É um erro prorrogar incentivos federais a montadoras do Nordeste
O Globo
Emenda à reforma tributária tenta manter
benefício para agradar empresas com fábricas na Bahia
Quando parecia haver consenso contra a
guerra fiscal travada pelos estados na disputa por investimentos de indústrias,
surge a ameaça de uma emenda do governo à reforma tributária que estende
incentivos até 2032. O objetivo é beneficiar montadoras instaladas no Nordeste:
a Jeep, da holding Stellantis, e a fabricante chinesa de carros elétricos BYD,
que acaba de chegar à Bahia.
A ideia pôs em alerta o consórcio dos governos de Sudeste e Sul. O governador de Minas, Romeu Zema, vislumbra o risco de a prorrogação da isenção de tributos federais — PIS-Cofins e IPI — induzir a Stellantis a dar prioridade a investimentos na montadora Jeep que tem em Pernambuco, em detrimento da fábrica da Fiat em Betim, também controlada pela holding.
O estopim da tensão entre governos
estaduais e Planalto foi a chegada da chinesa BYD para fabricar carros
elétricos nas antigas instalações da Ford em Camaçari, Bahia, estado do
ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, e do líder do governo no Senado, Jaques
Wagner, ambos do PT. Lula chegou a receber no Planalto a presidente da BYD,
Stella Li, acompanhada de Costa e do governador baiano, Jerônimo Rodrigues
(PT).
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
da reforma tributária cria um fundo que bancará até 2032 os benefícios da
isenção de ICMS distribuídos por governadores na guerra fiscal para atrair
investimentos industriais. Os governadores do Nordeste querem o mesmo para
montadoras nos impostos federais. Em julho, uma emenda para prorrogar os
incentivos foi apresentada na Câmara minutos antes da proclamação do resultado
da votação do texto-base da reforma tributária. Por um voto não foi aprovada. O
governo tenta agora incluí-la no Senado.
É extensa a história dos incentivos fiscais
e das distorções que provocam nos mercados. Empresas beneficiárias deixam de
buscar aumento de produtividade, por não estarem expostas à competição
equilibrada. O próprio setor automobilístico no Brasil serve de exemplo. As
montadoras foram atraídas por incentivos e começaram a instalar suas fábricas
no país no início dos anos 1950. Protegidas por altas tarifas de importação,
não traziam ao Brasil os modelos mais modernos lançados nas matrizes. Só com a
abertura comercial do governo Fernando Collor de Mello (1990-92), as fábricas
brasileiras passaram a modernizar seus produtos.
Isso não impediu que, entre 2000 e 2021, as
montadoras recebessem quase R$ 70 bilhões em incentivos fiscais. Só no ano
passado, foram R$ 10 bilhões, mais de 2% do total de subsídios do governo.
Eternizar subsídios é repetir erros do passado. Os benefícios fiscais das
montadoras que se instalaram no Nordeste, Norte e Centro-Oeste foram criados há
26 anos e passaram a ser prorrogados a cada cinco anos sem nenhum critério
objetivo para avaliar resultados. A manutenção dos incentivos tributários
federais para beneficiar empresas de uma região demonstra que não se aprendeu a
lição. O certo não é ampliar um erro para todo o país. É simplesmente não
cometê-lo.
Mais do mesmo ou salto no escuro, o dilema
argentino
Valor Econômico
Milei propõe uma terapia de choque para a
Argentina, baseada num receituário ideológico libertário nunca testado em
nenhuma economia importante
As eleições deste ano vão colocar os
argentinos diante de um dilema. De um lado estarão dois candidatos vinculados a
partidos que fracassaram no governo do país na última década. Do outro, um
candidato inexperiente em política que promete um remédio na aparência
revolucionário, porém muito arriscado.
Há uma sensação ampla entre os eleitores
argentinos de que as candidaturas do atual ministro da Economia, o peronista
Sergio Massa, e da ex-ministra Patricia Bullrich são mais do mesmo. Massa,
apesar de não ser kirchnerista, é o timoneiro da nave governista que está
entregando um país em frangalhos. Já Bullrich é ligada ao ex-presidente
Mauricio Macri, cujo governo também terminou em crise econômica e desacreditado.
