Alguns dos projetos de lei, medidas provisórias e decretos com os quais o presidente Jair Bolsonaro pretende cumprir suas principais promessas de campanha primam pela irresponsabilidade. Já havia sido assim no caso do decreto que ampliou a possibilidade de posse e porte de armas no País, que teve de ser refeito por estar eivado de erros formais e de ilegalidades - e, se as vírgulas fora de lugar foram corrigidas, o mesmo não se pode dizer das ilegalidades, que permaneceram na nova versão. Agora é a vez de um projeto de lei, encaminhado pessoalmente pelo presidente Bolsonaro ao Congresso, para alterar o Código de Trânsito Brasileiro.
As mudanças se prestam basicamente para aliviar as sanções aos infratores de trânsito, tanto as multas como a eventual suspensão da carteira de habilitação. O objetivo, segundo informou o presidente, é um só: acabar com o que ele chama de “indústria da multa”.
Assim, em nome dessa missão, Bolsonaro pretende aumentar de 20 para 40 pontos o limite que determina a suspensão da carteira de motorista. “Por mim eu botaria 60”, disse o presidente Bolsonaro, deixando claro que, por ele, talvez nem pontuação devesse haver.
Na justificativa do projeto, lê-se que “a atual complexidade do trânsito brasileiro cada vez mais gera a possibilidade de o condutor levar uma autuação do trânsito, ainda que não tenha a intenção de cometê-la”, razão pela qual “alcançar os 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira”. Ora, tal argumento é de uma imprudência gritante: por ignorar a “complexidade” das regras de trânsito, o motorista poderia então cometer irregularidades à vontade, sob a proteção do Estado.
Ademais, é falsa a conclusão de que “está cada dia mais comum” o acúmulo de 20 pontos na carteira. