O Globo
Está cada vez mais difícil acreditar em
progresso inclusivo. A tendência é acentuar as diferenças
Estou lendo um livro que estimula a
imaginação. Chama-se “O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida
nas ruínas do capitalismo”. Sua autora é Anna Tsing, e é um trabalho sério de
pesquisa coletiva. Algumas conclusões, portanto, não podem ser atribuídas ao
livro, mas a meu exercício de imaginar.
Matsutake é o nome de um cogumelo aromático muito valorizado no Japão. Ele sobrevive em áreas devastadas pela indústria madeireira, como no Oregon, e reapareceu em Hiroshima depois da explosão atômica. Esse crescimento inesperado em áreas devastadas faz do matsutake uma inspiração para repensar a política de nossos tempos, marcados pela incerteza: mudanças climáticas, ascensão de Trump, precariedade do trabalho.
Os políticos continuam falando em emprego,
estabilidade e progresso. Mas a realidade é de pessoas se virando para
sobreviver em situação difícil, que costumam chamar de “o corre”.
No meio do século passado, alguns
intelectuais reclamavam da estabilidade, como se fosse uma espécie de prisão.
Alguns tinham uma perspectiva revolucionária. Não deixava de ser uma grande
certeza sobre o futuro.
Observando a experiência dos catadores de
matsutake, vemos como exploram as ruínas e a incerteza. Não deixa de ser também
um grande aprendizado ecológico. A indústria explora um produto e, quando o
esgota, vai embora deixando todo o resto para trás. Esse resto, na verdade, são
vidas que, combinadas com a atividade humana, podem contribuir para uma
sobrevivência coletiva.
Essa constatação não significa deixar de
lutar para manter a floresta em pé. Mas abre uma grande possibilidade para
aproveitar o que ficou para trás, buscar novas associações entre espécies,
inventar novos caminhos.
Com essas duas ideias, creio que já poderia
iniciar um diálogo em torno de uma nova política. Os partidos tradicionais
pensam em crescimento, progresso e estabilidade. Relacionam-se com os
trabalhadores precários prometendo emprego fixo. Acham que eles recusam porque
estão envenenados pela ideia de empreendimento, de ser seus próprios patrões.
Pode ser que recusem simplesmente porque não
acreditam que o sistema ofereça saída estável e que a precariedade seja a
melhor forma de sobreviver. Seria preciso um partido do corre, que estudasse
sua condição e oferecesse alternativas dentro da incerteza.
Da mesma forma, será necessário um trabalho
amplo na área devastada no Brasil, para estudar o que restou, que possibilidade
de arranjos produtivos essas formas de vida combinadas podem oferecer. Está
cada vez mais difícil acreditar num progresso inclusivo. A tendência é acentuar
as diferenças, no impacto da revolução digital. Por mais que se lute contra a
destruição ambiental, estaremos sempre diante de terras devastadas, deixadas
para trás pela indústria madeireira, pela mineração ou mesmo pela agricultura.
Pensar uma política da incerteza voltada, na
economia, para os trabalhadores precários e, na ecologia, para as ruínas do
capitalismo talvez seja um caminho realista. De qualquer forma, o livro de Anna
Tsing descortina horizontes. Outras ideias podem brotar daí, e isso já é uma
grande qualidade de “O cogumelo no fim do mundo”.
O discurso político clássico não pode deixar
de prometer crescimento, progresso e estabilidade. Mas pode chegar um tempo em
que essas palavras já não façam mais sentido para a maioria da população.
O interessante no trabalho de Anna Tsing é
que ela — ao destacar formas de vida que sobrevivem ao capitalismo e suas
combinações — não vê um tipo de futuro único, numa só direção:
— Como partículas virtuais num campo
quântico, múltiplos futuros espoucam dentro e fora da possibilidade, e a
terceira natureza (o que consegue sobreviver ao capitalismo) emerge dentro
dessa polifonia temporal.
O progresso condiciona nossa forma de ver o
mundo. Emaranhados de vida que sobrevivem à fúria industrial abrem pelo menos
uma nova e interessante maneira de olhar para a frente.
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