Tanto Massa como Bullrich prometem reformas pró-mercado e liberalizantes, mas
carregam o peso do fracasso dos dois últimos governos.
A alternativa é o ultraliberal Javier Milei, um outsider, com pouca experiência política e nenhuma de governo - ele é deputado federal há dois anos - e que tem uma estrutura partidária incipiente. Milei propõe uma terapia de choque para a Argentina, baseada num receituário ideológico libertário nunca testado em nenhuma economia importante. Ele promete um corte brutal de gastos públicos e uma grande redução de impostos. O objetivo é aliviar o peso do Estado na economia e libertar as forças do capital privado.
Milei diz, com razão, que as forças produtivas no país estão reprimidas por uma carga excessiva de regras e impostos e por uma elevada interferência do Estado, que distorce a economia. Basta recordar que a Argentina tem hoje 16 taxas de câmbio diferentes para o dólar. O ajuste fiscal, que Milei disse recentemente que superaria o pedido pelo Fundo Monetário Internacional, seria baseada no corte de subsídios e no corte e/ou privatização de serviços públicos, como saúde e educação. Haveria ainda uma forte redução no quadro de funcionários públicos, numa ampla reforma do Estado.
Milei pretende ainda eliminar o Banco
Central. Para os libertários, o BC é uma estrutura estatal desnecessária, cujas
atribuições podem ser exercidas pelo mercado. E é danoso, pois permite a
emissão monetária descontrolada para financiar o governo, como no caso da
Argentina. Eles atribuem recessões a intervenções desnecessárias do BC nos
mercados. A eliminação do BC coincidiria com a dolarização da economia. Os
argentinos poderiam usar livremente o dólar (ou qualquer outra moeda) no seu
dia a dia. Parte da economia, como o mercado imobiliário, hoje já é de fato
dolarizada.
Outra proposta é a abertura comercial
irrestrita e unilateral. Para Milei, essa abertura é benéfica para a economia,
pois favorece a alocação dos recursos escassos em setores onde o país é mais
competitivo, além de fomentar a concorrência. O candidato promete ainda acabar
com obras públicas, que seriam fontes de corrupção. Essas obras seriam
concedidas ao setor privado.
São propostas que alguns consideram
inovadoras, mas que, para muitos economistas, são arriscadas e difíceis demais
de implementar. Ainda mais para um governo que provavelmente não teria maioria
no Congresso. Questões como eliminar o banco central são altamente
controversas. Apenas um punhado de países pequenos, como Nauru, Mônaco ou
Panamá, em geral sem moeda própria, não tem banco central hoje. Acabar com o BC
seria um teste inédito numa grande economia. E, possivelmente, a Argentina é o
lugar menos adequado para esse tipo de teste, pela desorganização e fragilidade
da sua economia. É como testar uma dieta alimentar nova num doente em estado
crítico.
Milei responde dizendo que o seu projeto de
reformas é gradual e que o plano completo levaria 35 anos. Essas ressalvas
levantam outras indagações. Se o projeto é gradual e é improvável que muitas
das propostas sejam aprovadas pelo Congresso, o que ele fará exatamente? Que
políticas adotará? Não se sabe. A dilatação do plano econômico em 35 anos é
preocupante num país que não sabe bem como quitará suas dívidas até o final
deste ano. Que gestor pode propor um projeto de 35 anos? Se Lula ou Bolsonaro
dissesse isso no Brasil seria ridicularizado e/ou acusado de pretender se
eternizar no poder. Chega a parecer uma desculpa antecipada para o insucesso.
A abertura comercial completa também é de
difícil execução. Ela se chocaria com as regras do Mercosul e com a tendência
mundial, que hoje é de mais fechamento, e não de abertura comercial. Além
disso, no curto prazo pode gerar déficits comerciais que a Argentina hoje não
tem como financiar. Há o risco de que setores menos competitivos, especialmente
na indústria, sejam dizimados. A dolarização também já foi testada pela
Argentina, não deu certo e resultou em desindustrialização.
