sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Fernando Abrucio - Hugo Motta só terá força se tiver uma agenda

Valor Econômico

Presidente da Câmara precisa garantir o equilíbrio entre os grupos políticos, mas não pode deixar de lado uma proposta que o torne não só o chefe de um Poder

O novo presidente da Câmara federal, Hugo Motta, terá um desafio enorme pela frente. Sempre é muito complexo comandar essa casa congressual, e a maioria dos seus comandantes desde a Nova República enfrentou muitas dificuldades políticas posteriores, quase como uma maldição relacionada ao cargo. Mas há três fatores contextuais que tornam essa tarefa ainda mais complicada: a substituição de uma liderança muito forte, o desequilíbrio institucional vigente e o fortalecimento do discurso e de práticas antissistêmicas. Para fugir do pior, Motta dependerá da escolha de suas agendas.

Na verdade, Motta só se sairá bem se tiver uma dupla agenda: uma voltada para dentro, baseada no que é consensual entre os deputados e que possa fortalecer o projeto de reeleição da maioria deles; e outra orientada para fora, capaz de lhe dar autonomia e estatura frente à sociedade e à classe política. Em outras palavras, ele precisa garantir o equilíbrio entre os grupos políticos parlamentares, mas não poderá deixar de lado a construção de uma proposta que o torne não só o chefe formal de um Poder, mas uma liderança política efetiva.

A construção desse novo caminho parece ter começado bem pela expressiva votação que teve, obtendo apoio da quase totalidade do Centrão - eixo do poder na Câmara -, como também da maioria dos deputados do PT e do PL. Mas o dia seguinte da vitória não será fácil. O primeiro obstáculo aqui é o fantasma do antecessor. Arthur Lira foi um dos presidentes mais poderosos da casa, talvez só competindo com Ulysses Guimarães. Ao ter escolhido falas de Ulysses para o seu discurso de posse, Motta foi além de uma homenagem à visão democrática do grande líder da Constituinte. Ele buscou uma bússola para seu mandato.

Ulysses foi o principal líder na criação da nova institucionalidade democrática, um político respeitado por toda a sociedade e pelos pares de todos os partidos. Foi essa régua que Motta colocou para si mesmo. O sarrafo de comparação é bem alto, mas melhor mirar algo difícil do que se contentar com a mediocridade. Até porque se for apenas um zelador da vida dos deputados, o novo presidente vai se tornar um líder fraco ao longo do tempo, especialmente quando vierem as eleições de 2026, com o possível acirramento entre os polos do sistema político e o aumento da desconfiança de boa parte da sociedade em relação à classe política.

As condições do exercício do poder são diferentes da de seu antecessor. Porém, é possível aprender com a lógica que guiou o presidente anterior. Lira construiu tanto uma agenda para fortalecer os deputados federais em sua vida política, quanto abraçou temáticas que construíam pontes com a sociedade e com o mercado, especialmente o projeto de reforma tributária. Assim, ao mesmo tempo que ele foi o pai do novo modelo amplo, flexível, individualizado ao extremo e pouco transparente das emendas parlamentares - particularmente em sua porção apelidada de “orçamento secreto” -, também pôde se colocar como uma liderança capaz de ser o condutor de uma grande transformação institucional no campo dos impostos, o que deixará seu nome na história.

Se for seguir esse modelo, ficam duas perguntas para Motta. Primeira: qual seria sua agenda para conquistar o coração corporativo de seus colegas? Tentar manter a todo custo o atual modelo de emendas, num confronto sem acordo com o Supremo Tribunal Federal? Essa tarefa parece difícil. No entanto, mais obscura é sua agenda externa. Aí vem a segunda questão: qual será o similar da reforma tributária para o novo presidente da Câmara? O mais provável é que seja mais de um tema, pela dificuldade de encontrar agora uma transformação tão ampla como a modificação da tributação do consumo, mudança legal que demorou quase 40 anos para ser feita.

A estratégia de Lira não foi apenas um caminho de sucessos. Ele deixou muitas arestas políticas. No plano interno da Câmara, sua gestão foi marcada por um binômio paradoxal: ou predominava uma hipercentralização decisória que burlou regras básicas de tramitação legislativa e transformou Lira num quase rei, ou então vigorava a desordem e confusão que significou a perda cotidiana dos elementos mínimos do decoro parlamentar.

