- O Globo
Convém não estragar notícias alvissareiras de outros países com o indigesto noticiário ambiental brasileiro
O sul-africano Kumi Naidoo é formado por Oxford e foi o primeiro diretor-executivo do Greenpeace oriundo do continente negro. Atuou por seis anos na combativa ONG ambiental. Em setembro último, assumiu o cargo de secretário-geral da Anistia Internacional e agora comanda a responsabilidade pela radical guinada da organização. Agraciada com o Nobel da Paz (1977) por defender a dignidade humana contra a tortura, a Anistia de Naidoo decidiu que a questão climática global passaria a nortear sua linha de atuação. “Somos conhecidos por nossa luta contra a tortura e a pena de morte”, explicou dias atrás ao diário francês “Libération”, “mas a mudança climática é potencialmente uma condenação mundial à morte”.
Para a biografia da primeira-ministra britânica, Theresa May, a questão ambiental também adquiriu contornos de guinada. Nas semanas que ainda lhe restam como interina à frente do governo (está oficialmente destituída do cargo desde anteontem, 7 de junho, e um novo premier será escolhido em julho), May quer salvar seu lugar na história como líder do que seria a segunda grande revolução do país — a ambiental.
Pressionado em parte por um inesperado ativismo de rua que se espraiou por cidades e vilarejos britânicos e assustou a classe política, o Parlamento aceitou, no dia 1º de maio passado, relatório elaborado por um órgão independente, a Comissão de Mudança Climática (CCC, em inglês) intitulado “Emissão zero: A contribuição do Reino Unido para parar o aquecimento climático”.
Talvez nem os autores das 277 páginas do relatório esperassem essa acolhida. Afinal, o país estava há três anos furiosamente paralisado e consumido pelo imbróglio Brexit, e era difícil imaginar alguma concordância nacional para debater e legislar sobre algo novo. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, os parlamentares trataram de trazer para dentro da House of Commons, via relatório da CCC, a agenda ambiental das ruas. A meta proposta não tem efeito vinculativo, mas, se cumprida, seria revolucionária: zerar as emissões de dióxido de carbono até 2050. Parece longínquo? É amanhã.
Seria preciso, entre tantas outras mudanças, trocar toda a frota de carros movidos a gasolina e diesel em seis anos, e proibir sua venda até 2030, o que a indústria automotiva já avisou ser inatingível. Os britânicos também teriam de abrir mão de seus onipresentes aquecedores a gás, consumir menos carne de boi e de cordeiro, prato predileto no país, quadruplicar a geração de energia limpa, plantar algo como 1,5 bilhão de árvores, mudar a forma de locomoção, mudar o uso da terra. Mesmo criando nova gama de indústrias e postos de trabalho, a transição seriá duríssima.
Tudo isso para aliviar a temperatura mundial em apenas 0,005 grau, uma vez que a Grã-Bretanha só é responsável por 1% das emissões globais de CO2. E mesmo que tudo corra conforme a meta, dizem seus detratores, nada garante que essa revolução ambiental seja seguida por países como a China, Índia ou Brasil, ao contrário do que ocorreu com a Revolução Industrial do século XVIII na Velha Albion, abraçada às pressas pelo resto do mundo.
Ninguém esquece que o presidente francês, Emmanuel Macron, ao tentar implantar uma ecotaxa sobre o preço do combustível, fez brotar o movimento dos Coletes Amarelos, que não lhe deu trégua em 2018. O levante dessa França periférica estava encapsulado no cartaz de um gilet jaune que dizia: “Enquanto as elites estão preocupadas com o fim do mundo, estamos preocupados com o fim do mês”. Como escreveu o colunista Feargus O’Sullivan no site CityLab, focado em problemas urbanos, agenda verde também precisa ser agenda antidesigualdade para não ser recebida com ressentimento.
Até porque, como se sabe, sai mais caro impedir pessoas de fazer o que sempre fizeram do que impedi-las de fazer algo novo
No futuro, aposta a vice-prefeita de Oslo, a norueguesa Hanna Marcussen, dirigir um carro no centro de uma cidade se tornará tão inaceitável e démodé quanto fumar em locais fechados. Neste quesito, Bruxelas (70% da meta cumpridos em 2019) e Madri (proibição total já em vigor, exceto para residentes) marcham a passos largos, apoiadas por exaustivas audiências públicas. Até 2025, 138 medidas similares estarão em vigor em outras cidades espanholas.
Convém não estragar estas notícias alvissareiras com o indigesto noticiário ambiental brasileiro. Melhor fechar a coluna com um dos motes da Anistia Internacional: “Mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”.
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