quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Não em meu nome - Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Identitários estão confortáveis para dar justificativa biológica a seus atos de revanche

Nas últimas semanas, tivemos uma amostra impressionante do que significa "dobrar a aposta" quando se trata das estratégias de assédio identitário. De costas quentes, agora que uma corte de Justiça afirmou que o racismo é o único crime exclusivo de uma raça –uma vez que só os brancos podem cometê-lo–, militantes identitários começam a se sentir confortáveis para dar uma justificativa biológica e genética à sua glorificação do ressentimento e aos seus atos de revanche.

Primeiro, veio o caso de Maria Rita Kehl, atacada por fazer uma crítica progressista ao peculiar gosto identitário pelo monopólio da fala autorizada, sobretudo quando se trata de veredictos e libelos de condenação. Foi desqualificada por associação genética. A conclusão da turba que a linchou foi que ela carrega um pecado imperdoável: um antepassado. Diferentemente do pecado original religioso, esse nunca será redimido; sua biologia a condena à condição perpétua de penitente.

Na semana seguinte, foi a vez de Walter Salles Jr., denunciado e condenado pelo pecado de nascer branco, portanto, pertencente à linhagem dos escravocratas. Quem o disse com todas as letras foi uma coluna publicada no jornal Estado de Minas. O artigo é um exercício explícito de racialização e essencialização moral. A autora sustenta que, ao olhar para o rosto do cineasta, enxerga apenas "a descendência dos que torturaram, estupraram, açoitaram, mantiveram em cárcere" seus próprios ascendentes.

A lógica subjacente é a de que a moralidade e o caráter de um indivíduo podem ser inferidos de sua linhagem racial ou ancestral, estabelecendo uma equivalência automática entre a cor da pele de Salles, seus antepassados e uma culpa histórica impagável que, por isso mesmo, lhe pertence integralmente. Isso confere à autora o direito imediato e irrevogável de desprezá-lo.

A autora não vê um ser humano, mas um "herdeiro direto da desgraça", um representante não apenas dos escravocratas históricos, mas de toda uma raça e classe social beneficiária do racismo. A responsabilidade pela dor da autora não recai sobre sistemas e estruturas, mas sobre a identidade racial daquele indivíduo singular. Em outras palavras, a descendência biológica de uma pessoa se torna critério suficiente para julgá-la moralmente –exatamente o princípio que fundamenta todo pensamento racista.

Se tomarmos esse artigo como um exemplo do que o identitarismo tem produzido, identificamos claramente algumas de suas consequências mais problemáticas. Primeiro, a atribuição hereditária de culpa e moralidade. O artigo não julga indivíduos por suas ações, mas por suas origens raciais; lógica que historicamente foi utilizada para justificar discriminação e perseguição. Segundo, a demonização de um grupo com base na cor da pele. O indivíduo se resume aos seus traços fenotípicos e à sua ascendência, o que valida o princípio que sustentou a desumanização de grupos raciais no passado. Terceiro, o reforço de um binarismo racial que essencializa todos os conflitos sociais. O artigo apresenta um mundo rigidamente dividido entre opressores e oprimidos, fixos e organizados por raça, onde os indivíduos não valem pelo que fazem, mas pela linhagem racial a que pertencem.

Temos aqui uma versão da teoria da "raça infecta" ou "raça maldita". Salles seria um exemplar dessa raça moralmente degradada em todos os seus ascendentes e descendentes, merecedor, portanto, de todo o nojo, rancor e ressentimento. Cada indivíduo pertencente a essa raça exala o horrível odor da depravação moral de sua estirpe. Kehl e Salles são exemplares de uma raça, não pessoas.

O radicalismo, por mais nocivo que seja, tem uma característica notável em qualquer sociedade onde aparece e prospera: ele precisa ser alimentado. Primeiro, pela condescendência de quem tem legitimidade social, não é radical, mas simpatiza com "alguma coisa" que considera positiva no movimento. Depois, por quem pavimenta o caminho, justificando seus atos e, por fim, legalizando-o. E, nesse papel, professores, jornalistas e intelectuais têm se esmerado.

Tivesse recebido reprovação social em vez de justificativas, complacência e incentivos, dificilmente esse radicalismo teria chegado ao estágio de brutalidade social que, cedo ou tarde, todo extremismo costuma alcançar. Já passou da hora de cada democrata, progressista, pessoa que acredita em direitos humanos e respeito dizer que esse não é o caminho para construir uma sociedade aceitável.

E de afirmar, com todas as letras: "não em meu nome".

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