O Globo
Na cena final do documentário “Cabra Marcado
para Morrer”, Elizabeth Teixeira engrena um discurso de improviso contra as
desigualdades brasileiras. “Democracia sem liberdade? Democracia com salário de
miséria e de fome? Democracia com o filho do operário sem direito de estudar?”.
Gravada em 1981, a fala resume o espírito
combativo da paraibana. Ela já havia amargado o assassinato do marido, a prisão
na ditadura e o afastamento forçado dos filhos. Nunca perdeu a capacidade de se
indignar.
O filme nasceu por acaso. Eduardo Coutinho viajava pelo Nordeste quando esbarrou num protesto contra a morte de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas. O cineasta filmou o ato, que reuniu três mil trabalhadores rurais. Dois anos depois, voltou ao local para contar a história do lavrador, recrutando a viúva e o povo da roça como atores amadores.
A filmagem do “Cabra” original durou apenas
35 dias. Foi interrompida pelo golpe de 1964, que transformou diretor e
entrevistados em alvos da repressão. Os militares chegaram a prender Elizabeth,
que precisou mudar de estado e adotar um nome falso. Após um hiato de 17 anos,
Coutinho pegou a estrada para retomar o filme. Localizou sua protagonista no
interior do Rio Grande do Norte, batalhando como lavadeira e alfabetizadora de
crianças.
O documentário foi aclamado por público e
crítica. Com o dinheiro de um prêmio, Coutinho comprou a casa em que Elizabeth
mora até hoje, em João Pessoa. Ontem ela fez 100 anos e voltou a Sapé para o
início de uma maratona de homenagens, que incluirão lançamento de livro,
apresentações musicais e comício.
“Elizabeth é uma mulher marcada para viver.
Virou símbolo da luta pela reforma agrária, que permanece atual”, exalta Alane
Lima, diretora do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas e organizadora dos
festejos.
Com a saúde fragilizada, a paraibana não pode
mais fazer discursos inflamados em defesa dos sem-terra. Será representada por
descendentes como a neta Juliana Teixeira, professora da rede pública. “Sapé
está rodeada de assentamentos, mas ainda tem muitas famílias esperando por um
lote. A luta continua, como minha avó sempre falou”, diz ela.
“Como a luta dos camponeses não está no
currículo escolar, muitos jovens não conhecem a nossa história. As ruas e
praças do município ainda têm os nomes dos latifundiários, não dos
trabalhadores”, critica.
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