sábado, 22 de fevereiro de 2020

O pensamento vivo de José Arthur Giannotti

Prestes a completar 90 anos, ele lança novo livro, afirma que a filosofia no Brasil se resume a comentários e xingamentos e diz que, com Bolsonaro, o país flerta com o fascismo

Ruan de Sousa Gabriel | Revista Época

Às vésperas de completar 90 anos, o filósofo José Arthur Giannotti, professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), recebeu ÉPOCA em sua casa, no Morumbi, Zona Sul de São Paulo, numa segunda-feira abafada. Por pouco mais de uma hora, sentado em uma poltrona e rodeado de livros, falou principalmente de filosofia, mas também recordou o passado e comentou a política brasileira. Dias antes, havia assistido a Indústria americana, o documentário produzido por Barack e Michelle Obama que levou um Oscar e retrata a implantação de uma fábrica chinesa num antigo polo industrial no Meio-Oeste americano. Giannotti elogiou o filme, mas também viu qualidades em Democracia em vertigem, documentário da brasileira Petra Costa sobre o impeachment de Dilma Rousseff, que disputou o Oscar, mas saiu sem a estatueta. “O filme era errado ideologicamente, mas formalmente muito bem-feito”, resenhou o filósofo, que ainda hoje se considera de esquerda e é um dos principais estudiosos do marxismo no Brasil.

“Veja bem, minha geração teve vários desafios. Um deles era entender o marxismo”, disse. Os estudos de Giannotti sobre Marx renderam clássicos da filosofia da USP, como Origens da dialética do trabalho: estudo sobre a lógica do jovem Marx, tese de livre-docência defendida em 1966 e publicada em 1985; e Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade, de 1983. Giannotti defende que seu “melhor livro” é Heidegger/Wittgenstein: confrontos, editado pela Companhia das Letras e que acaba de chegar às livrarias. Em quase 500 páginas, com uma prosa rigorosa ao extremo, o autor esmiúça o pensamento do alemão (e nazista) Martin Heidegger (1889-1976) e do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) à procura da lógica. Ele já havia publicado um livro sobre o austríaco, Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein (1995). “Heidegger e Wittgenstein são dois filósofos do século XX que abandonam a ideia de razão, o que é fabuloso”, afirmou Giannotti. “Tratei de examiná-los em seus pormenores e deu num livro extremamente difícil, mas o que posso fazer? Vai ser lido por, no máximo, 100 pessoas. Mas é um livro que pode ficar e, quem sabe, se confrontar com o tipo de filosofia que se está fazendo hoje.”

Muito da filosofia feita hoje, lamentou Giannotti, é “bordado”, mero comentário. “Se você for ao Departamento de Filosofia da USP, vai encontrar várias bordadeiras, gente que pega um pedaço de Descartes e estuda, estuda, estuda aquele negócio e fica lá bordando. São estudos interessantes, mas são bordados”, reclamou. “Quando saem do bordado, alguns fazem uma mistureba como a que faz o Olavo de Carvalho ou outros críticos do chamado ‘marxismo cultural’. Eles estudam um autor e insultam os outros. Nos últimos tempos, o que temos na filosofia são dois abismos: bordados e insultos.”

Giannotti é reconhecido pelo rigor. “Quanto ao papel do professor Giannotti no que diz respeito ao desenvolvimento da filosofia no Brasil, ainda mais nos tempos atuais de desprezo pelo pensamento, bastam algumas palavras de ordem: rigor, exemplo, paciência, dificuldade que se desfaz em compreensão”, disse a ÉPOCA Marcio Sattin, professor da Escola da Cidade, em São Paulo, que assina a orelha de Heidegger/Wittgenstein. Sattin, cujo doutorado foi orientado por Giannotti, ainda ressaltou “suas preocupações disfarçadas em cobranças, seus conselhos disfarçados em impropérios — alguns dos quais dificilmente aprovados pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) — e seu afeto gigantesco disfarçado em mau humor”.

