Folha de S. Paulo
Identitários estão confortáveis para dar
justificativa biológica a seus atos de revanche
Nas últimas semanas, tivemos uma amostra impressionante do que significa "dobrar a aposta" quando se trata das estratégias de assédio identitário. De costas quentes, agora que uma corte de Justiça afirmou que o racismo é o único crime exclusivo de uma raça –uma vez que só os brancos podem cometê-lo–, militantes identitários começam a se sentir confortáveis para dar uma justificativa biológica e genética à sua glorificação do ressentimento e aos seus atos de revanche.
Primeiro, veio o caso de Maria
Rita Kehl, atacada por fazer uma crítica progressista ao peculiar gosto
identitário pelo monopólio da fala autorizada, sobretudo quando se trata de
veredictos e libelos de condenação. Foi desqualificada por associação genética.
A conclusão da turba que a linchou foi que ela carrega um pecado imperdoável:
um antepassado. Diferentemente do pecado original religioso, esse nunca será
redimido; sua biologia a condena à condição perpétua de penitente.
Na semana seguinte, foi a vez de Walter Salles Jr.,
denunciado e condenado pelo pecado de nascer branco, portanto, pertencente à
linhagem dos escravocratas. Quem o disse com todas as letras foi uma coluna publicada no jornal Estado de Minas. O artigo é
um exercício explícito de racialização e essencialização moral. A autora
sustenta que, ao olhar para o rosto do cineasta, enxerga apenas "a
descendência dos que torturaram, estupraram, açoitaram, mantiveram em
cárcere" seus próprios ascendentes.
A lógica subjacente é a de que a moralidade e
o caráter de um indivíduo podem ser inferidos de sua linhagem racial ou
ancestral, estabelecendo uma equivalência automática entre a cor da pele de
Salles, seus antepassados e uma culpa histórica impagável que, por isso mesmo,
lhe pertence integralmente. Isso confere à autora o direito imediato e
irrevogável de desprezá-lo.
A autora não vê um ser humano, mas um
"herdeiro direto da desgraça", um representante não apenas dos
escravocratas históricos, mas de toda uma raça e classe social beneficiária do
racismo. A responsabilidade pela dor da autora não recai sobre sistemas e
estruturas, mas sobre a identidade racial daquele indivíduo singular. Em outras
palavras, a descendência biológica de uma pessoa se torna critério suficiente
para julgá-la moralmente –exatamente o princípio que fundamenta todo pensamento
racista.
Se tomarmos esse artigo como um exemplo do
que o identitarismo tem produzido, identificamos claramente algumas de suas
consequências mais problemáticas. Primeiro, a atribuição hereditária de culpa e
moralidade. O artigo não julga indivíduos por suas ações, mas por suas origens
raciais; lógica que historicamente foi utilizada para justificar discriminação
e perseguição. Segundo, a demonização de um grupo com base na cor da pele. O
indivíduo se resume aos seus traços fenotípicos e à sua ascendência, o que valida
o princípio que sustentou a desumanização de grupos raciais no passado.
Terceiro, o reforço de um binarismo racial que essencializa todos os conflitos
sociais. O artigo apresenta um mundo rigidamente dividido entre opressores e
oprimidos, fixos e organizados por raça, onde os indivíduos não valem pelo que
fazem, mas pela linhagem racial a que pertencem.
Temos aqui uma versão da teoria da "raça
infecta" ou "raça maldita". Salles seria um exemplar dessa raça
moralmente degradada em todos os seus ascendentes e descendentes, merecedor,
portanto, de todo o nojo, rancor e ressentimento. Cada indivíduo pertencente a
essa raça exala o horrível odor da depravação moral de sua estirpe. Kehl e
Salles são exemplares de uma raça, não pessoas.
O radicalismo, por mais nocivo que seja, tem
uma característica notável em qualquer sociedade onde aparece e prospera: ele
precisa ser alimentado. Primeiro, pela condescendência de quem tem legitimidade
social, não é radical, mas simpatiza com "alguma coisa" que considera
positiva no movimento. Depois, por quem pavimenta o caminho, justificando seus
atos e, por fim, legalizando-o. E, nesse papel, professores, jornalistas e
intelectuais têm se esmerado.
Tivesse recebido reprovação social em vez de
justificativas, complacência e incentivos, dificilmente esse radicalismo teria
chegado ao estágio de brutalidade social que, cedo ou tarde, todo extremismo
costuma alcançar. Já passou da hora de cada democrata, progressista, pessoa que
acredita em direitos
humanos e respeito dizer que esse não é o caminho para construir uma
sociedade aceitável.
E de afirmar, com todas as letras: "não em meu nome".
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