- Ilustríssima / Folha de S. Paulo
Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso detalha a criação do centro de pesquisa Cebrap logo após o AI-5, sublinha o papel do centro na evolução intelectual do país e explica como ele colaborou para aproximá-lo de figuras políticas como Ulysses Guimarães e Lula.
Alguns de nós, professores da USP, fomos aposentados compulsoriamente pelo AI-5, 50 anos atrás. Era um grupo que incluía a mim, Elza Berquó, Paul Singer, Cândido Procópio Ferreira, José Arthur Giannotti...
Eu já havia sido exilado em 1964. Fui para o Chile e depois para a França, onde dei aulas na Universidade de Paris. E após o AI-5, muitos de nós tivemos de novo convites para ir ao exterior. Mas não havia, da nossa parte, disposição de sair. “Já passei tantos anos fora, vamos tentar organizar alguma coisa aqui”, pensei.
Foi difícil criar o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). As pessoas estavam com medo. Procuramos algumas personalidades que pudessem nos dar algum respaldo, como Paulo Egydio Martins, que viria a governar São Paulo, e o empresário e político Severo Gomes. Também tivemos apoio de gente como dom Paulo Evaristo Arns, Celso Lafer e José Mindlin, que nos deram suporte político e moral.
Eu tinha já uma certa experiência internacional, sobretudo na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), e assim conhecia instituições como a Fundação Rockefeller, a Fundação Ford —isso tudo era muito suspeito aqui no Brasil. Havia muito preconceito com essa coisa de americano. Mas a Fundação Ford teve papel muito importante a favor dos atingidos pelos golpes no Chile, na Argentina e no Brasil, com o financiamento ao Cebrap.
Aqui dentro, o apoio institucional que tivemos foi da Fundação Getulio Vargas, onde trabalhava gente como Roberto Gusmão e Antonio Angarita. Esse respaldo todo colaborou para que as fundações nos dessem algum recurso. A certa altura, conseguimos um “endowment”, uma doação com a qual compramos uma fábrica de móveis na Freguesia do Ó que estava para fechar. Alugávamos esse galpão enorme para ter renda.
Essa base fixa de dinheiro foi essencial, assim como os contratos que íamos firmando com empresas de prestação de serviços. Nos anos 1970, empresas de planejamento coincidiram de estar contratando trabalhos de pesquisa no limiar entre o público e o privado. Ali pudemos obter mais algum dinheiro.
O Cebrap foi uma das primeiras organizações não governamentais, quando o nome ONG ainda não existia. Antigamente se tinha uma cabeça muito estatal, em que todo o dinheiro tinha que vir do governo. E o Cebrap não tinha como fazer assim.
Mas ainda sobrevivíamos mal. Alguns de nós não tirávamos quase nada do Cebrap, nos mantínhamos dando aulas por fora, às vezes com temporadas em instituições estrangeiras —afinal, éramos em grande parte professores aposentados.
Começamos a juntar toda a intelectualidade de quem o governo não gostava —pessoas que não eram só da USP nem só de São Paulo. Vieram Bolívar Lamounier e Vilmar Faria, de Minas Gerais, Carlos Estevam Martins, do Rio de Janeiro. Pode parecer que não é nada, mas isso evitou aquilo que os americanos chamam de “inbreeding”, o nós com nós. Então, pelas circunstâncias, o Cebrap já nasceu com ligações internacionais e com boa parte do Brasil.
Aos poucos foram se juntando outros, como Chico de Oliveira e Francisco Weffort. O primeiro presidente foi o Procópio —na prática quem mandava era eu, que tinha todos os contatos, mas Procópio era um sujeito fora de série.
Fizemos ali algo que acho que teve seu papel. Uma instituição, para durar, precisa de recursos e ideias. O Cebrap tinha recursos, teve ideias. Eu brincava dizendo que era um convento da Idade Média. Ali, se pensava livremente.
Como aquilo foi um agrupamento criado pelo governo que nos expulsou, não eram pessoas da mesma área. Elza é estatística, eu sou sociólogo, o outro é economista, filósofo. Obrigou a uma espécie de interdisciplinaridade e a uma renovação constante da temática. Inovou-se muito.
Alugamos uma casa na rua Bahia, em Higienópolis, e lá ficamos muito tempo. Fazíamos debates internos naquilo que chamávamos de “mesão”, um móvel grande onde a gente se juntava e brigava intelectualmente. Era o embrião de um think tank.
Esse mesão passou a ser prestigiado, então todas as pessoas ligadas a economia e ciências humanas apartadas do regime passavam por lá: Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Antônio Barros de Castro. E trouxemos visitas internacionais como Jürgen Habermas, Albert Hirschman, Michel Foucault.