Luiz Damon Santos Moutinho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coautor com o filósofo do livro Os limites da política: uma divergência (2017), disse a ÉPOCA que “Giannotti é conhecido por seu estilo contundente, incisivo, diria até um pouco bélico”. “Ele gosta da metáfora dos boxeadores no ringue de luta. Trabalhar num livro com ele foi um pouco assim, como uma luta. Mas no plano puramente conceitual, no nível do debate aberto, franco, leal”, completou. O crítico literário Roberto Schwarz, amigo de décadas que, segundo o próprio Giannotti, “anda meio bravo comigo porque não fui votar na última eleição”, descreveu, num texto, o estilo do filósofo como “exigente, exaltado e obscuro”. “Eu sou um chato”, confessou Giannotti. “Porque pretendo ser rigoroso.”

Nascido em São Carlos, no interior paulista, em 1930, Giannotti se mudou para São Paulo com a família porque o pai queria dar educação universitária aos quatro filhos: todos estudaram na USP. Adolescente,conheceu Rudá de Andrade (1930-2009) e passou a frequentar a casa do pai dele, o poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1954). “Oswald foi a primeira pessoa a quebrar os padrões extremamente pequeno-burgueses de minha família.” Na casa dos Andrades, Giannotti conheceu intelectuais como o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), que o descreveu como um “mocinho inteligente”, e Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Por sugestão de Oswald, frequentou um curso sobre Platão oferecido por Ferreira da Silva e, quando entrou na USP, já tinha conhecimento de filosofia grega.

Na Faculdade de Filosofia, Giannotti teve aula com professores franceses como Gilles-Gaston Granger (1920-2016) e Martial Gueroult (1891-1976). “Na primeira aula de filosofia, dou de cara com um baixinho falando francês, era o Granger. Nós éramos muito numerosos: 12! Uns seis eram bons”, recordou. “O Granger nos deu cursos de lógica no primeiro, segundo e terceiro anos. Quando voltou para a França, não tinha ninguém para dar aula de lógica, e me indicou para substitui-lo. Mas, como eu sou disléxico, foi um desastre. Eu dizia: ‘Tomemos os números pares’. E escrevia no quadro: ‘1, 3, 5...’, contou, às gargalhadas.

Em 1956, como era tradição na Faculdade de Filosofia, foi enviado para a França para aprimorar seus estudos. Voltou em 1958 e organizou o Seminário Marx, um grupo de leitura de O capital que reunia jovens intelectuais, como o historiador Fernando Novais, o filósofo Bento Prado Júnior, o economista Paul Singer e o sociólogo (e futuro presidente da República) Fernando Henrique Cardoso. Giannotti apresentou aos colegas um método de leitura aprendido com os franceses: o texto filosófico devia ser lido palavra por palavra, argumento por argumento, de modo a compreender sua arquitetura. “Nos seminários, Giannotti brigava muito — intelectualmente, é claro — com o Bento, que tinha uma visão mais existencialista, enquanto ele era mais objetivista”, contou FHC a ÉPOCA. O ex-presidente garantiu que vai ler Heidegger/Wittgenstein. “Com alguma dificuldade, eu consigo ler. O pensamento do Giannotti é muito complexo.”

Giannotti começou a ler Wittgenstein sob a batuta de Granger e, em 1968, publicou uma tradução de Tractatus logico-philosophicus, a principal obra do filósofo austríaco. Ele não esconde o orgulho ao mencionar que sua tradução foi a segunda do Tractatus a ser publicada no mundo, atrás apenas de uma edição em inglês. Já Heidegger, ele começou a ler por insistência do filósofo gaúcho Ernildo Stein. “Eu dizia: ‘Não vou estudar esse nazista!’, mas tive de admitir que o nazista é um bom filósofo.”

