Valor Econômico
Presidente da Câmara precisa garantir o equilíbrio entre os grupos políticos, mas não pode deixar de lado uma proposta que o torne não só o chefe de um Poder
O novo presidente da Câmara federal, Hugo
Motta, terá um desafio enorme pela frente. Sempre é muito complexo comandar
essa casa congressual, e a maioria dos seus comandantes desde a Nova República
enfrentou muitas dificuldades políticas posteriores, quase como uma maldição
relacionada ao cargo. Mas há três fatores contextuais que tornam essa tarefa
ainda mais complicada: a substituição de uma liderança muito forte, o
desequilíbrio institucional vigente e o fortalecimento do discurso e de
práticas antissistêmicas. Para fugir do pior, Motta dependerá da escolha de
suas agendas.
Na verdade, Motta só se sairá bem se tiver uma dupla agenda: uma voltada para dentro, baseada no que é consensual entre os deputados e que possa fortalecer o projeto de reeleição da maioria deles; e outra orientada para fora, capaz de lhe dar autonomia e estatura frente à sociedade e à classe política. Em outras palavras, ele precisa garantir o equilíbrio entre os grupos políticos parlamentares, mas não poderá deixar de lado a construção de uma proposta que o torne não só o chefe formal de um Poder, mas uma liderança política efetiva.
A construção desse novo caminho parece ter
começado bem pela expressiva votação que teve, obtendo apoio da quase
totalidade do Centrão - eixo do poder na Câmara -, como também da maioria dos
deputados do PT e do PL. Mas o dia seguinte da vitória não será fácil. O
primeiro obstáculo aqui é o fantasma do antecessor. Arthur Lira foi um dos
presidentes mais poderosos da casa, talvez só competindo com Ulysses Guimarães.
Ao ter escolhido falas de Ulysses para o seu discurso de posse, Motta foi além
de uma homenagem à visão democrática do grande líder da Constituinte. Ele
buscou uma bússola para seu mandato.
Ulysses foi o principal líder na criação da
nova institucionalidade democrática, um político respeitado por toda a
sociedade e pelos pares de todos os partidos. Foi essa régua que Motta colocou
para si mesmo. O sarrafo de comparação é bem alto, mas melhor mirar algo
difícil do que se contentar com a mediocridade. Até porque se for apenas um
zelador da vida dos deputados, o novo presidente vai se tornar um líder fraco
ao longo do tempo, especialmente quando vierem as eleições de 2026, com o
possível acirramento entre os polos do sistema político e o aumento da
desconfiança de boa parte da sociedade em relação à classe política.
As condições do exercício do poder são
diferentes da de seu antecessor. Porém, é possível aprender com a lógica que
guiou o presidente anterior. Lira construiu tanto uma agenda para fortalecer os
deputados federais em sua vida política, quanto abraçou temáticas que
construíam pontes com a sociedade e com o mercado, especialmente o projeto de
reforma tributária. Assim, ao mesmo tempo que ele foi o pai do novo modelo
amplo, flexível, individualizado ao extremo e pouco transparente das emendas
parlamentares - particularmente em sua porção apelidada de “orçamento secreto”
-, também pôde se colocar como uma liderança capaz de ser o condutor de uma
grande transformação institucional no campo dos impostos, o que deixará seu
nome na história.
Se for seguir esse modelo, ficam duas
perguntas para Motta. Primeira: qual seria sua agenda para conquistar o coração
corporativo de seus colegas? Tentar manter a todo custo o atual modelo de
emendas, num confronto sem acordo com o Supremo Tribunal Federal? Essa tarefa
parece difícil. No entanto, mais obscura é sua agenda externa. Aí vem a segunda
questão: qual será o similar da reforma tributária para o novo presidente da
Câmara? O mais provável é que seja mais de um tema, pela dificuldade de
encontrar agora uma transformação tão ampla como a modificação da tributação do
consumo, mudança legal que demorou quase 40 anos para ser feita.
A estratégia de Lira não foi apenas um
caminho de sucessos. Ele deixou muitas arestas políticas. No plano interno da
Câmara, sua gestão foi marcada por um binômio paradoxal: ou predominava uma
hipercentralização decisória que burlou regras básicas de tramitação
legislativa e transformou Lira num quase rei, ou então vigorava a desordem e
confusão que significou a perda cotidiana dos elementos mínimos do decoro
parlamentar.
O saldo final do mandato de Lira foi o
enfraquecimento das instâncias coletivas da Câmara e o reforço da polarização
histérica e midiática que marca parte do comportamento dos deputados,
especialmente os de oposição. Uma combinação estranha, e perniciosa, de
concentração e fragmentação do poder. Não por acaso, ouvi de um assessor da
casa: há emendas que só o Lira sabe quem foi o beneficiado, mas a implementação
desses recursos é tão difusa e geralmente patrimonialista que os escândalos de
corrupção que já começam a pipocar enfraquecem o próprio modelo definido
centralizadamente. Essa conta pode cair nas costas de seu criador.