Assim, os argentinos irão às urnas em meio a expectativas duvidosas. A primeira é que um dos dois grupos políticos tradicionais tenha aprendido com os erros cometidos e adote desta vez as políticas corretas, certamente muito dolorosas. A segunda é que um programa nunca testado e altamente arriscado dê certo num país instável como a Argentina.
Dragão exaurido
Folha de S. Paulo
Economia chinesa mostra fragilidade;
cenário de desaceleração pode ser duradouro
Evidências de desaceleração da economia
chinesa precedem a pandemia de Covid-19, mas ficaram mais claras com a
frustração da retomada esperada em 2023.
O impulso ao crescimento esgotou-se
rapidamente. Nos últimos meses houve estagnação de vendas no varejo e queda da
produção industrial e das exportações, a ponto de colocar em dúvida a meta do
governo de expandir o Produto Interno Bruto em 5% neste ano.
Pior, os dados mais recentes indicam
crescimento potencial adiante abaixo de 3%. Observa-se
deflação no atacado e nos preços ao consumidor. Cortes das taxas de
juros, já em torno de 2,5% ao ano, e ampliação do crédito não têm sido
suficientes para reverter o quadro.
O diagnóstico que vai se firmando é o de
uma economia desbalanceada, com insuficiência crônica de consumo interno e
dívidas excessivas de empresas estatais e governos locais, legadas por muitos
anos de investimentos cada vez menos produtivos em infraestrutura e construção
civil.
Do lado das famílias, num
sistema financeiro fechado, os imóveis foram o principal destino da poupança,
com aumento dos preços de moradias nas últimas décadas, que agora parece ter
chegado ao fim.
Devido à erosão do valor de seu principal
patrimônio, os cidadãos têm a confiança abalada e compram menos —a parcela do
consumo no PIB é de apenas 38% no país, contra cerca de 70% nos EUA.
No agregado, esgotada a fase ascendente,
configura-se um quadro de fragilidade financeira, que revela viés recessivo
conforme os agentes contraem seus gastos. Juros mais baixos se mostram inócuos,
como observado no Japão a partir da década de 1990.
É pertinente a comparação com a experiência
japonesa, na qual o vigoroso crescimento da economia do país foi seguido por
anos de fraco desempenho, em vez de uma crise financeira do tipo ocidental. A
demografia é outro paralelo relevante —a população da China pode estar em
declínio mais rápido que o esperado.
A questão mais importante é como reagirá o
governo central de Xi Jinping. Até agora, o partido comunista segue a cartilha
de sempre: mais crédito para infraestrutura e subsídios para a indústria.
Dobrar a aposta na alta da capacidade de
oferta é a conduta mais alinhada ao propósito de controle político do governo.
Mas também poderá agravar o problema principal, a escassez de consumo e
serviços, que resulta em insuficiente geração de empregos.
A esta altura o receituário mais eficaz
para impulsionar o crescimento seria aumentar drasticamente as transferências
para famílias, algo que ainda parece distante do pensamento de Xi Jinping.
Democracia melhor
Folha de S. Paulo
Decisão do STF de ajustar bancadas na
Câmara reduz distorções na representação
Legisladores naturalmente resistem a
modificar as regras pelas quais conquistaram seus postos. Essa lógica ajuda a
entender a dificuldade para a aprovação de uma reforma política ou mesmo de
providências mais simples, como ajustar periodicamente a composição da Câmara
dos Deputados.
Conforme o artigo 45 da Constituição, o
número de deputados eleitos em cada estado será proporcional à população,
respeitando-se os limites mínimo de oito e máximo de 70, e as eventuais
alterações necessárias no tamanho das bancadas devem ser previstas nos anos
anteriores aos pleitos.
Entretanto a última vez que o Congresso se
dispôs a tratar do tema foi há 30 anos, quando uma lei complementar elevou de
503 para 513 a quantidade de cadeiras na Câmara. De lá para cá, as
transformações demográficas apuradas nos censos de 2000 e 2010 foram ignoradas
pelos parlamentares.
Terá impacto
considerável, portanto, a decisão tomada na sexta (25) pelo Supremo Tribunal
Federal de determinar que as bancadas a serem eleitas em 2026
sejam proporcionais às populações estaduais contadas no censo de 2022.
