sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Marcada para viver'- Bernardo Mello Franco

O Globo

Na cena final do documentário “Cabra Marcado para Morrer”, Elizabeth Teixeira engrena um discurso de improviso contra as desigualdades brasileiras. “Democracia sem liberdade? Democracia com salário de miséria e de fome? Democracia com o filho do operário sem direito de estudar?”.

Gravada em 1981, a fala resume o espírito combativo da paraibana. Ela já havia amargado o assassinato do marido, a prisão na ditadura e o afastamento forçado dos filhos. Nunca perdeu a capacidade de se indignar.

O filme nasceu por acaso. Eduardo Coutinho viajava pelo Nordeste quando esbarrou num protesto contra a morte de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas. O cineasta filmou o ato, que reuniu três mil trabalhadores rurais. Dois anos depois, voltou ao local para contar a história do lavrador, recrutando a viúva e o povo da roça como atores amadores.

A filmagem do “Cabra” original durou apenas 35 dias. Foi interrompida pelo golpe de 1964, que transformou diretor e entrevistados em alvos da repressão. Os militares chegaram a prender Elizabeth, que precisou mudar de estado e adotar um nome falso. Após um hiato de 17 anos, Coutinho pegou a estrada para retomar o filme. Localizou sua protagonista no interior do Rio Grande do Norte, batalhando como lavadeira e alfabetizadora de crianças.

O documentário foi aclamado por público e crítica. Com o dinheiro de um prêmio, Coutinho comprou a casa em que Elizabeth mora até hoje, em João Pessoa. Ontem ela fez 100 anos e voltou a Sapé para o início de uma maratona de homenagens, que incluirão lançamento de livro, apresentações musicais e comício.

“Elizabeth é uma mulher marcada para viver. Virou símbolo da luta pela reforma agrária, que permanece atual”, exalta Alane Lima, diretora do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas e organizadora dos festejos.

Com a saúde fragilizada, a paraibana não pode mais fazer discursos inflamados em defesa dos sem-terra. Será representada por descendentes como a neta Juliana Teixeira, professora da rede pública. “Sapé está rodeada de assentamentos, mas ainda tem muitas famílias esperando por um lote. A luta continua, como minha avó sempre falou”, diz ela.

“Como a luta dos camponeses não está no currículo escolar, muitos jovens não conhecem a nossa história. As ruas e praças do município ainda têm os nomes dos latifundiários, não dos trabalhadores”, critica.

 

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