segunda-feira, 4 de agosto de 2008

DEU NO VALOR ECONÔMICO


INSTITUIÇÕES E POLÍTICAS PÚBLICAS
Fábio Wanderley Reis


Tivemos na semana passada, em Campinas, o 6º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. No que me diz respeito, a reunião ensejou participar em discussão relativa aos resultados alcançados e desafios suscitados por estudos recentes no campo que se costuma designar como política comparada.

Afora questões metodológicas áridas (e cercadas de bobagens eternas: não comparar alhos com bugalhos, maçãs com laranjas...), os aspectos substantivos do tema permitem destacar, especialmente na óptica dos desafios a serem enfrentados, a questão das relações entre instituições políticas e substrato social, que tenho considerado aqui com alguma frequência. Ela remete a um problema conceitual básico, para o qual os estudiosos nem sempre são atentos, com custos altos do ponto de vista do interesse real das análises: há um plano institucional a ser contraposto cortantemente ao plano da base social das interações e conflitos de todo tipo, ou a visão apropriada das instituições políticas deve salientar antes o enraizamento sociopsicológico dos mecanismos e entidades "formais" da política, de modo a permitir a articulação dos dois níveis e a consequente eficácia na "domesticação" formal (legal, "institucional") das relações e dos conflitos da base?

Objeto e contexto da ação política

A primeira perspectiva leva ao "institucionalismo" estreito e empobrecedor que às vezes tenho mencionado. A segunda é sensível ao drama social envolvido no desafio da construção de instituições democráticas, e o aspecto de uma psicologia coletiva propícia surge nela como produto, em medida importante, justamente de que se torne possível acomodar os conflitos - em particular o conflito distributivo, apesar de que este possa combinar-se com focos diversos de agregação e enfrentamento dos interesses. Tenho proposto uma distinção que se dirige sobretudo à dimensão de psicologia coletiva, mas que é sem dúvida relevante para as relações dos "formalismos" institucionais com o substrato social mesmo em seu componente estratégico ou conflituoso: por um lado, o institucional como "objeto", em que se trata da ação deliberada do legislador ou da "engenharia" político-institucional, fatalmente condicionada por um horizonte conjuntural e contendo inevitável elemento de artificialismo, em contraste com a opacidade "estrutural" da base ou substrato (donde se falar às vezes do "meramente" institucional); e, por outro lado, o institucional como "contexto", em que os dispositivos e normas institucionais, com o passar do tempo, eventualmente se "sacralizam" e se transformam em parte efetiva e relevante do contexto em que se desenvolvem as ações e interações cotidianas.

Além da recentíssima atenção, com boas razões, ao Judiciário, os estudos e discussões institucionais no país têm dado ênfase igualmente merecida ao Legislativo. Contudo, o caráter estreito do foco "institucionalista" tem levado seja a pressupostos convergentes com certo foco "realista" da literatura internacional, em que a suposição básica é a de que a ação dos parlamentares não visa senão a assegurar a reeleição e a preservação do cargo (desaguando na pura barganha clientelista), seja a destacar a operação de mecanismos (em especial os instrumentos de poder de que dispõe o Governo) capazes de assegurar a disciplina partidária nas votações no Congresso Nacional. Naturalmente, maior sensibilidade à ligação entre instituições e substrato exigiria aqui que se examinasse com cuidado a conexão eleitoral dos parlamentares e os partidos e sua consistência como instrumentos de articulação com a base social. Em volume de 2006 sobre presidencialismo, parlamentarismo e democracia, José Antônio Cheibub se interroga a certa altura sobre as relações entre "disciplina" partidária e "coesão" partidária: é claro que o desiderato é que se venha a ter a disciplina como resultado natural da coesão e, assim, da consistência real de partidos que supostamente estariam representando algo maior do que os interesses miúdos de determinadas clientelas. A concessão ao realismo envolvida no reconhecimento de que boas regras disciplinadoras (e as reformas correspondentes) podem provavelmente ajudar a que se avance rumo ao desiderato não deveria redundar em justificar que se confunda ou perca de vista o desiderato, nem permitir esquecer que a possibilidade de realizá-lo depende em grau significativo de condições do próprio substrato - e do eleitorado como parte dele.

Mas cabe ressaltar algo mais, que tem preocupado analistas atentos: a relativa escassez, entre nós, dos estudos tradicionais de "políticas públicas", em que se tende a realçar o papel do Executivo, além do dos outros poderes. Um belo trabalho de Marta Arretche, apresentado na própria reunião da ABCP, examina a política social que vem sendo executada no Brasil, especialmente o programa Bolsa-Família, com referência à estrutura federativa do Estado brasileiro e aos diferentes papéis cumpridos pelo governo central e pelos municípios. Mas um volume que mencionei há algumas semanas, publicado em 2007 nos Estados Unidos (P. Pierson e T. Skocpol, "The Transformation of American Politics"), adverte com grande força para a relevância do que aqui se pode apreender, ao mostrar a afirmação do ativismo do governo federal estadunidense a partir de meados do século XX, sua articulação com a dinâmica social e, particularmente, seu impacto sobre ela, com a "revolução dos direitos civis", bem como a profunda mudança do mapa político do país trazida pelo efeito do ativismo estatal sobre a vida partidária e a reação notavelmente bem-sucedida do Partido Republicano, incluindo, entre várias outras coisas, o êxito da mobilização por um populismo conservador que penetra e corrói as bases tradicionais dos Democratas.

Naturalmente, há agora a novidade de Barack Obama, que o diagnóstico de Pierson e Skocpol torna ainda mais interessante. A conferir.


Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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