Começamos a ter publicações, uma revista que passou a dar prestígio. E o Cebrap virou uma espécie de modelo que se reproduziu no Chile e na Argentina, onde também se instalaram regimes autoritários.
Um dia apareceu na minha casa o economista Vinícius Caldeira Brant. Tinha saído da cadeia e queria trabalhar. Eu disse: “Olha, arranjo alguma coisa para você, mas só tenho uma pergunta: você está ligado a alguma organização armada?”. Porque se estivesse, não tinha como, ia estourar o Cebrap.
Ninguém do centro tinha, que eu soubesse, ligação com a luta armada. Nem eram pessoas diretamente orientadas pela vida política. Alguns foram renitentes em vir para o centro por isso, como o Octavio Ianni, que acabou vindo, mas tinha uma certa desconfiança das instituições privadas. Florestan Fernandes, por exemplo, nunca veio. Mesmo nós tendo trabalhado juntos, eu como seu assistente. Acabou indo para o Canadá.
Numa certa altura, mesmo assim, nós todos fomos parar na Oban (Operação Bandeirante), que era o órgão de repressão da ditadura. Supunham que o Cebrap era uma organização de fachada de algum grupo. No meu caso, era uma estupidez, achavam que eu tinha ligações com o trotskismo. Eu nunca tive nenhuma. Boris Fausto, meu amigo, era trotskista, mas lá em priscas eras.
Fui interrogado por horas, com ameaça de tortura. Vi gente torturada, minhas perguntas vinham de outro lugar, por telefone. E perguntavam de líderes que eu não sabia quem eram. Depois descobri: uma vez tinha ido a um seminário no México com o Ianni e, no aeroporto da volta, estava lá um líder trotskista chamado Ernest Mandel. Carreguei a mala da mulher dele por gentileza. Tiraram fotografia daquilo e eu virei trotskista.
Certa vez, o Comando de Caça aos Comunistas jogou uma bomba na nossa casa da rua Bahia. Queimou papéis meus e tal, mas não feriu ninguém. Foi depois de publicarmos um livro que fez muito sucesso, chamado “São Paulo - Crescimento e Pobreza”, que gerou um debate enorme: discutíamos com dados, em pleno auge do milagre econômico, se crescimento era sempre algo bom.
Havia uma certa tensão entre os “pobristas”, mais ligados à Igreja Católica, e os “não pobristas”, ex-comunistas ou coisa que o valha. Mas eram discussões mais teóricas, não partidárias. O Cebrap nunca teve posição partidária.
Certo dia, apareceu no centro o Ulysses Guimarães, do MDB. Eu tinha escrito um artigo em um jornal nanico mas importante chamado Opinião, dizendo que os intelectuais todos torciam pela guerrilha, mas estavam em casa —então era melhor apoiar o MDB, que estava na briga institucional e podia provocar uma mudança real no Brasil.
Ulysses leu e foi pedir para fazermos o programa do partido na campanha de 1974. Eu respondi que não dava, que o Cebrap era um órgão de pesquisa com pessoas de muitas opiniões. Mas disse que eu poderia fazer e perguntar quem mais queria. E fizemos, eu e Maria Hermínia Tavares de Almeida, Carlos Estevam Martins, Francisco Weffort.
Então fui com Weffort a Brasília, na casa do Amaral Peixoto, onde estavam alguns políticos que para nós eram dinossauros —como eu sou hoje. Achávamos que seria muito difícil apoiarem nosso projeto, porque propúnhamos uma plataforma que hoje se chamaria de social-democrata.
Dizíamos que era preciso olhar para o tema da época, a dívida externa, mas não só: também para os trabalhadores, as mulheres, os índios, a área social. Foi a primeira vez que um partido tomou posição nesse sentido, e aquilo foi feito no Cebrap.
E o partido ganhou em toda parte —como ia ganhar mesmo, não foi por causa do programa, mas do momento. A partir daí, fiquei com prestígio no MDB, e outros intelectuais se encontraram com o partido.
Um tempo mais tarde, Weffort e José Álvaro Moisés começaram uma pesquisa no Cebrap sobre a emergência da liderança sindical. E foi aí que eu conheci o Lula. Ele veio dar um depoimento sobre esse assunto, ainda antes de acontecerem as greves e tudo o mais.
Em 1978, Ulysses me procurou para ser candidato a senador. Nessa mesma época, Chico de Oliveira fez uma viagem do Rio a São Paulo e encontrou o Lula no avião. Ele disse ao Chico que queria falar comigo para me apoiar. Eu fui a São Bernardo, o Lula já era presidente do sindicato. Perguntei por que ele queria me apoiar. Ele disse: “Você nunca disse que era o senador dos trabalhadores”. Ou seja, ele estava contra a outra candidatura, do Franco Montoro.