O saldo final do mandato de Lira foi o enfraquecimento das instâncias coletivas da Câmara e o reforço da polarização histérica e midiática que marca parte do comportamento dos deputados, especialmente os de oposição. Uma combinação estranha, e perniciosa, de concentração e fragmentação do poder. Não por acaso, ouvi de um assessor da casa: há emendas que só o Lira sabe quem foi o beneficiado, mas a implementação desses recursos é tão difusa e geralmente patrimonialista que os escândalos de corrupção que já começam a pipocar enfraquecem o próprio modelo definido centralizadamente. Essa conta pode cair nas costas de seu criador.

Mais complicado ainda é o cenário externo à Câmara, marcado por alto grau de conflito, descoordenação e falta de confiança. A começar pelas brigas de Lira com Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Se tivessem sido apenas conflitos eventuais, que o tempo se encarrega de apagar, tudo bem. Todavia, houve consequências institucionais na tramitação dos projetos em ambas as casas, com a criação de regras que favoreceram o poder decisório dos deputados frente aos senadores. Manter esse modelo, contra uma liderança superexperiente como Davi Alcolumbre, será um grande erro de Motta. Reconstruir esses laços seria um passo essencial para ter dois anos menos atribulados e mais produtivos de mandato.

Tarefa mais complexa será reconstruir os canais de diálogo e negociação com o STF. Há alguns assuntos que hoje colocam os congressistas em rota de colisão com o Supremo, ou pelo menos com parte de seus membros. O mais explosivo tem a ver com a punição e cassação de parlamentares, o que para a oposição deve agregar a possível condenação do ex-presidente Bolsonaro. Mas a maioria dos problemas tem a ver com o argumento de que está havendo uma forte judicialização da política e das políticas públicas, retirando do Congresso Nacional decisões que são de sua alçada.

Um tema junta as duas problemáticas: a decisão recente do ministro Flávio Dino sobre a falta de transparência, rastreabilidade e critérios administrativos na distribuição de parte das emendas parlamentares. Esse é o assunto que mais pode unir todo o conjunto de deputados do lado do comando da Câmara. Eis aqui um ponto inescapável, talvez o mais vital, para que Hugo Motta conquiste de vez o coração dos colegas.

Além da negociação com o STF, a reconstrução do modelo das emendas terá mais chances de acontecer se Motta envolver e conseguir o apoio do Executivo. Um caminho mais alvissareiro seria colar melhor parte das emendas hoje opacas e patrimonialistas em programas cuja execução seja mais transparente e dialogue com uma perspectiva mais universalista de política pública. É fundamental responder às bases locais, em lugares que de fato muitas vezes são esquecidos pelos ministérios, mas isso será mais efetivo caso haja uma lógica administrativa maior, com metas, monitoramento, avaliação e controle da implementação e de seus resultados. Do contrário, os escândalos vão enterrar de vez o projeto de autonomia do Congresso Nacional, depois de ter se livrado dos muitos anos de pires na mão perante o governo.

O fato é que Motta só conseguirá ter uma Câmara menos beligerante e um novo relacionamento com os Poderes se tiver uma agenda para chamar de sua. É provável que não haja um único tema unificador desse projeto. Pode-se, contudo, elencar uma lista de questões legislativas que configurem uma visão de Estado, e não um atropelado de medidas meramente conjunturais. Motta pode construir com seus colegas, no diálogo com outros Poderes e a sociedade, essa proposta mais ampla e voltada para o futuro.

Parte do poder dessa agenda se mensura pelo impacto na melhoria da qualidade do gasto público, no aperfeiçoamento de políticas públicas como educação, mudança climática e segurança pública, ou na redefinição de institucionalidades, como o lugar dos militares na política e o combate a privilégios da alta burocracia brasileira, mais particularmente dentro do Sistema de Justiça. Mas parte da efetividade desse projeto derivará do diálogo com as demandas sociais, constatando quais são as prioridades mais prementes e aquilo que vai mudar a vida de nossos filhos e netos.

Montar uma agenda de Estado que combine a lógica técnica com a dinâmica política e social do país é o principal caminho para Hugo Motta se estabelecer como uma liderança central no tabuleiro político, com possibilidades de continuar seu projeto no próximo biênio. Sem uma agenda efetiva, seu mandato será um zigue-zague sem fim, que culminará num líder fraco em boa parte da disputa acirrada de 2026.

Mais do que isso, se o Congresso Nacional não mudar a visão negativa que o eleitorado tem dele hoje, as candidaturas antissistema, muitas mais exóticas do que vimos até agora, vão dominar Brasília em 2027. Isso levaria a desestruturação do Centrão, colocando em seu lugar algo muito pior, mais próximo da lógica trumpista de destruir a política democrática baseada no diálogo e na negociação. Uma boa liderança de Motta é um dos passos essenciais para evitar esse futuro desastroso e distópico.

 

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