Gosto da diferença que Maquiavel faz, no "Príncipe", entre os governantes que atingem o poder por sua ação própria e aqueles que chegam lá graças a amigos ou aliados, "pelas armas alheias", diz ele. Esta distinção ajuda a entender a política brasileira do período democrático que começou em 1985 - e, em especial, a pensar o momento crítico pelo qual ora passa a presidente Dilma.
Podemos dividir nossos seis presidentes civis em três grupos. José Sarney e Itamar Franco assumiram a Presidência pelo acaso, pela "fortuna"; tinham sido indicados para a vice-presidência como uma espécie de aposentadoria, mas a morte de Tancredo Neves e o impeachment de Fernando Collor os projetaram para a chefia do Estado. Por outro lado, Collor e Lula alcançaram o poder por méritos próprios: foram os dois que mais se empenharam nessa direção. Collor parece ter realizado o alerta que Dom João VI, ao partir para Portugal, teria feito ao filho: "Pedro, toma esta coroa antes que algum aventureiro lance mão dela". Collor lançou mão, sim. Percebeu que faltavam nomes para enfrentar a esquerda, na primeira eleição da Nova República, e planejou com cuidado e presteza os passos que o levariam à vitória. Lula foi o contrário - uma longa travessia, geralmente do deserto, a certeza de que ele jamais seria eleito (dizia Delfim Neto: se lançarem um poste contra Lula, o poste ganha as eleições) e, finalmente, a moderação, as alianças e a vitória consolidada. Talvez esses trajetos opostos nos dois lutadores - Collor açodado, Lula demorado - expliquem também por que o primeiro não durou e o segundo, sim. Lula aprendeu; Collor, não. Foi presidente de uma única edição.
Finalmente, temos dois presidentes que devem sua ascensão às armas alheias mas que, diferentes de Sarney e Itamar, foram eleitos pelo povo - e, com isso, constituem uma situação intermediária. Não chegaram ao poder por mérito próprio mas, uma vez no Palácio, procuraram construí-lo. Falo de Fernando Henrique Cardoso, escolha imperial de Itamar, e de Dilma Rousseff, decisão unilateral de Lula. Sem o apoio do antecessor, nenhum deles venceria. Aliás, nem seriam candidatos. O PSDB dispunha de nomes mais cotados do que FHC, em 1984; o PT tinha, em 2006, vários cardeais à frente da ministra da Casa Civil.
Difícil conciliar a economia e a agenda social
Mas FHC tem - por enquanto - uma vantagem sobre Dilma. Ele soube transformar a fortuna, a sorte, em mérito. Não foi fácil. Lembro Maria da Conceição Tavares contestando um apoiador de FHC, antes da eleição: "Mas você acha que o Fernando vai enrolar o Antonio Carlos Magalhães?" Pois enrolou. Foi favorecido pelo fato de que estava quase ombro a ombro com os demais chefes tucanos. Uma vez eleito, nenhum era maior que ele, no partido. Mas de todo modo esse, que era apenas um entre vários líderes tucanos, se tornou o líder inconteste de sua ala política, ao longo de seus dois mandatos, e continua sendo o referencial maior do partido - simplesmente, porque, até hoje, nenhum tucano voou tão alto.
Contudo, essa conversão da sorte em mérito não aconteceu - ainda? - com Dilma. A referência maior do PT continua sendo Lula. Ele respeita a sucessora. Jamais avançou sobre suas prerrogativas. Contudo, a personalidade dela ainda precisa ser consolidada. O ano difícil que ela está vivendo dificulta ou atrasa essa tarefa.
Tanto Lula quanto Dilma foram aplaudidos pela oposição ao assumirem o governo. Lula se empenhou na reforma da Previdência, e o PSDB o apoiou nisso - mas com a finalidade de mostrar que Lula fazia a política tucana, que essa era a política certa, o que por sua vez criaria uma distância entre Lula e quem votou nele para romper com o tucanato. Dilma demitiu ministros suspeitos, e a oposição a saudou por isso - mas com a finalidade de criar uma cunha entre ela e Lula, entre ela e o PT, e de dizer que ela reconhecia, afinal, que seu partido era corrupto. Os dois "apoios" foram, assim, apenas táticos: pretendiam esvaziar os dois presidentes petistas. Foram dados por esperteza. Mas não tiveram nenhum efeito. Não ajudaram, nem prejudicaram.
O fato é que, de alguns meses para cá, a Presidência enfrenta uma crise. As medidas econômicas são criticadas. A baixa dos juros, certamente uma das iniciativas mais importantes na área, é frontalmente contestada. O alto peso das commodities em nossa pauta de exportações, a desindustrialização do país e o elevado número de manufaturados que hoje importamos preocupam. Três candidatos já se perfilam para desafiar a incumbente no ano que vem. Embora hoje ainda seja provável uma vitória de Dilma - no segundo turno - a situação pode mudar até o fim de 2014 e, pelo menos, demandará muita energia política.
Na verdade, o que está em jogo não é apenas o pleito do ano que vem. De pouco serviria à esquerda um segundo mandato de Dilma nos moldes do segundo de FHC, que não agregou quase nada ao que ele tinha realizado nos primeiros quatro anos de governo. Há tarefas cruciais pela frente. A questão é se a presidente será capaz de realizá-las. Ela não é uma comunicadora como Lula, mas sua tarefa já não depende de se comunicar bem e, sim, de organizar o poder. Talvez o mais difícil seja unir uma agenda política e social, que se escora na inclusão social, e uma econômica, que obedece a outra lógica. A primeira agenda é de esquerda. A segunda, sendo capitalista, tende à direita. Conciliar as duas, ou usar a economia como meio para atingir fins sociais e políticos, não é coisa fácil. Mas essa dificuldade não é só de Dilma. Quem quer que vença as eleições de 2014 terá esse mesmo problema pela frente.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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