segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A sopa de letrinhas da concentração de renda - Bruno Carazza

Valor Econômico

Decisão do STF sobre incidência de ITCMD sobre PGBL e VGBL ilustra máquina de concentração de renda

A mensagem de WhatsApp foi disparada no final do expediente de sexta-feira. A gerente de contas de um banco-boutique comunicava a seus clientes ‘prime’ que o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, havia acabado de afastar a cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) sobre os planos de previdência privada chamados de PGBL e VGBL (respectivamente Plano e Vida Gerador de Benefício Livre).

No cabeçalho do informe do banco veio o assunto: “Alerta Wealth Planning”. E é exatamente disso que a decisão do STF trata: um incentivo ao planejamento sucessório dos mais ricos.

PGBL e VGBL são dois produtos financeiros com natureza de previdência complementar: mediante aportes esporádicos, os valores são acumulados ao longo do tempo e podem ser convertidos numa renda mensal vitalícia ou por prazo determinado, além de poderem ser resgatados integralmente.

Para melhorar sua atratividade, ambas as aplicações gozam de benefícios tributários. No VGBL o imposto de renda incide apenas sobre os rendimentos; já no PGBL, apesar da cobrança recair sobre todo o valor resgatado, a legislação permite deduzir o investimento inicial até o limite de 12% da renda anual tributável. Além disso, tanto o VGBL quanto o PGBL não sofrem a cobrança do “come-cotas”, como a maioria dos fundos de investimentos, e desfrutam da tabela regressiva do imposto de renda - quanto mais tempo se mantém a aplicação, menor a alíquota, o que é condizente com sua natureza de aplicação de longo prazo.

Seja pela insuficiência dos regimes públicos de previdência ou pelos incentivos tributários, o mercado captou R$ 153,3 bilhões em contribuições para o VGBL e R$ 13,9 bilhões na família PGBL em 2023, segundo a CNSeg, confederação nacional das empresas do segmento de seguros, previdência privada e saúde suplementar.

Um outro atrativo desse tipo de investimento, porém, vem do fato que ele é utilizado pela camada de renda mais alta da população para transferir parte de seu patrimônio financeiro para seus herdeiros, legítimos ou não, sem pagar os devidos tributos. E é aqui que entra a decisão de sexta-feira do STF.

A Constituição brasileira estabelece, no inciso I do art. 155, que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre a transmissão de bens ou direitos por meio de heranças (a “causa mortis” do nome do tributo) e de doações. Da leitura do primeiro parágrafo do dispositivo, é possível depreender que a base de incidência do ITCMD é bastante ampla, envolvendo imóveis (e seus direitos, como aluguéis, hipotecas, etc.) e bens móveis, títulos e créditos.

Partindo do comando constitucional, portanto, diversos Estados passaram a cobrar o ITCMD sobre os valores transferidos para os beneficiários dos planos PGBL e VGBL quando seu instituidor falecia. E daí surgiram várias disputas judiciais, pois as instituições financeiras sempre venderam essas aplicações como se não integrassem herança dos investidores e, assim, não sofressem a incidência desse tributo estadual.

O raciocínio jurídico utilizado por elas é de uma pobreza de fazer corar. Os advogados partem do fato de a Lei Complementar nº 109/2001 autorizar que empresas que vendem seguros de vida podem também operar planos de previdência aberta (como o PGBL e o VGBL) para, num duplo twist carpado, estender a eles o dispositivo - também questionável - do Código Civil e agora da nova lei de seguros que estabelece que o capital segurado em razão de morte não é considerado herança.

E foi uma disputa dessas, entre o deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha e o Estado do Rio de Janeiro, que depois de uma longa tramitação veio parar no STF a partir de um recurso da Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência Complementar Aberta - Fenaseg, e agora servirá de orientação para aplicação em casos semelhantes no Brasil inteiro.

O entendimento unânime do plenário do STF de que não cabe a cobrança do imposto sobre heranças nas transmissões via PGBL e VGBL foi, obviamente, comemorada pelas empresas do setor. Ao comentar a decisão para o Valor, em matéria de Marcela Villar, advogados de diferentes escritórios ressaltaram que o veredito é um forte estímulo para que esses instrumentos financeiros continuem sendo utilizados como ferramenta de planejamento sucessório.

Quando se fala em “planejamento sucessório”, leia-se uma forma de transferir riqueza para os descendentes pagando menos impostos, de forma legal.

Ao legitimar uma prática em que o 1% da população transfere boa parte da sua riqueza para seus herdeiros sem pagar o devido tributo, os onze ministros do STF mais uma vez descumprem o mandamento máximo da nossa Constituição, que em seu art. 3º estabelece entre os objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade justa e solidária (inciso I), reduzir as desigualdades sociais (inciso III) e promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (inciso IV).

A máquina da indecente concentração de renda brasileira continua a todo o vapor, tendo como combustível decisões como essa do STF sobre o PGBL e o VGBL.

 

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