sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

José de Souza Martins - São Paulo e a revolução urbana

Valor Econômico

A capital deixará de ser anômala periferia central e a facilidade dos deslocamentos poderá revitalizar a administração estadual e devolver ao centro a função cultural

O exame do traçado da rede de transportes de passageiros sobre trilhos em funcionamento e em projeto na cidade de São Paulo e nas regiões adjacentes, em diferentes níveis de extensão em direção ao interior e ao litoral, revela que estamos a caminho de grandes transformações na função da capital.

Será fácil notar que está em acelerado desenvolvimento um novo desenho situacional da capital com implícita reformulação de suas funções. Está em andamento a possibilidade da revolução urbana como tem acontecido em outros países, tendo por referência cidades de grande porte.

Em 1990, foi criado o Consórcio Municipal do Grande ABC, que na prática decorreu das peculiaridades de problemas que não são locais e pedem interpretações e soluções compartilhadas. O crescimento urbano e dos problemas consequentes havia gerado uma nova territorialidade política, diferente da do município. Na verdade, o que ocorreu no subúrbio industrial estende-se por toda a região metropolitana de São Paulo.

A recente adesão do município de São Paulo ao Consórcio amplia e consolida a tendência da mudança. De certo modo, o subúrbio anexou a capital e redefine a concepção de capital de Estado que nos vem do 15 de novembro de 1889. Mas, dialeticamente, a capital se redefine. Já não poderá continuar a ser capital com estrutura político-administrativa do que eram as cidades do interior e muitas ainda são.

São Paulo tem tamanho de metrópole, mas não tem uma cultura política de metrópole. A periferização da cidade em decorrência das anomalias da urbanização patológica, a minimização da sua cultura de metrópole, erudita e monumental, reduziram São Paulo ao banal e fragmentário.

Um monumento como o dedicado ao Duque de Caxias, na praça Princesa Isabel, na concepção transformadora de cidade e de metrópole, não é para enaltecer o duque, mas para revelar e enaltecer a competência artística de Victor Brecheret e na obra de arte a mediação que nos diz o que a cidade é.

Essas mudanças na rede do transporte sobre trilhos serão não só político-administrativas, mas também sociais e culturais.

Além disso, estão previstas reformulações e retomadas do transporte ferroviário não mais para demoradas viagens ao interior. Os trens rápidos intercidades estenderão o limite da região metropolitana para Santos, São José dos Campos, Campinas e Sorocaba. A muitos será possível morar numa dessas cidades e trabalhar em São Paulo ou vice-versa.

Os municípios da Grande São Paulo, por sua vez, ficarão perto do centro e sua autonomia municipal, na prática, será redefinida. Novas funções e novas concepções político-administrativas surgirão. A territorialidade do governar será outra.

Como em alguns países da Europa, surgirá o Governo Metropolitano, mais abrangente e complexo do que as prefeituras de região metropolitana, com um legislativo que supere as câmaras municipais, não raro toscas e limitadas. E os atuais municípios se tornarão distritos metropolitanos, limitados nas funções e mais funcionais.

A complexidade municipal terá que ser reduzida, câmaras municipais serão, portanto, reestruturadas, prefeitos terão menos importância do que têm hoje. Vereadores representarão a sociedade de vizinhança.

Decorrentes das mudanças, a administração de São Paulo, a municipal e a estadual, significativamente, já está voltando para o centro da cidade. Essa era uma preocupação do governador José Serra, que planejava devolver o governo do Estado do Palácio dos Bandeirantes para o Palácio dos Campos Elíseos.

Certamente a capital deixará de ser anômala periferia central em que se transformou com a decadência que a abateu durante a ditadura. A facilidade dos deslocamentos poderá revitalizar a administração estadual e devolver ao centro a função cultural própria das metrópoles. Nelas, o centro tem a função mediadora de civilizar a vida cotidiana, de libertá-la da rotina embrutecedora de meramente reproduzir as relações sociais.

O centro tem a função de proteger a cidade contra a banalização na mera função de feira-livre de bugigangas, de quinquilharias e mesmo de religiões e seitas de rua, difusoras do medo a Satanás. Escapuliram dos templos e usurparam o lugar do conhecimento erudito, perderam a dimensão do profético e do possível. Nesse sentido, essas transformações nos libertarão desse Satanás que nos manipula com a difusão do medo de ser quem podemos ser. De conhecer e desfrutar a cidade como lugar de encontro e não de desencontro.

A urbanização patológica terá que dar lugar à revolução urbana, a reordenação do espaço da cidade da conformidade como espaço da cidade do inconformismo crítico, socialmente libertador e emancipador.

 

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