- O Estado de S. Paulo
Apoiadores de Bolsonaro querem ver o circo pegar fogo e dar um tranco num sistema que não os beneficia
Jair Bolsonaro consegue a proeza de unir os democratas (esquerda, liberais e conservadores) contra ele. Apesar disso, mantém posição de destaque na corrida eleitoral, catalisando descontentamentos, frustrações, ódios, preconceitos e ressentimentos de todo tipo.
Sua retórica assusta, pela falta de responsabilidade cívica, pelo que vocifera contra a democracia, pelo irracionalismo.
O capitão da reserva ameaça passar para o segundo turno, impulsionado por um conjunto de fatores: a fragmentação das esquerdas e do centro democrático, a imagem negativa que sobrou dos governos Dilma, o horror à corrupção e à insegurança, a degradação da política e a exuberante fragilidade do governo Temer. Somados ao desalento que se abateu sobre a população e à confusão ideológica, tais fatores fizeram com que Bolsonaro se estabilizasse.
Na política brasileira atual, sua função é dupla: fazer o elogio da ignorância e do despreparo, que são por ele “ressignificados” para se converterem em trunfo, e dar corpo a uma direita reacionária e retrógrada que há tempo não conseguia encontrar expressão.
Ele, porém, é um fenômeno mais amplo, de caráter simbólico e cultural. Mostra à perfeição o estado a que chegamos, de deterioração política, despreparo ético e miséria educacional. Dá voz à angústia coletiva de diversos segmentos sociais, que não são necessariamente de direita e estão integrados por pessoas que perderam a confiança na democracia e na política.
Seus apoiadores são pessoas que querem ver o circo pegar fogo, dar um tranco num sistema que fere suas convicções ou não os beneficia. Optam por uma “radicalização” que desorganize a vida para então reorganizá-la. O caráter misógino, racista e autoritário do candidato não lhes diz respeito, nem incomoda. Também não há qualquer preocupação com eventuais prejuízos derivados de uma vitória de Bolsonaro. Gostam de seu estilo bateu-levou, debochado e arrogante.
A antipolítica é a estrela-guia deles.
(a) O estilo rústico e agressivo do capitão, que faz graça com coisa séria, mexe com o “instinto” das pessoas, que o admiram por não levar desaforo para casa e confrontar o “politicamente correto”. Do alto de seus excessos, Bolsonaro é visto como uma espécie de “salvador” (um mito), patrono de um novo recomeço. São pessoas que querem mudar, mas que não conseguem qualificar direito o que seria a mudança.
Pensam em conseguir algo “diferente”, que elimine erros e falcatruas. Acreditam que Bolsonaro fará com que a economia deslanche e os empregos voltem, injustiças sejam eliminadas e a tranquilidade retorne. Nesse grupo entram também os que são pura e simplesmente autoritários, que acreditam na virtude da força e querem a volta da “ordem” a qualquer custo. É uma forma de obscurantismo.
(b) Os que são contra a corrupção veem no capitão um político íntegro. Não levam em conta, por exemplo, que durante sete mandatos como deputado, Bolsonaro somente conseguiu aprovar dois projetos. Foi uma nulidade no Congresso. Formou um pequeno bunker ao eleger os filhos como parlamentares. Além disso, foi integrante ativo de partidos repletos de práticas corruptas. Foi afastado do Exército por má conduta. A falta de critério e informação prevalece.
(c) Os que se preocupam com a insegurança e a violência impressionam-se com as falas duras de Bolsonaro, com suas ideias de redução da maioridade penal, de adoção da pena de morte, de castração química de estupradores, de liberação de armas para a população. Não levam em conta o efeito perverso que tais medidas teriam sobre a sociedade. Querem ver sangue, na linha olho por olho. Não se impressionam com as pérolas envenenadas do capitão, que contaminam os direitos humanos, a paz e a convivência democrática ao elogiarem a tortura contra adversários políticos. Acham que esse é o preço que se terá de pagar para que se recupere a moralidade perdida com a democratização. Uma nova era de trevas e fechamento não seria necessariamente um problema.
(d) Os que acreditam no “perigo comunista” acham que o capitão acabará com o predomínio das esquerdas, a quem culpam pelos dissabores da vida cotidiana, pela perda de renda familiar, pelo desemprego e pela corrupção. Bolsonaro se dedica a seduzir o eleitorado antipetista, mas também atrai parte dos eleitores que se desiludiram com o lulismo e querem se vingar do que consideram ser um “excesso” das esquerdas e do liberalismo progressista, especialmente no campo dos direitos e das postulações identitárias. A crítica à cultura e aos excessos do “politicamente correto” é uma de suas fronteiras de resistência.
Em suma, o exército de fieis que aplaudem Bolsonaro é composto por uma mistura de ingênuos, desiludidos, desinformados e protofascistas – todos mal-educados politicamente, crentes de que um braço forte no Estado fará a vida melhorar. É uma combinação de gente que se sente abandonada, de “fundamentalistas” e ressentidos, inimigos do sistema democrático e amigos da autoridade, para quem a política é algo a ser desprezado e a democracia pouco importa.
Bolsonaro pilota uma nau dos insensatos.
Seu jeito de ser segue um padrão: não interagir com os interlocutores, ignorar as perguntas incômodas, repisar as mesmas teses, incansavelmente, para saturar os ouvintes. Ele é sua própria referência, não quer dialogar nem conversar com ninguém que já não tenha aderido ao seu credo. Abusando de ataques, grosserias e absurdos, ele dá ordens ao séquito, que o acompanha sem vacilação.
Daí que as críticas ideológicas a ele não têm qualquer eficácia. Não penetram, ricocheteiam. Ao contrário, quanto mais se bate nele por essa via, mais ele cresce, como se estivesse imunizado contra tentativas de “desconstrução”. Para a população que o segue, tanto faz se fala mentiras ou verdades, tanto faz se gosta de tortura e ditadura. Sua rusticidade argumentativa o faz ser entendido pela massa de eleitores, ainda que não consiga seduzi-los por inteiro.
Bolsonaro não resulta de virtudes ou talentos: é um subproduto do contexto de crise e degeneração da política, um filho torto da metamorfose que sacode as estruturas sociais. Foi sendo engordado pelos erros dos democratas, pelas políticas públicas enviesadas dos últimos governos, pela demagogia rasteira, pela entrega da esquerda a políticos salvacionistas, com seu paternalismo assistencialista e sua retórica vazia e radicalizada.
Pode não ter tempo de TV e palanques poderosos, mas tem algo que falta nos demais: redes digitais ativas, fanáticos engajados, gente que acredita nele, que se sente abandonada pelos governos sucessivos e que não está nem aí para a democracia.
Bolsonaro é um perigo real. Mesmo que perca as eleições, terá dado o seu recado e alimentado o monstro que se pensava desativado. A nau dos insensatos já está a singrar os mares.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
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