Por unanimidade, os magistrados definiram
que o Congresso deve aprovar lei nesse sentido até 30 de junho de 2025; caso
contrário, caberá ao Tribunal Superior Eleitoral fazer a adequação.
Recorde-se que o mesmo TSE tentou ajustar
as bancadas em 2013 por resolução própria —que foi considerada inconstitucional
pelo Supremo, devido ao entendimento de que a medida cabia ao Legislativo.
A omissão dos parlamentares ante um
mandamento constitucional, no entanto, persistiu.
Segundo
contas do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap),
sete estados (RJ, BA, RS, PI, PB, PE e AL) perderão vagas na Câmara, enquanto
outros sete (SC, PA, AM, MG, CE, GO e MT) ganharão. Também muda nessas unidades
federativas o tamanho das Assembleias Legislativas.
A medida aperfeiçoa a democracia brasileira
ao tornar mais justos os critérios de representatividade. Os votos de todos os
brasileiros, afinal, deveriam ter o mesmo peso.
Para que tal princípio fosse integralmente aplicado, seria necessário também eliminar os limites mínimo e máximo para as bancadas estaduais, que prejudicam em particular São Paulo, estado mais populoso e sub-representado. Essa, porém, é uma distorção histórica e consagrada na Constituição.
A hora do pluralismo sindical
O Estado de S. Paulo
É justo que os sindicatos sejam
recompensados quando atuam em favor dos trabalhadores. Mas os trabalhadores
devem ter o direito de escolher quem atuará por eles e negociar a recompensa
O governo prepara uma proposta de lei para
instaurar uma contribuição obrigatória dos trabalhadores aos sindicatos.
Segundo o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, não se trata de exumar o imposto
sindical extinto pela reforma de 2017, mas de contribuições vinculadas a
reajustes salariais intermediados pelos sindicatos. É uma espécie de taxa de
sucesso.
“Uma democracia precisa ter um sindicato
forte”, justificou Marinho a O Globo. Sem dúvida. O problema é o que se entende
por “sindicato forte” quando se trata de estabelecer relações equilibradas
entre empregados e empregadores. Sindicato forte não é sindicato balofo, mas
sim representativo, ou seja, que trabalhe pelos interesses dos trabalhadores. O
padrão no Brasil nunca foi esse e nada indica que a proposta o retificará – ao
contrário.
O modelo nacional foi fabricado pela
ditadura Vargas para arregimentar as lideranças sindicais. Criou-se então o
imposto obrigando os trabalhadores a dar o equivalente a um dia de trabalho ao
ano para os cofres sindicais. Além disso, instaurou-se a “unicidade”: a
permissão de apenas um sindicato por categoria para cada região. Com fluxos
garantidos de dinheiro tomado pelo Estado dos bolsos dos trabalhadores, as
elites sindicais deram as costas a eles e se atrelaram ao poder estatal. Daí o
termo “pelego” – a pele de carneiro entre a sela e a cavalgadura – para os
sindicalistas que amaciavam o lombo dos trabalhadores enquanto as oligarquias
apertavam seu cabresto.
O PT e seu braço sindical, a CUT, surgiram
na atmosfera do “novo sindicalismo”, que contestava o “peleguismo” e defendia a
liberdade de filiação, a autonomia de organização, a livre negociação entre
patrões e empregados e o fim do imposto sindical. Mas a Constituição de 88
acolheu o entulho autoritário varguista, que foi abraçado pelo PT tão logo subiu
ao poder. “As centrais sindicais, tornadas correias de transmissão do ‘Estado
lulista’”, disse neste jornal José Antonio Segatto, “passaram a confraternizar
no Ministério do Trabalho, repartindo poderes e verbas, abocanhando 10% do
imposto sindical e gerindo recursos do FAT, do FGTS, de fundos de pensão, etc.”
