Correio Braziliense
Dados oficiais registram que dos mais de 888
mil presos — de uma população carcerária que cresce a uma média de 8,3% ao ano
—, 216 mil são provisórios, ou seja, sem condenação (muitos sem sequer
processo), 83% sem educação básica e 36%, jovens entre 18 e 29 anos
A segurança pública no Brasil permanecerá em
um beco sem saída enquanto prevalecer a política do "tiro, porrada e
bomba", exercida pelos governos estaduais, funcionalmente responsável pelo
principal fator que aprofunda e resulta no crescimento do crime organizado: as
prisões indiscriminadas que entopem os presídios.
Essa política, que só é pública porque se dá às vistas de todos, é a negação do sistema penitenciário como "home office" e centro de recrutamento do crime organizado — gênese, portanto, da violência e de sua estruturação.
Assim, temos "políticas de estados"
— e não de Estado —, direta e funcionalmente responsáveis pela violência e
insegurança que assombram os brasileiros e as brasileiras. Com o efeito
colateral perverso de estimular propostas populistas que conspiram contra a
democracia.
Nos debates sobre a segurança, no entanto,
essa é uma questão interditada por um misto de interesses contrários,
ignorância (no seu sentido estritamente léxico) e desinteresse da sociedade,
que alimenta a ilusão de que da porta do presídio para dentro acabam seus
problemas.
Eles apenas começam. Os que se dedicam a
buscar saídas para o problema têm na recusa ao enfrentamento do tema seu maior
pesadelo. A radiografia do sistema, seus números e seus resultados remetem à
imagem de "Coração das trevas", empregada pelo escritor Joseph
Conrad, ao descrever a colonização africana pelos europeus no século 19.
Não há exagero aí. No espaço de maior
imposição da força do Estado, onde cumprem sentenças os que cometeram variados
delitos, a garantia de vida é dada pelas maiores facções criminosas
distribuídas em todo o sistema penitenciário nacional. O crime organizado tem
base prisional e, nela, sua fonte de realimentação, refratária a mudanças, pela
inapetência de sua principal vítima, a sociedade.
Quando ministro da Segurança Pública, fizemos
33 vistorias em presídios país afora, abrangendo um total de 22 mil apenados, e
constatamos que 11 mil tinham armas — ou seja, um em cada dois detentos, uma
estatística que não se altera para menos. O que dispensa o detalhamento das
demais regalias de que desfrutam as lideranças das facções que hoje somam, pelo
menos, 70 no Brasil.
Dados oficiais registram que dos mais de 888
mil presos — de uma população carcerária que cresce a uma média de 8,3% ao ano
—, 216 mil são provisórios, ou seja, sem condenação (muitos sem sequer
processo), 83% sem educação básica e 36%, jovens entre 18 e 29 anos.
Desses, cerca de 40% respondem por delitos de
menor ofensividade, como furtos e porte de drogas para consumo pessoal (quase
sempre maconha), sem antecedentes criminais, submetidos à convivência com os de
alta periculosidade.
Temos, portanto, a juventude brasileira como
matéria-prima do crime, pois esses jovens garantem a sua sobrevivência
filiando-se a uma das muitas facções que comandam os presídios e que respondem
pelas necessidades das famílias desses presos desproporcionalmente apenados e
que, dentro do presídio, comandam o crime nas ruas.
Como não temos um sistema compatível com as
necessidades do regime semiaberto, esse contingente, ou vai para casa sem
qualquer sanção, ou acaba no regime fechado — opção estatisticamente preferida
pelos julgadores, o que confirma a conclusão de que no Brasil prende-se muito e
prende-se mal.
Com o preconceito e a ideologização do
debate, que trava, por exemplo, uma elementar medida saneadora — a que
distingue porte para consumo de porte para tráfico, em casos de flagrante —,
mantemos-nos restritos ao padrão do enfrentamento físico, em uma guerra urbana
sem-fim, com arrastões policiais e medidas legislativas pontuais a cada crime
de impacto na opinião pública.
Aos que confundem essa linha de raciocínio
com defesa da impunidade, recomenda-se o aprofundamento na questão, pois é
claro o objetivo de hierarquizar os delitos para chegar às penas adequadas e
proporcionais, como é dever do Estado, por meio do Poder Judiciário.
Em nenhuma proposta formal consta qualquer
menção a algo que possa ser interpretado como "passar a mão na
cabeça", premiando o erro, mas medidas adequadas a cada caso. Fora disso,
é leitura enviesada e disseminada pelos que têm interesse na preservação do
caos por dele desfrutarem em feudos que também se beneficiam dos efeitos do
crime.
A ressocialização do preso, nesse contexto,
ganha ares de ingenuidade romântica, mantendo o Estado incapaz de prover um
robusto programa institucionalizado de prevenção social, a explicar — mas nunca
justificar —, a neurótica visão repressiva e, por extensão, o sistema prisional
como o fim da Justiça criminal.
Cesare Beccaria, um grande jurista e fundador
da escola do Iluminismo Penal, no século 18, dizia que é sempre melhor prevenir
do que punir. E, de fato, a melhor segurança pública é a preventiva, que se dá
antes do delito, do crime, da desordem.
O contrário disso é o que temos em curso acelerado — o crescimento e a sofisticação do crime organizado, de natureza transnacional, que prospera e agrava a impotência do Estado — e já é o principal empregador em algumas regiões do país, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública.
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