Mais complicado ainda é o cenário externo à
Câmara, marcado por alto grau de conflito, descoordenação e falta de confiança.
A começar pelas brigas de Lira com Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Se
tivessem sido apenas conflitos eventuais, que o tempo se encarrega de apagar,
tudo bem. Todavia, houve consequências institucionais na tramitação dos
projetos em ambas as casas, com a criação de regras que favoreceram o poder
decisório dos deputados frente aos senadores. Manter esse modelo, contra uma
liderança superexperiente como Davi Alcolumbre, será um grande erro de Motta.
Reconstruir esses laços seria um passo essencial para ter dois anos menos
atribulados e mais produtivos de mandato.
Tarefa mais complexa será reconstruir os
canais de diálogo e negociação com o STF. Há alguns assuntos que hoje colocam
os congressistas em rota de colisão com o Supremo, ou pelo menos com parte de
seus membros. O mais explosivo tem a ver com a punição e cassação de
parlamentares, o que para a oposição deve agregar a possível condenação do
ex-presidente Bolsonaro. Mas a maioria dos problemas tem a ver com o argumento
de que está havendo uma forte judicialização da política e das políticas
públicas, retirando do Congresso Nacional decisões que são de sua alçada.
Um tema junta as duas problemáticas: a
decisão recente do ministro Flávio Dino sobre a falta de transparência,
rastreabilidade e critérios administrativos na distribuição de parte das
emendas parlamentares. Esse é o assunto que mais pode unir todo o conjunto de
deputados do lado do comando da Câmara. Eis aqui um ponto inescapável, talvez o
mais vital, para que Hugo Motta conquiste de vez o coração dos colegas.
Além da negociação com o STF, a reconstrução
do modelo das emendas terá mais chances de acontecer se Motta envolver e
conseguir o apoio do Executivo. Um caminho mais alvissareiro seria colar melhor
parte das emendas hoje opacas e patrimonialistas em programas cuja execução
seja mais transparente e dialogue com uma perspectiva mais universalista de
política pública. É fundamental responder às bases locais, em lugares que de
fato muitas vezes são esquecidos pelos ministérios, mas isso será mais efetivo
caso haja uma lógica administrativa maior, com metas, monitoramento, avaliação
e controle da implementação e de seus resultados. Do contrário, os escândalos
vão enterrar de vez o projeto de autonomia do Congresso Nacional, depois de ter
se livrado dos muitos anos de pires na mão perante o governo.
O fato é que Motta só conseguirá ter uma
Câmara menos beligerante e um novo relacionamento com os Poderes se tiver uma
agenda para chamar de sua. É provável que não haja um único tema unificador
desse projeto. Pode-se, contudo, elencar uma lista de questões legislativas que
configurem uma visão de Estado, e não um atropelado de medidas meramente
conjunturais. Motta pode construir com seus colegas, no diálogo com outros
Poderes e a sociedade, essa proposta mais ampla e voltada para o futuro.
Parte do poder dessa agenda se mensura pelo
impacto na melhoria da qualidade do gasto público, no aperfeiçoamento de
políticas públicas como educação, mudança climática e segurança pública, ou na
redefinição de institucionalidades, como o lugar dos militares na política e o
combate a privilégios da alta burocracia brasileira, mais particularmente
dentro do Sistema de Justiça. Mas parte da efetividade desse projeto derivará
do diálogo com as demandas sociais, constatando quais são as prioridades mais
prementes e aquilo que vai mudar a vida de nossos filhos e netos.
Montar uma agenda de Estado que combine a
lógica técnica com a dinâmica política e social do país é o principal caminho
para Hugo Motta se estabelecer como uma liderança central no tabuleiro
político, com possibilidades de continuar seu projeto no próximo biênio. Sem
uma agenda efetiva, seu mandato será um zigue-zague sem fim, que culminará num
líder fraco em boa parte da disputa acirrada de 2026.
Mais do que isso, se o Congresso Nacional não
mudar a visão negativa que o eleitorado tem dele hoje, as candidaturas
antissistema, muitas mais exóticas do que vimos até agora, vão dominar Brasília
em 2027. Isso levaria a desestruturação do Centrão, colocando em seu lugar algo
muito pior, mais próximo da lógica trumpista de destruir a política democrática
baseada no diálogo e na negociação. Uma boa liderança de Motta é um dos passos
essenciais para evitar esse futuro desastroso e distópico.
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