segunda-feira, 11 de março de 2024

Marcelo de Azevedo Granato* - Desigualdade de tudo

O Estado de S. Paulo

No atual cenário, como cogitar realisticamente o alcance da tão aclamada igualdade de oportunidades?

Imagine uma enquete em que a seguinte pergunta é feita aos brasileiros: você preferiria ser mais pobre num país menos desigual ou ser menos pobre num país mais desigual? A grande maioria dos brasileiros provavelmente preferiria ser menos pobre num país mais desigual. A preocupação maior das pessoas seria, compreensivelmente, a própria pobreza, não a desigualdade (em outros e mais amplos termos: o problema não seriam os poucos que acumulam fortuna, mas os muitos que deixam de comer para poder comprar material escolar).

Vale estender essa discussão. Primeiro, registrando que ela normalmente gira em torno da desigualdade de renda apenas, embora esse não seja o único tipo de desigualdade relevante na sociedade. Além disso, a hipotética enquete acima não inclui a alternativa “ser menos pobre num país menos desigual”. Se tivesse sido incluída, provavelmente seria ela a preferida dos brasileiros.

O problema é que o Estado brasileiro combate a pobreza, mas não a desigualdade. Examinando a evolução da política tributária brasileira entre 1985 e 2017, com foco no Imposto de Renda das pessoas físicas (IRPF) – imposto federal com efeito distributivo mais claro e direto –, Eduardo Lazzari e Jefferson Leal concluem que “nenhum governo implementou mudanças significativas na política tributária que visassem a reduzir a desigualdade por meio desse imposto”. Mais ainda: “A maior parte das alterações às quais o IRPF foi submetido implica a redução da progressividade desse imposto, por meio de isenções e deduções” (As políticas da política).

Por imposição constitucional, o IRPF é um tributo progressivo. Por isso, quanto maior for a renda do contribuinte, maior deverá ser o imposto pago por ele como parcela dos seus rendimentos. Entretanto, no estudo citado acima, lemos que a faixa de renda mais rica, que declara mais de 160 salários mínimos, concentra em média 34% de todos os rendimentos isentos do IRPF, enquanto, entre os rendimentos tributáveis, essa mesma faixa responde por apenas 3%.

O expressivo porcentual de rendimentos isentos dentre os muito ricos decorre sobretudo da não tributação de lucros e dividendos distribuídos por empresas aos seus beneficiários. Como mostra Marcelo Medeiros em Os ricos e os pobres, o 1% mais rico recebe em torno de 3/4 de todos os lucros, dividendos e rendas de empresas do País. Este 1% corresponde a 1.536.670 pessoas com renda média mensal de R$ 87.776 (nota técnica do Observatório de Política Fiscal, janeiro de 2024).

Não surpreende, então, que, para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “os impactos redistributivos da tributação direta são pífios, mostrando haver espaço para que esse instrumento seja empregado na diminuição da desigualdade” (Impactos redistributivos das transferências públicas monetárias e da tributação direta: evidências com a POF 20172018). Daí o justo clamor pela retomada da incidência do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos (a ser calibrada com a tributação das pessoas jurídicas, as regras de distribuição disfarçada de lucros, etc.).

É importante ressaltar que o combate à desigualdade não é incompatível com o combate à pobreza, inclusive porque esses combates não ocorrem da mesma forma. A incompatibilidade que existe é de outro tipo, como nos diz o colunista Fabio Giambiagi: “Não haverá futuro decente para o Brasil enquanto quem carrega politicamente a bandeira do combate à desigualdade continuar com um viés anticapitalista e quem defende a bandeira do capitalismo continuar insensível diante de um dos quadros distributivos mais iníquos do mundo” (“Não há futuro para o Brasil enquanto existir insensibilidade à desigualdade de renda”, Estadão, 29/12/2023).

O fato de o Brasil ter, como diz Giambiagi, “um dos quadros distributivos mais iníquos do mundo” tem repercussões que ultrapassam a desigualdade de renda em si. Afinal,

desigualdade de renda gera concentração de poder, que beneficia pequenos grupos influentes, reprime a produtividade, restringe o debate público e distorce o sistema político a ponto de perpetuar não só as desigualdades, mas também a pobreza.

Como já dito neste espaço, a excessiva desigualdade de renda presente no Brasil fabrica mundos distintos dentro do País. Por exemplo, o leitor deste texto que pertença ao grupo dos mais ricos provavelmente não frequenta, talvez nem conheça, hospitais e escolas localizados na periferia da sua cidade (talvez nunca tenha passado pela região). Já o leitor que pertença a um estrato mais pobre provavelmente nunca esteve nos locais privados de lazer frequentados pelos mais ricos, nem se locomove na cidade da mesma forma. E não são só as realidades; também as expectativas de vida são outras.

Num cenário tão desigual, a conciliação de interesses fica mais difícil e a confiança tanto interpessoal quanto nas instituições rareia (o Brasil, disse o Banco Interamericano de Desenvolvimento em 2022, é o país onde há menos confiança em toda a América Latina e o Caribe). Quanto menor essa confiança, menores a coesão social, a colaboração entre as pessoas e a estabilidade política. Neste cenário, como cogitar realisticamente o alcance da tão aclamada igualdade de oportunidades?

*Doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp

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