segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Miguel de Almeida - À sombra dos fuzis

O Globo

Lula ouviu de Gustavo Petro, da Colômbia, veemente reprovação

Em sua campanha para ganhar o Nobel da Paz, Lula da Silva confronta-se com a dialética. A cada encontro internacional, se vê pintado no papel de um personagem com ideias ultrapassadas, qual um verbete ou uma flâmula. Acostumado no Brasil a rapapés, beija-mão e afagos de certa intelectualidade, em seus périplos pelo mundo e encontros com outros presidentes mostra que vai bem longe o lustro de quando foi chamado de “o cara” por Barack Obama.

Muitos de seus conceitos de desenvolvimento — talvez com exceção da candente defesa do churrasco para todos! — enfrentam oposição entre seus pares de esquerda. É assim a vida. Tudo a temer. Leonel Brizola viveu o suficiente para ver a História deixá-lo no passado. Seu cunhado Jango Goulart — agora personagem de Paulo Valente na bela novela de espionagem “A morte do embaixador russo” — experimentou semelhante dissabor.

Lula recebeu um puxão de orelha do presidente chileno Gabriel Boric por causa de seu mal explicado apoio a Putin na guerra contra a Ucrânia; também ouviu de Gustavo Petro, da Colômbia, veemente reprovação por querer explorar petróleo na Margem Equatorial. Diante dos dois colegas de esquerda, só balbuciou um resmungo pela juventude de Boric. E, agora, novamente, ele e Celso Amorim se viram engabelados, com bico fechado, pelos chineses. Em busca de apoio a um assento no Conselho de Segurança da ONU, engoliram Egito, Arábia Saudita e Irã no Brics. Por pouco não veio a Coreia do Norte no pacote. A dupla continua comprando carro usado de quem não entrega as chaves — no Lula 1, a mesma moeda foi trocada pelo reconhecimento da China como economia de mercado. Ambos deveriam reclamar no Procon a promessa não cumprida pela ditadura chinesa.

Pela manhã, Lula deve se perguntar:

— Espelho, espelho meu, que esquerda sou eu? Mudaram os natais ou só fui eu?

Assim como viu sua antiga ocupação de torneiro mecânico ser extinta pela evolução tecnológica, seu tatibitate desenvolvimentista agora é espanado nos fóruns internacionais como poeirento e obsoleto. Quando defende explorar petróleo em área de riqueza ambiental, soa como o fabricante de chicote no início da Revolução Industrial. É tão paradoxal quanto a gomalina no layout do ministro Zanin — ou o laquê de Dilma Rousseff.

Talvez o problema seja que a realidade tenha se tornado mais complexa, os problemas mais sofisticados e as propostas voluntariosas de Lula… sejam apenas palpites. Conversa de zap.

Foi o que fez o senador Randolfe, numa pirueta de salão. Até então visto como ambientalista de esquerda, rasgou a lição de casa para apoiar a exploração de petróleo nas costas de seu amado Amapá. Um gesto populista mais eleitoreiro que técnico, menos ideológico e mais oportunista.

No Brasil, a questão ambiental nunca desceu na goela da esquerda tradicional — com perdão da rima. Aos olhos de muitos, permanece um exotismo, como as leis da física quântica. Haja vista o amor incondicional dos petistas pela Petrobras, ideia da direita nacionalista abraçada pelos milicos e defendida pelos progressistas como estratégia de segurança diante dos gringos. Vale lembrar, é conceito da década de 1950. O homem já foi à Lua desde então.

A incapacidade de abraçar uma agenda não esquizofrênica — Marina Silva e Alexandre Silveira não vivem no mesmo planeta — não parece ser privilégio dos petistas. No Equador, na atual concorrida eleição presidencial, a candidata da esquerda é a favor da exploração do petróleo; o representante da direita é contra!

A segurança pública surge como outro cabo de guerra a confundir o que seja estar à esquerda. Desde a ditadura militar, e depois dela, a violência policial sempre pertenceu ao discurso da direita mais tacanha. Se faz presente o dístico “bandido bom é bandido morto”. Quando a Igreja Católica tinha ascendência sobre o PT, em seu incisivos tempos de oposição, era contundente a defesa dos direitos humanos, em especial dos desvalidos vítimas da sanha das polícias. Na prática, coube a um político de centro-direita, Geraldo Alckmin, diminuir drasticamente os índices de homicídios no estado paulista. Além de quase zerar o número de sequestros. Ao mesmo tempo da gestão tucana, o petista Rui Costa produziu na Bahia a segunda polícia que mais mata no Brasil.

A tragédia continua. Ainda na Bahia, governada pelo PT desde 2007, há duas semanas uma mãe de santo e líder comunitária, sob proteção policial, levou vários tiros no corpo e no rosto enquanto assistia à televisão com os netos. Meio ambiente e segurança pública são assuntos bastante humanos para ficarem à sombra de discursos voluntariosos. São vidas que se perdem.

 

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