Correio Braziliense
Ainda estou aqui é um grande filme. Muito já se
escreveu e se falou sobre ele por diversos ângulos e razões. E se vai continuar
falando e escrevendo sobre ele por algum tempo. Seu lugar na cultura brasileira
vai além da filmografia, da arte. Trata-se de um filme político, de
ensinamentos e aberto à reflexão política. Pela amplitude de espectadores, ele
é também um fenômeno político. Cativa por expressar o desejo de compreender o
que se passou no Brasil nas últimas décadas do século 20 e o que esse período
nos legou.
O filme, dirigido por Walter Salles, diz muito sobre o Brasil desse período, mas também sobre o Brasil dos dias que correm, por meio dos acontecimentos que marcaram a vida da família do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura no início da década de 1970, especialmente pela resistência da mulher, Eunice Paiva, a principal protagonista do filme, representada de maneira extraordinária por Fernanda Torres.
O início e o final do filme mostram reuniões familiares que evidenciam
as marcas do tempo em que se sustenta a narrativa do filme. No início, a
reunião familiar é repleta de alegrias de uma típica família de classe média
alta do Rio de Janeiro no início da década de 1970. O ambiente é vivo e cheio
de cores, num magnífico sobrado em frente à praia. No final do filme, a reunião
familiar é de uma alegria contida, densa e preocupada com a saúde da matriarca
da família.
No início, os personagens vivem as interações
de um Brasil culturalmente aberto ao mundo, uma continuidade, sem interrupções,
dos “gloriosos anos” cinquenta e início dos sessenta. Para além da tranquila
vida familiar, os sinais de que havia ocorrido uma dura interrupção aparecem de
maneira esparsa e sutil, embora carregada de tensões, evidenciando o temor a
cada cena. A reunião familiar do final do filme também mostra um Brasil aberto
ao mundo, sinalizada previamente por passagens relativas aos anos 1990, quando
Eunice Paiva passa a viver em São Paulo, 25 anos depois da tragédia familiar
provocada pelo sequestro e assassinato do marido. O Brasil da globalização e da
democratização convive, ao final, com aquela herança maldita, ao lado do peso
dos anos que se passaram na vida de todos os protagonistas ali reunidos, as
filhas e o filho, todos adultos, e a matriarca já padecendo da doença de
Alzheimer.
Entre um tempo e outro, os 25 anos, que
expressam a transição e a democratização, estão silenciados, o que é também uma
forma de dizer e dar sentido. O filme é a expressão das pesadas consequências
da repressão da ditadura e a resistência – penosa, mas vitoriosa – da chefe de
uma família, que não permitiu que ela fosse destruída. No final, os anos da
ditadura são imagens do passado, em preto e branco, que ainda tocam — mesmo que
abatida pela doença — a velha senhora que protagoniza dramaticamente a narrativa.
No final do filme, as cenas sobre a ditadura que aparecem num documentário na
TV chamam a atenção mais de Dona Eunice do que dos familiares que espreitam de
soslaio seu comportamento.
Pelos olhos e pelas mãos de Salles, os tempos
do Brasil se sucedem e, recortados, ganham sentido na trajetória da família
Paiva. Ali estão a esperança de um país melhor interrompida pela ditadura e, ao
final, independentemente dos protagonistas, o cenário de inserção do país no
mundo globalizado, anteriormente antevisto. No Brasil do ex-deputado
assassinado, a opção de um caminho de tipo cubano ainda era acalentada como
alternativa por muitos setores da esquerda. Mas isso não prosperou. A
resistência democrática encontrou sua via de passagem pela política, derrotando
a ditadura.
Pode-se dizer que esse é um dos silêncios do
filme. Ele não pretendeu incluir na narrativa as complexas dimensões da
superação da ditadura por meio de um processo de transição e construção
democrática que seguiu seu curso ascendente, mas carregou consigo muitos
deficits políticos, institucionais, sociais e culturais. O filme também nos
sugere que pensemos sobre as razões que levaram com que a conquista da
democracia não tenha se configurado como uma ruptura, que delimita um antes e
um depois, e, mesmo assim, podemos nos postar sorrindo — como fez Eunice Paiva,
de forma admirável — para uma foto que possa retratar o país como, de fato, ele
é.
*Alberto Aggio, historiador e professor
universitário, em artigo publicado originalmente no Correio
Braziliense
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