Ainda antes de existir o PT, eu tinha combinado com Ulysses de trazer o Lula para um encontro no meu apartamento na rua Joaquim Eugênio de Lima, em São Paulo. Já tínhamos tentado uma aproximação com a ala mais à esquerda do MDB —Almino Afonso, José Serra e eu. A ideia era o Ulysses conhecer o Lula para que ele fosse o chefe da divisão trabalhista do MDB. Eu lembro bem que, nessa noite, eu vinha de carro de Ibiúna, furou o pneu, chovia e eu era muito ruim de trocar. Cheguei muito tarde a essa reunião.
Ulysses era uma pessoa bastante tradicional, conservadora. Para ele, sindicato era uma coisa e partido era outra. Ele era um cara de muito valor, mas não tinha uma visão contemporânea dessas coisas. E o Lula, muito esperto, estava sondando.
Quando o PT foi fundado, eu achava que era uma divisão prematura da oposição à ditadura. Bom, na época me parecia. Alguns dos pesquisadores do Cebrap foram para o partido, como o Weffort, o Singer, o Leôncio Martins Rodrigues —apesar de ele não gostar que se diga isso. O fato é que essa divisão na oposição não impediu nossa convivência no Cebrap.
Eu tive uma atuação presente no centro até ir para o Senado, em 1983, na cadeira que era do Montoro, de quem eu acabei suplente. Foi só aí, 14 anos depois, que me afastei —Ruth, minha mulher, ficou.
A marca do Cebrap foi a de um grupo independente que trouxe temas novos para o debate, não só aqui, mas na América Latina. Muitos de nós, como eu, Weffort, José Serra, tínhamos forte contato com outros países do continente e buscávamos nos acomodar à tendência mundial. Parte dos acadêmicos que vieram de Minas Gerais tinham sido treinados nos Estados Unidos —o pessoal da USP é “USP, USP, USP”. Então abriu-se a visão do Cebrap.
Outro ponto favorável foi que a Fundação Ford condicionava a continuidade do apoio a uma avaliação externa. No Brasil, o pessoal não gosta de ser avaliado. Só que quem veio nos avaliar foi o economista Albert Hirschman. Em outra, foi Frank Bonilla, de Harvard. E foi muito bom para nós, porque essa gente fazia perguntas —não vinham para examinar, mas para discutir.
E nós éramos obrigados, pelos contratos com empresas, a fazer pesquisas que não eram só teses de doutoramento, mas também de ação política mais prática. Por exemplo, eu trabalhei com o Metrô em São Paulo, fiz uma monografia sobre São José dos Campos. Também tive que avaliar onde era melhor se fazer um grande porto, se no Pará ou no Maranhão. E lá fui eu fazer pesquisa de campo sobre coisas que eu nada entendia.
Ao mesmo tempo, muitos de nós passamos a escrever na imprensa. Eu escrevi na Folha por muitos anos. É interessante, porque no passado, a USP era irmã gêmea do jornal O Estado de S. Paulo, já que eles participaram da formação da universidade. Mas quando veio o golpe de 1964, a Abril e a Folha foram as maiores beneficiárias do ponto de vista de aproveitar os intelectuais.
A Abril dava emprego para muitos, com os folhetos e a edição de clássicos, e a Folha, como o velho Frias [Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), então publisher do jornal] tinha uma cabeça rápida, percebeu que tinha que abrir as colunas. Isso é bom, porque leva a intelligentsia a se preocupar com coisas que não são da intelligentsia, são da vida. Não dá para falar de Kant em toda coluna.
É importante que as instituições tenham sensibilidade para se renovar quando a sociedade muda. Quantas delas duram 50 anos no Brasil? E produzindo.
É natural que elas mudem de caráter com o tempo. No caso do Cebrap, houve uma cissiparidade, vários dos membros criaram centros deles próprios, como o Bolívar e o Weffort. Tinha quem torcesse o nariz, mas eu acho natural abrir esse espaço para quem quer crescer.
O Cebrap foi fruto de uma perseguição ideológica. Então nasceu para ser independente e ter pluralidade. Hoje o trabalho é diferente, porque há liberdade; o Brasil também cresceu e tem instituições proliferando.
Riscos à educação e à pesquisa existem sempre, e tem que tomar cuidado. Esse governo é quixotesco, fica querendo matar moinho de vento com essa história de comunismo, globalismo. Mas a sociedade tem resiliência. Uma instituição como a Fapesp, que é independente e tradicional, como o governo vai destruir?
É preciso lembrar que o Cebrap existiu em um governo autoritário. Nós estávamos cassados —se você ler o AI-5, ali diz que estávamos proibidos até de fazer pesquisa. É bom que se fique assustado. Mas não que se entre em pânico.
*Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), é sociólogo, professor emérito da USP e fundador do Cebrap.
Depoimento a Walter Porto.
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