O STF não está imune a críticas, mas o objetivo da extrema-direita é desqualificar por completo a atuação da Corte
O Supremo Tribunal Federal vem impulsionando
as denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o
ex-Presidente da República Jair Bolsonaro e outras 33 pessoas pelos crimes de
organização criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de
Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio
tombado. Por essas razões, intensificam-se as críticas aos atos de persecução
penal e jurisdicionais da Corte Constitucional.
Críticas não são apenas aceitáveis, mas desejáveis em qualquer sistema democrático. A posição assumida pelo Judiciário para a vida em sociedade o coloca, invariavelmente, sob o crivo do questionamento. Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a última palavra em termos de interpretação da ordem jurídica. Em países como os latino-americanos, providos de Constituições analíticas, diversas decisões sobre da vida pública, em comunidade e dos comportamentos humanos são transferidas para o âmbito jurisdicional.
O escrutínio público a que se sujeita o
Judiciário fica ainda mais latente quando estamos diante de um órgão de cúpula
que, cotidianamente, é provocado a se manifestar sobre pautas sociais,
conflitos entre poderes e federativos, entre outros temas. Com relação às
competências exercidas pelo Supremo em matéria criminal, a grande maioria das
críticas é descabida sob a perspectiva jurídica e, o que é mais grave, serve a
propósitos escusos.
Rememoremos que o ex-presidente da
República, Jair
Bolsonaro, proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e
às urnas eletrônicas. Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória
do presidente Lula nas eleições de 2022 e estimulou atos antidemocráticos em
frente aos quartéis. Não podemos esquecer ainda da ruidosa atuação da Polícia
Rodoviária Federal com o intuito de impedir o exercício do direito ao voto, dos
atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília em dezembro de 2022 e
do fatídico dia 8 de janeiro
de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos da
República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.
Se antes a palavra “golpe” pudesse
significar, no âmbito das ciências humanas em geral, uma reprovabilidade do
jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a
prática de um crime contra as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com
todos os elementos do tipo constantes do artigo 359-M do Código Penal.
É a primeira vez na nossa história que
militares, ministros, presidente da República e outros servidores públicos da
alta administração do Estado são denunciados por tentativa de golpe de Estado.
A finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir:
precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira
não aceita ataques violentos à Constituição e à democracia.
A gradual fragilização dos espaços e dos
sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu
através de específicos artifícios enfraquecedores do pacto civilizatório e das
instituições democráticas. O bolsonarismo foi muito além da mera estratégia
política de reprodução e dissipação. As provas são claras, consistentes e
revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa democracia. Esses atos
atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito. Não estamos
falando apenas de discursos golpistas, mas de ações concretas, como planos de
sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram em risco a própria
democracia brasileira.
É nesse contexto que afirmamos,
enfaticamente, que a defesa da nossa democracia constitucional pelo Supremo não
está isenta de críticas. É preciso que se realize um incessante e comprometido
escrutínio dos procedimentos e dos produtos da persecução do Estado. No
entanto, determinadas disfuncionalidades não desqualificam, in totum, a atuação
do Supremo.
Ao contrário de patologias do sistema, constatamos algumas disfunções que devem ser criticadas e corrigidas pelos específicos mecanismos recursais da processualística. É dentro desse campo que deve circunscrever a crítica. A confusão, além de equívoco epistêmico no âmbito jurídico, favorece, no âmbito político, aos propósitos da extrema-direita, sedenta na descredibilização dos lucus de resistência e na apropriação fraudulenta da verdade.
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital,
em 02 de abril de 2025.
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