A reforma pôs fim à fonte principal da
esbórnia, o imposto, e os sindicatos passaram a depender de contribuições
voluntárias de seus associados. Ocorre que as negociações têm custos, e os
benefícios negociados valem para todos os trabalhadores de suas categorias. Por
isso, na maior parte das democracias, admitem-se contribuições obrigatórias
condicionadas a esses benefícios. A proposta do governo emularia esse modelo.
Mas essa é só uma meia-verdade. A verdade
inteira é que nos outros países os trabalhadores podem formar quantos
sindicatos quiserem. Esses sindicatos competem para arregimentar afiliados,
oferecendo melhores serviços a menores custos, incluindo o das contribuições. É
o sindicato mais representativo que assume as negociações coletivas, e o
destino da contribuição compulsória (acordada por afiliados e não afiliados) é
limitado ao custeio delas. A aferição da representatividade é regulamentada e
periódica, e o sindicato que deixa de ser representativo deixa de ser o
negociador e perde a contribuição.
Mas no Brasil vigora, por disposição
constitucional, o monopólio dos sindicatos estabelecidos e sua
discricionariedade para empregar as contribuições – inclusive em campanhas
partidárias ou para enriquecer seus líderes. É a essas entidades que o
Ministério do Trabalho quer garantir o “direito” de tomar do trabalhador até 1%
de sua renda anual, ou seja, quatro vezes mais que o famigerado imposto
sindical.
Como disse à CNN o especialista em relações
trabalhistas e colunista do Estadão José Pastore, se a Constituição for
alterada para se instaurar a pluralidade sindical e a fiscalização dos
recursos, a proposta de contribuição pode ser uma “excelente solução”. Mas, se
for mantido “um sistema de monopólio que não pode ser controlado nos seus
abusos”, será “um retumbante fracasso e retrocesso”. Não há notícia de que o
governo pretenda mexer nesse monopólio. Se for assim, que o Congresso atue para
evitar retrocessos.
A democracia nos currículos escolares
O Estado de S. Paulo
Agora, mais do que nunca, é preciso formar
os jovens em relação à educação política e aos direitos da cidadania. Ao
incluir o tema nos currículos escolares, Câmara cumpre a Constituição
A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de
Lei (PL) 1.108/2015, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB,
Lei 9.394/1996) para incluir Educação Política e Direitos da Cidadania no
currículo regular das escolas brasileiras. Trata-se de uma medida importante,
alinhada com a Constituição e com a própria LDB. Sempre foi fundamental educar
para a democracia e a cidadania, mas nos tempos atuais, com tanta
desinformação, essa tarefa se tornou ainda mais premente. Agora, a proposta
será analisada pelo Senado.
A Constituição de 1988 determina que a
educação, “direito de todos e dever do Estado e da família”, deve ter três
grandes finalidades: o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ao definir as
diretrizes da educação nacional, a Lei 9.394/1996 ratifica, no art. 2.º, os
três objetivos elencados na Constituição. Ou seja, a rigor, o Congresso não
está inventando nada com o PL 1.108/2015. Apenas cumpre o texto constitucional.
Não há verdadeira educação sem formação para a cidadania.
Ao expor os motivos de sua proposta, a
autora do projeto, deputada Renata Abreu (Podemos-SP), questionava, com razão,
em 2015: “Será que queremos jovens que passam nas melhores universidades deste
País, mas que desconhecem seus direitos e deveres como cidadãos? Que não
conhecem a Constituição do seu País? (...) Que são obrigados a votar, mas que
não sabem nem ao certo o que fazem cada um daqueles governantes? Como podemos
cobrar destas gerações que votem corretamente quando não demos a elas o mínimo
de conhecimento para isso?”.
A resposta a esses questionamentos foi dada
pela Constituição de 1988. Não há genuína educação onde há alienação, onde há
ignorância sobre os direitos e os deveres comuns a todos os cidadãos. Diante da
disposição constitucional, a LDB estabeleceu que os currículos das escolas
brasileiras devem abranger obrigatoriamente “o estudo da língua portuguesa e da
matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e
política, especialmente do Brasil” (art. 26, § 1.º). É justamente nesse tópico
– o conhecimento da realidade social e política nacional – que incide o PL
1.108/2015, incluindo a educação política e os direitos da cidadania.
