Blog Horizontes Democráticos
Autocrata, ignaro e incapaz de agir politicamente dentro das regras democráticas estabelecidas pela Constituição, como está sendo evidenciado neste feriado de 7 de setembro, desde que ascendeu ao poder o presidente Jair Bolsonaro afronta reiteradamente as instituições do Estado democrático de Direito, disseminando insegurança jurídica, levando a economia a se deteriorar e deflagrando uma crise de governabilidade permanente.
Em seu primeiro ano de gestão, ele afirmou
que devia lealdade apenas ao “povo brasileiro”, desprezando a mediação
parlamentar e, por consequência, o perfil liberal da democracia brasileira. Já
no segundo ano, ao participar de agressões dominicais ao Supremo Tribunal
Federal, defendendo o uso da violência contra alguns de seus ministros, passou
a testar os limites da Constituição. E agora, em seu terceiro ano de mandato,
quando praticamente todas as iniciativas de seu governo tiveram sua
constitucionalidade questionada na corte, o presidente da República se
apropriou dos festejos da Independência para promover uma manifestação por ele
classificada como um “ultimato” a dois ministros. Ele se esquece — ou melhor,
não aceita — que a Constituição promulgada após a redemocratização do País
tenha conferido ao STF o poder de rever a constitucionalidade dos atos dos
demais poderes.
Diante dessa escalada, dois fatos passaram
a ocupar as manchetes dos jornais nos últimos tempos. De um lado, lideranças
políticas, governadores e entidades empresariais começaram a propor sucessivos
diálogos entre os presidentes dos três Poderes, e até um pacto
interinstitucional, com o objetivo de preservar a ordem jurídica e a
democracia. De outro lado, em decorrência das diatribes autoritárias
presidenciais e de projetos de lei e propostas de emenda constitucional sem
mínima consistência jurídica, bem como da aprovação pelo Legislativo de várias
leis economicamente insensatas, a vida política do país tornou-se cada vez mais
dependente das posições da cúpula do Poder Judiciário.
Esses dois fatos dão a medida da profunda
crise institucional que o País atravessa. No primeiro caso, como a
judicialização da vida política ocorreu somente porque o Executivo não soube
e/ou não quis formar uma coalização majoritária para governar e porque as
lideranças do Legislativo necessitaram de uma arbitragem externa por não
conseguir resolver seus impasses internos, o que uma corte suprema pode
oferecer nesses diálogos a não ser fazer cumprir o que a Constituição
determina?
Mas não é só. O STF é um órgão colegiado e seu presidente tem uma ação basicamente administrativa. Nos julgamentos, pode sugerir ou orientar seus pares nos julgamentos. Contudo, não pode não impor sua vontade. Desse modo, como firmar um pacto com o chefe do Executivo, comprometendo-se em nome da corte e se responsabilizando por seus resultados? Ao agir assim, não estaria entregando a outros Poderes a última palavra quanto a certas matérias decididas por uma corte suprema? Em suma, de que modo o STF pode abrir mão de sua atribuição funcional de julgar como inconstitucional uma iniciativa do inquilino do Palácio do Planalto só porque ela foi politicamente negociada em troca de uma promessa do presidente da República de que passará a respeitar o Judiciário? Além de paradoxal, esse cenário seria a negação da democracia, sob a justificativa de preservá-la.
Já o segundo fato aponta uma outra
importante faceta da crise institucional. Ainda que Bolsonaro e seu entorno
militar insistam em afirmar que a Constituição não os deixa governar, eles se
esquecem de que, se há de uma trava constitucional limitando a
discricionaridade dos governantes na gestão pública, ela é uma decorrência da
ditadura militar que até hoje justificam, defendem e canonizam. Ainda que
Bolsonaro e seu entorno militar insinuem que a Constituição de 1988 não os
deixa governar, eles se esquecem de que, se há uma trava constitucional, ela se
justifica historicamente, ainda que de maneira indireta, como proteção contra
práticas tornadas rotineiras na ditadura militar que até hoje eles justificam,
defendem e canonizam.
Os abusos e absurdos cometidos pelos
militares entre março de 1964 e 14 de março de 1985 foram tantos que não restou
aos constituintes de 1988 outra saída a não ser incluir no texto constitucional
– e assegurar sua preservação por meio da figura jurídica das cláusulas
pétreas, em alguns casos — uma série de dispositivos não só no campo das
liberdades fundamentais e das garantias públicas, mas, igualmente, em matérias
econômicas e sociais. A ordem constitucional daí resultante foi de
caráter aspiracional, não só no sentido de assegurar direitos básicos,
mas, também, de caminhar rumo a uma sociedade menos desigual e iníqua e mais
justa e igualitária.
Resultante de uma circunstância histórica,
essa ordem constitucional foi concebida de modo deliberadamente abrangente,
transferindo questões do campo da política para o âmbito do direito positivo.
Foi uma estratégia pensada para tentar impedir que, nas eleições futuras, as
novas configurações do Legislativo revogassem esses direitos e essas
orientações programáticas.
Dessa maneira, conforme lembra o
historiador J. Reinaldo de Lima Lopes, como nem mesmo as propostas de emendas
constitucionais poderiam reduzi-los, a saída que restou aos governos das
chamada Nova República foi recorrer à judicialização e à hermenêutica jurídica.
Mais precisamente, à tentativa de fazer com que o STF, devidamente demandado
por ações de controle de constitucionalidade, interpretasse os dispositivos da
Carta conforme as respectivas agendas de cada governo. Isso ocorreu em todas as
gestões presidenciais após a redemocratização, desde a primeira eleição de
Fernando Collor pelo voto direto, em 1989, até a de Bolsonaro, em 2018, o que
levou as ações de constitucionalidade a judiciais a se multiplicarem no STF. Só
nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, por exemplo,
foram propostas perante o STF mais de 4 mil Ações Diretas de
Inconstitucionalidade. Na mesma corte, o número de novos processos por
exercício passou de 18,5 mil em 1990, para 160,4 mil em 2002, segundo as
estatísticas do Conselho Nacional de Justiça.
Foi a partir daí que surgiu um conceito
equivocado, o de ativismo judicial, utilizado por quem tinha a expectativa de
que os ministros da corte alterassem o alcance dos direitos e das orientações
programáticas da Constituição por vias hermenêuticas. Também foi a partir daí
que começaram as pressões contra os magistrados “ativistas” — o que se
exacerbou quando o atual governo autocrata, assessorado por advogados públicos
medíocres e por juristas oportunistas, passou a afrontar o Supremo e a convocar
manifestações de protesto sob a justificativa de dar “um ultimato” a dois de
seus onze ministros.
Com isso, o círculo se fecha. Caso ceda às
pressões, aceitando as propostas de um diálogo entre os três Poderes e de um
pacto interinstitucional, ou, então, curvando-se a manifestações populares
organizadas com explícito viés golpista, os ministros do STF perderão sua
independência, que está na essência de sua razão de existir. Por consequência,
teriam sua credibilidade e legitimidade comprometidas, na medida em que
estariam negando a Constituição que juraram cumprir. Resistir às diferentes
estratégias antidemocráticas, é claro, tem um custo. Mas ele nunca será mais
alto do que o preço a ser pago por aquele que, entre os onze ministros da
corte, acabar com sua imagem enxovalhada pela subserviência, deixando-se dobrar
à ofensiva antidemocrática bolsonarista.
(Publicado originalmente em Estado da Arte, 07 de setembro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-07-setembro-dialogos-stf/)
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