Valor Econômico
Decisão do STF sobre incidência de ITCMD sobre PGBL e VGBL ilustra máquina de concentração de renda
A mensagem de WhatsApp foi disparada no final
do expediente de sexta-feira. A gerente de contas de um banco-boutique
comunicava a seus clientes ‘prime’ que o Supremo Tribunal Federal (STF), por
unanimidade, havia acabado de afastar a cobrança do Imposto sobre Transmissão
Causa Mortis e Doações (ITCMD) sobre os planos de previdência privada chamados
de PGBL e VGBL (respectivamente Plano e Vida Gerador de Benefício Livre).
No cabeçalho do informe do banco veio o assunto: “Alerta Wealth Planning”. E é exatamente disso que a decisão do STF trata: um incentivo ao planejamento sucessório dos mais ricos.
PGBL e VGBL são dois produtos financeiros com
natureza de previdência complementar: mediante aportes esporádicos, os valores
são acumulados ao longo do tempo e podem ser convertidos numa renda mensal
vitalícia ou por prazo determinado, além de poderem ser resgatados
integralmente.
Para melhorar sua atratividade, ambas as
aplicações gozam de benefícios tributários. No VGBL o imposto de renda incide
apenas sobre os rendimentos; já no PGBL, apesar da cobrança recair sobre todo o
valor resgatado, a legislação permite deduzir o investimento inicial até o
limite de 12% da renda anual tributável. Além disso, tanto o VGBL quanto o PGBL
não sofrem a cobrança do “come-cotas”, como a maioria dos fundos de
investimentos, e desfrutam da tabela regressiva do imposto de renda - quanto
mais tempo se mantém a aplicação, menor a alíquota, o que é condizente com sua
natureza de aplicação de longo prazo.
Seja pela insuficiência dos regimes públicos
de previdência ou pelos incentivos tributários, o mercado captou R$ 153,3
bilhões em contribuições para o VGBL e R$ 13,9 bilhões na família PGBL em 2023,
segundo a CNSeg, confederação nacional das empresas do segmento de seguros,
previdência privada e saúde suplementar.
Um outro atrativo desse tipo de investimento,
porém, vem do fato que ele é utilizado pela camada de renda mais alta da
população para transferir parte de seu patrimônio financeiro para seus
herdeiros, legítimos ou não, sem pagar os devidos tributos. E é aqui que entra
a decisão de sexta-feira do STF.
A Constituição brasileira estabelece, no
inciso I do art. 155, que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir
impostos sobre a transmissão de bens ou direitos por meio de heranças (a “causa
mortis” do nome do tributo) e de doações. Da leitura do primeiro parágrafo do
dispositivo, é possível depreender que a base de incidência do ITCMD é bastante
ampla, envolvendo imóveis (e seus direitos, como aluguéis, hipotecas, etc.) e
bens móveis, títulos e créditos.
Partindo do comando constitucional, portanto,
diversos Estados passaram a cobrar o ITCMD sobre os valores transferidos para
os beneficiários dos planos PGBL e VGBL quando seu instituidor falecia. E daí
surgiram várias disputas judiciais, pois as instituições financeiras sempre
venderam essas aplicações como se não integrassem herança dos investidores e,
assim, não sofressem a incidência desse tributo estadual.
O raciocínio jurídico utilizado por elas é de
uma pobreza de fazer corar. Os advogados partem do fato de a Lei Complementar
nº 109/2001 autorizar que empresas que vendem seguros de vida podem também
operar planos de previdência aberta (como o PGBL e o VGBL) para, num duplo
twist carpado, estender a eles o dispositivo - também questionável - do Código
Civil e agora da nova lei de seguros que estabelece que o capital segurado em
razão de morte não é considerado herança.
E foi uma disputa dessas, entre o deputado
estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha e o Estado do Rio de Janeiro, que depois de
uma longa tramitação veio parar no STF a partir de um recurso da Federação
Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência
Complementar Aberta - Fenaseg, e agora servirá de orientação para aplicação em
casos semelhantes no Brasil inteiro.
O entendimento unânime do plenário do STF de
que não cabe a cobrança do imposto sobre heranças nas transmissões via PGBL e
VGBL foi, obviamente, comemorada pelas empresas do setor. Ao comentar a decisão
para o Valor, em
matéria de Marcela Villar, advogados de diferentes escritórios ressaltaram que
o veredito é um forte estímulo para que esses instrumentos financeiros
continuem sendo utilizados como ferramenta de planejamento sucessório.
Quando se fala em “planejamento sucessório”,
leia-se uma forma de transferir riqueza para os descendentes pagando menos
impostos, de forma legal.
Ao legitimar uma prática em que o 1% da
população transfere boa parte da sua riqueza para seus herdeiros sem pagar o
devido tributo, os onze ministros do STF mais uma vez descumprem o mandamento
máximo da nossa Constituição, que em seu art. 3º estabelece entre os objetivos
fundamentais da República: construir uma sociedade justa e solidária (inciso
I), reduzir as desigualdades sociais (inciso III) e promover o bem de todos,
sem qualquer forma de discriminação (inciso IV).
A máquina da indecente concentração de renda
brasileira continua a todo o vapor, tendo como combustível decisões como essa
do STF sobre o PGBL e o VGBL.
Nenhum comentário:
Postar um comentário