Estados
Unidos ‘brasilianizados’ seriam marcados por ruidosa desigualdade
Quando
falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente
“brasilianização” dos Estados Unidos.
A
expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The
Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o
brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido
Democrata.
Esses
bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe
branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria
uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o
ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o
egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.
É
nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade
americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um
privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca,
negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam
antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.
Eis,
numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos
brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o
elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi
raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa
Branca.
Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.
Todo
centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com
“O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num
engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã
sociologia.
Não
é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um
“presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um
poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição.
O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos
conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe
com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a
lei.
Conforme
revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando?
Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo
é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos;
menos, é claro, para quem se acha...
Como
é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da
escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo
num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme
assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?
E,
ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil
equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas,
gastos públicos responsáveis e corrupção?
Lá,
o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta
pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um
entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que
a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização”
dos Estados Unidos.
P.S.:
Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e
privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas,
como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É
deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não
pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão —
esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e
inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano
e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo
senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo
pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a
devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão
não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.
*É
historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
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