Naturalmente, esse conteúdo sobre
democracia e cidadania não pode servir de pretexto para doutrinação
ideológico-partidária. Uma disciplina assim seria inconstitucional,
desrespeitando o pluralismo político e as liberdades de pensamento e de
expressão, que são elementos essenciais de todo Estado Democrático de Direito.
Educar para a cidadania não é fornecer uma determinada orientação política aos
jovens. Isso violaria as regras mais básicas de funcionamento de um regime
democrático.
A pauta do que deve ser ensinado às
crianças e aos jovens a respeito de educação política e direitos da cidadania é
dada pela própria Constituição, que, como se sabe, expressa o consenso
axiológico de um país. Há muito a ser ensinado às novas gerações; por exemplo,
os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade de todos perante a
lei, os direitos e garantias fundamentais, os princípios fundadores do Estado,
a tripartição dos Poderes.
Ao longo dos últimos anos, desde que o PL
1.108/2015 foi apresentado na Câmara, houve sensível retrocesso na compreensão
de muitos aspectos da democracia e da cidadania por parte da população, nos
mais diversos grupos ideológicos. Em concreto, decaiu a compreensão sobre as
liberdades de opinião e de expressão – como se incluíssem o direito de ameaçar
e agredir–-, sobre o Judiciário – como se estivesse refém da voz da maioria – e
da própria Constituição – como se seu conteúdo variasse segundo a orientação
política do intérprete. Houve e continua havendo difusão massiva de
desinformação sobre esses temas.
É muito oportuno, portanto, o PL
1.108/2015. As novas gerações não podem estar reféns da manipulação. Toda
educação, é o que dispõe a Constituição, deve fortalecer a autonomia.
AGU desarma o Ibama
O Estado de S. Paulo
Alegação central para impedir exploração de
petróleo na Margem Equatorial foi desmantelada
O parecer emitido pela Advocacia-Geral da
União (AGU) em resposta a um questionamento do Ministério de Minas e Energia
rebateu o principal argumento do Ibama que impede a Petrobras de perfurar um
poço exploratório na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial.
A interpretação da AGU foi simples. O
documento exigido pelo Ibama, a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS),
é dispensável, uma vez que o bloco exploratório já foi outorgado. Recorde-se que
a avaliação ambiental é condição para que potenciais áreas de exploração de
petróleo sejam levadas a leilão. Ou seja, considerando que o poço que a
Petrobras pleiteia perfurar seria o primeiro de um bloco já leiloado em 2013,
isso significa que foram cumpridos todos os estudos preliminares, com
participação do Ibama, sem os quais a concessão não teria sido outorgada.
A exploração tem como objetivo medir in
loco a existência ou não de petróleo em quantidade suficiente para justificar a
produção. Se a análise de sensibilidade ambiental da área foi feita previamente
à licitação, não há por que impedir a medição da capacidade das reservas que o
próprio governo concedeu. Ressalte-se que o resultado é incerto. Pode até
indicar que não vale a pena produzir na área.
A lógica do voto da AGU foi cristalina, mas
o recado político que o parecer embute é mais eloquente. Com a manifestação,
fica ainda mais patente a determinação do governo em investigar o potencial da
nova fronteira exploratória. Diante da vontade explicitada, mais de uma vez,
pelo próprio presidente Lula da Silva – e endossada por governadores e
parlamentares do Norte e do Nordeste –, tudo indica que a exploração de
petróleo em águas profundas da Margem Equatorial é uma questão de tempo.
Nada mais coerente, aliás. Se a Agência
Nacional do Petróleo (ANP), órgão regulador de mercado, a União, dona das
possíveis reservas petrolíferas, e os órgãos ambientais consideraram que o
risco da atividade não seria empecilho à concessão dos blocos, qual o sentido
de mudar as regras depois do leilão? A atuação dos órgãos públicos servirá de
referência não apenas para esse bloco específico, ou para outros arrematados
nas bacias da Margem Equatorial. Qualquer alteração fomentará insegurança em
todo e qualquer leilão da ANP.