E dá para ler Heidegger e ignorar seu nazismo? “Quando você vê La fornarina, de Rafael, você acha genial, mas nem por isso se apaixona por ela. A filosofia, assim como a arte, é um trabalho de destacamento”, explicou. O exemplo não é gratuito. “Sempre tive olho bom para a pintura”, disse Giannotti, que, em 2005, publicou um livro de estética: O jogo do belo e do feio. Ele vai pouco a museus, porque não gosta de ser arrastado pelas multidões impacientes que o impedem de passar quase uma hora em frente a uma única tela. De tempos em tempos, costuma brigar com seus pintores favoritos. “Já briguei violentamente com Rafael, achava fresco, muito bonitinho, mas nos reconciliamos. Também gosto de música. E também brigo. Houve um tempo em que eu não podia ouvir a ‘Quinta sinfonia’ de Beethoven.” Numa época, até Santo Agostinho vinha lhe “enchendo o saco”.

Em 1969, Giannotti foi aposentado compulsoriamente da USP, ao lado de tantos outros professores considerados subversivos pela ditadura militar. Pensou em seguir para a França, mas sua mulher, a poeta Lupe Cotrim, queria continuar no Brasil. Ela morreu em 1970, de câncer, e Giannotti acabou se exilando no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que reuniu um punhado de intelectuais afastados de universidades pelo regime. “No Cebrap, o Giannotti era ave rara, porque era filósofo no meio de sociólogos”, disse FHC. “Ele fazia a crítica metodológica de tudo que fazíamos lá, teve um papel constitutivo ao elevar o rigor de nosso pensamento.” Giannotti foi presidente do Cebrap por quatro mandatos. Voltou à USP no início dos anos 1980, aposentou-se definitivamente em 1984, mas continuou ministrando cursos esporádicos na faculdade.

Diferentemente de muitos de seus colegas acadêmicos, Giannotti nunca quis trocar a filosofia pela política ou por cargos públicos. “Nunca pensei que meus colegas detestassem tanto a profissão que escolheram”, disse, em 1994, ao assistir à debandada de intelectuais para o governo de FHC. Às vezes chamado de “intelectual tucano”, apoiou a candidatura de FHC, seu amigo de décadas, e participou do Conselho Federal de Educação por alguns meses em 1996, mas nunca foi filiado ao PSDB. “O único partido a que fui filiado foi o PT, e só por uns meses”, disse. Hoje, tem críticas aos dois partidos. “O PSDB nunca foi, de fato, um partido. O PT foi consumido pelas corporações e pela burocracia e não zelou pela honestidade pública. E agora vivemos num populismo ligado a milícias.”

Giannotti afirmou que, sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil flerta com o fascismo. “É só ver como o presidente trata o Congresso, as leis, o Supremo Tribunal Federal.” Ele acabou de ler Tormenta, livro recém-publicado da jornalista Thaís Oyama, que passa em revista o primeiro ano do governo Bolsonaro. Contou ter gostado mais de Tormenta do que de Como as democracias morrem, obra dos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt sobre a falência do liberalismo. “É um estudo muito sério, mas é muito Trump, Trump, Trump. Esse aqui (Tormenta) é mais próximo”, disse.

Perguntado se tinha algum conselho a dar às oposições, afirmou que “política não tem fórmula”, mas que a esquerda tem uma difícil tarefa a enfrentar. “A esquerda precisa fazer uma boa análise do capitalismo contemporâneo, mas ninguém fez isso ainda. Você conhece algum texto que trate disso? Se sim, me indique, por favor, que eu vou ler agora.” Como intelectual, disse que tem apenas uma lição política a dar: “Ficar com o pé atrás”. “Como disse Wittgenstein citando O rei Lear, de Shakespeare: ‘Vou ensinar-lhe diferenças’. Neste mundo do bordado e do insulto, quero ensinar as diferenças com as quais temos de lidar. Temos aí um desafio político.”

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