408,13.
Paes Manso também destaca a importância do maior uso da inteligência. "Os Estados Unidos têm uma fronteira de 3 mil quilômetros com o México e não conseguiram barrar a entrada de cocaína. Imagine o Brasil, com uma fronteira de 17 mil quilômetros. É uma ilusão achar que [o tráfico] será erradicado", diz. "É preciso entender o funcionamento dessa indústria, com troca de informações, mais conhecimento das rotas de escoamento, onde e como o dinheiro será lavado, conhecer quem são os chefes e a hierarquia do poder."
Já a tendência "punitiva" sinalizada pelo futuro ministro da Justiça até aqui é "mais complicada" e "preocupa", em razão da superlotação do sistema prisional, na opinião de Marcato.
Para Paes Manso, há aspectos positivos e negativos na importância que o futuro ministro promete dar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). "Isso é relevante para fragilizar economicamente esses grupos criminosos, que se financiam pelo dinheiro dos negócios ilícitos. A questão é que o Moro tem falado muito a respeito de facções e Coaf, mas pouco sobre redução de homicídios em bairros pobres, que produzem traumas imensos para os moradores", diz. "Guerra constante é enxugamento de gelo nos bairros pobres, não resolve."
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