sexta-feira, 3 de agosto de 2018

José de Souza Martins: A identidade perdida

- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

Vamos nos aproximando das eleições que nos dirão se há luz no fim do túnel ou se somos prisioneiros do túnel sem saída. Temos a responsabilidade de decidir e nem mesmo sabemos quem somos. Desde o regime militar, que nos dividiu como povo, já não temos uma referência identitária que nos una. Os fatores de desagregação da sociedade brasileira se agravaram. Novas identidades surgiram da fragmentação.

Progredimos, na medida em que são identidades de algum modo libertadoras, que permitem aos novos sujeitos ser mais pessoas e menos máscaras, ainda que muita gente se sinta infeliz e mesmo raivosa com essas mudanças.

Da política ao gênero e à religião, de fato o país já é outro. Esse outro vai votar e poderá gerar a descontinuidade, intensificar a polarização e a intolerância autodefensiva e transformar o Brasil num país explicitamente conservador no lugar do país hipocritamente progressista que conhecemos. Seremos outro sendo o mesmo.

No plano político, há mais novidades do que se pensa. A mudança está tendo um efeito redutivo nas identidades políticas. O caso mais significativo é o do PT. O partido esmerou-se em radicalizar a política sem ir à raiz do processo político. Vive na fantasia de que o petismo é um país, e não um partido bloqueado por sua fragmentação.

Esse é apenas um dos aspectos do desaparecimento lento e progressivo da identidade de brasileiro. Outros grupos partidários e personagens caminham na mesma direção. Como Lula, Bolsonaro é um partido. Não se apoia na tese de um reencontro dos brasileiros com o seu destino. Pensa o Brasil como um país de opostos.

No plano estritamente social, a desagregação também está posta nos diferentes movimentos e ações de busca de identidade por diferentes grupos e categorias sociais. Como se já não tivéssemos uma. Nessa busca, há um desconforto com a condição histórica de brasileiro. O que exige reflexão e a análise. Na dilaceração da condição de brasileiro, de vários modos não queremos ser o que historicamente temos sido e somos.

É compreensível o empenho de que uma parcela da população, ainda que não majoritária, queira ter o reconhecimento de direitos relacionados com sua cor. A história social brasileira tem sido e continua sendo uma história de inferiorização social dos que carregaram o país nas costas. Na escravidão, o escravo negro e o indígena administrado, o pardo. Mas ainda nem acabada a escravidão, o branco importado pela imigração subvencionada que foi ocupar o lugar dos cativos nas fazendas de café numa nova concepção de pobreza e de opressão.

Os negros e os pardos têm suas identidades à flor da pele. O branco, não. No entanto, o branco, no Sudeste, o chamado colono, é em grande número originário das mesmas senzalas antes ocupadas por escravos. Ou o branco e o pardo exportados para a floresta amazônica na época da economia da borracha, subjugados pela servidão por dívida e pela violência do jagunço, não têm senão a falsa identidade de branco. Branco deixou de ser a cor da pele e passou a ser a cor do dinheiro e do poder, o que não é o caso de imenso número de brancos. Estamos racializando o que raça não é para ter uma identidade imaginária.

Outros grupos estão em busca da identidade que melhor corresponda ao que são, sentem e pensam. A diversificação dos gêneros tem uma história mais complexa do que aquela que é exibida carnavalescamente em desfiles e manifestações. Mal nos damos conta de que mesmo mulheres ricas no tempo da escravidão eram tratadas como meras coisas e no regime do dote de casamento eram compradas e vendidas. Eleitoralmente, mesmo na República, eram igualadas aos mendigos: não tinham direito de voto. Só foram tê-lo em 1932.

Uma longa luta para reconhecer nos seres do gênero feminino a condição de pessoas e de cidadãos. Início de um processo não concluído de reconhecimento da diversidade da condição humana na categoria de gênero e da própria diversidade antropológica dos gêneros.

Não é menor nem menos importante que a diversificação das identidades se manifeste também nas religiões. Só há pouco mais de cem anos, com a República, foi abolido o monopólio da fé oficial e estatal, o que deu lugar, para todos, à fé como um direito pessoal e subjetivo. A religiosidade se encontrou com a religião. Há abuso e manipulação, sem dúvida, na invenção de seitas de senso comum que alcancem o fiel no que ele tem de vulnerável. Mas há aí o progresso do direito individual ao exercício e à manifestação pública da crença pessoal.

No entanto, nas eleições deste ano, não será o filho dessas conquistas políticas, sociais e religiosas o eleitor que colocará o voto na urna. Será a intolerância que as desfigura, nega e o escraviza.

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José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

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