Vêm do Ibama e da ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva, as vozes dissonantes no governo. Diante da proposta de
abertura de uma câmara de conciliação, feita pelo advogado-geral da União,
Jorge Messias, que atuaria como mediador, Marina já declarou que “não existe
conciliação” – apesar de a Petrobras ter concordado em seguir à risca tudo o
que o Ibama exigir. Prova de que do outro lado da mesa a questão também não é
técnica, como insiste a ministra.
Ambientalistas radicais defendem que, se
houver petróleo submerso, que permaneça intocado. Mas, mesmo no cenário mais
agressivo de transição energética, o mundo consumirá 57 milhões de barris de
petróleo por dia em 2050. A produção na Margem Equatorial fará a diferença para
o Brasil. É uma decisão política.
O papel de Zanin
Correio Braziliense
"É preciso que direita, esquerda, governo e oposição entendam, para além do burburinho das redes sociais, que o papel de Zanin — ou de qualquer outro ministro do Supremo — não é agradar este ou aquele"
Causou incômodo a setores da esquerda o
voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin no caso que
avalia a descriminalização do porte de maconha. Recém-indicado pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e empossado há apenas três semanas, Zanin abriu a
divergência do relator, ministro Alexandre de Moraes, que defende que o usuário
que estiver carregando a droga não seja punido criminalmente, e indo contra os
votos de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, que já haviam proferido
suas opiniões, e Rosa Weber, que pediu para antecipar o voto no fim da sessão.
Foi o que bastou para que o novo ministro
fosse comemorado por setores próximos ao bolsonarismo, com parlamentares
ligados à bancada evangélica no Congresso exaltando a posição conservadora de
Zanin na questão. Do outro lado, choveram críticas de quem esperava uma postura
mais progressista do indicado de Lula, e já cobrando do presidente que a
próxima indicação, que ocupará o lugar de Rosa Weber, que se aposenta em setembro,
seja de uma mulher negra ou de alguém com origem trabalhista, com atuação no
Tribunal Superior do Trabalho (TST).
No início da semana, Zanin já havia
irritado setores ligados às pautas identitárias por votar contra a decisão que
reconheceu que ofensas homofóbicas são equivalentes ao crime de injúria racial.
Foi o único voto contrário da Corte. O novo ministro justificou a posição por
um aspecto técnico processual, sem entrar no mérito da questão em si.
Passado o barulho das redes sociais,
pode-se debruçar com calma sobre o voto de Zanin. Ele divergiu da
descriminalização do porte de maconha, mas concordou com a fixação de um
critério objetivo que diferencie o traficante do mero usuário. Existem
propostas que variam de 100 gramas a um limite de até 25 gramas — como defendeu
Zanin. Nesse sentido, o voto contrário do novo ministro é até mais assertivo do
que o voto de Edson Fachin, que, apesar de a favor da descriminalização do
porte, preferiu passar a bola para que o Legislativo decida qual o critério vai
fazer essa diferenciação — o que poderia levar a um atraso de anos na
efetivação da decisão.
É possível, inclusive, vislumbrar uma
estratégia que justifique um voto aparentemente contraditório. É comum, em
julgamentos colegiados, que os ministros circulem entre os pares seus votos com
antecedência. Ou seja, com uma maioria formada, Zanin pôde se dar ao luxo de
divergir para escolher a repercussão menos pior e evitar uma batalha em torno
da narrativa de que o ministro escolhido por Lula libera as drogas, o que geraria
um desgaste imenso para alguém que mal chegou à Corte. Como foi, Zanin saiu,
ainda que temporariamente, da linha de tiro dos conservadores.
Portanto, é preciso que direita, esquerda, governo e oposição entendam, para além do burburinho das redes sociais, que o papel de Zanin — ou de qualquer outro ministro do Supremo — não é agradar este ou aquele. O que a sociedade brasileira espera de Zanin é que esteja à altura do imenso desafio de zelar pela Constituição, com coerência, responsabilidade e ponderação, sem privilegiar os interesses partidários ou defender pautas de qualquer governo que seja. Afinal de contas, o mandato do presidente que o colocou lá termina em 2026, enquanto sua permanência na cadeira do Supremo se estenderá até 2050.
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