- O Estado de S. Paulo
A greve foi uma das últimas entre as mais importantes conquistas das classes trabalhadoras.
Três livros são fundamentais para conhecer a lenta evolução dessa poderosa ferramenta, sem a qual os sindicatos e a negociação coletiva perdem eficácia. Refiro-me a História del Primero de Mayo, de Maurice Dommanget; Evolución de la Clase Obrera, de Jürgen Kuczynski; Greves de Ontem e de Hoje, de Georges Lefranc. Entre os brasileiros, destaca-se a obra de Everardo Dias, História das Lutas Sociais no Brasil. Igual relevância tem o capítulo referente aos conflitos entre capital e trabalho do Tratado de Sociologia de Trabalho, de Georges Friedman e Pierre Naville.
No Direito brasileiro, o exercício da greve só adquiriu maioridade com a Constituição de 1988. Até então submetido a rigorosas exigências legais, ele sofria incessante combate do governo. Prova disso eram as habituais sentenças de ilegalidade, seguidas por intervenções, cassações e prisões de dirigentes.
Empenhada em garantir conquistas até então inéditas, a nova Constituição dedicou ao direito de greve dois dispositivos: o artigo 9.º, aplicável às relações de trabalho no âmbito da iniciativa privada, de imediato regulamentado pela Lei n.º 7.903/89; e o inciso II do artigo 37, que, para completar a garantia de livre sindicalização, o estendeu aos servidores públicos, porém “nos termos e nos limites definidos em lei específica”.
Embora admitidos na esfera da iniciativa privada e na administração pública, são direitos visivelmente distintos. Na órbita das relações coletivas, a greve goza de ampla liberdade, exceto em serviços e atividades essenciais, correspondentes às “necessidades inadiáveis da comunidade”, conforme artigo 11 daquela lei. Como tal se entendem as que, desatendidas, ponham “em perigo eminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
Assistência médica e hospitalar, transporte público, controle de tráfego aéreo e compensação bancária são algumas atividades cuja paralisação causa graves transtornos aos usuários. Segundo a Constituição, greve em serviço essencial atrai pronta intervenção do Ministério Público, cabendo ao Judiciário trabalhista encerrar o conflito sem exame das reivindicações, o que nem sempre acontece.
Na administração pública a greve é direito retido. Falta-lhe, para regular exercício, a lei específica cobrada pelo referido inciso VII do artigo 37. Trata-se, no jargão jurídico, de prerrogativa em estado latente, inerte, apesar de transcorridos quase 27 anos desde que foi concebida no ventre da Assembleia Nacional Constituinte.
Para a empresa a parede faz parte do mundo real, do dia a dia, com a qual se defronta habitualmente. O desligar das máquinas afeta de imediato a produção. A mercadoria deixa de sair, o dinheiro para de entrar e as perdas não se resumem aos lucros, mas atingem a própria essência do negócio.
Servidores remunerados com dinheiro do contribuinte não deveriam ter direito à paralisação. O orçamento público não pode ser mera peça de ficção, sujeito a oscilações de acordo com a pressão das massas. Reparar o equívoco da Assembleia Constituinte parece-me impossível. Poderá ele, todavia, ser atenuado por lei que lhe imponha limites rígidos – e exclua serviços que jamais, e por nenhum motivo, poderão ser interrompidos.
Na iniciativa privada a greve afeta o dono; no serviço público, alcança a população. Interrompe atividades essenciais às camadas populares: educação, hospitais – municipais, estaduais e federais –, atendimento judiciário, segurança pública, Previdência Social, transportes coletivos.
O direito de greve deve ser interpretado por ângulos distintos: o de quem o exerce e o de quem o sofre. Na órbita privada, afetado é o empregador que se recusou a negociar, negociou mal ou se revelou disposto a correr os riscos do prejuízo. No setor público, atingido é o povo, nas camadas mais necessitadas.
A inexistência da lei específica é produto do descaso de sucessivos presidentes da República e da apatia dos partidos políticos. Ao chefe do Poder Executivo, e apenas a ele, compete a iniciativa do projeto, conforme prescreve o artigo 61, § 1.º, II, c, da Lei Maior. Desde 1988 nenhum presidente tratou do assunto com a seriedade inerente à matéria.
Com sua história marcada por apego ao tumulto, paralisações justas e injustas, legítimas e ilegítimas, tranquilas e selvagens, é impossível imaginar que o Partido dos Trabalhadores (PT) pudesse ser sensível ao caos provocado pela interrupção de atividades essenciais. Para o partido, greve é direito irrestrito, sem barreiras e sem pudor, como revelou na paralisação da Petrobrás em maio de 1995.
Entendo o PT. Não consigo, porém, aceitar o procedimento do PSDB, que, quando exerceu a Presidência da República, durante oito longos anos, foi incapaz de imprimir a necessária disciplina à norma constitucional. Conseguiu ver aprovadas pelo Congresso Nacional emendas constitucionais sobre a reeleição e a reforma do Poder Judiciário, além de leis complexas e polêmicas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas ignorou a greve no serviço público.
Para dirigentes sindicais de servidores públicos, a greve é um recurso legal, eis que se encontra inscrito na Lei Fundamental. Fazem-se esquecidos, no entanto, no que toca à obrigatoriedade de regulamentação. A milhões de prejudicados resta o tortuoso caminho do Poder Judiciário, no qual se atropelam decisões conflitantes relativas ao desconto dos dias de paralisação e à responsabilização civil de sindicatos e de seus dirigentes.
Refém indefesa de constantes greves em serviços públicos vitais, decretadas por minorias organizadas, a população brasileira permanece à espera da lei específica que ponha termo ao seu sofrimento.
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*Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do trabalho e presidente do tribunal superior do trabalho (TST)
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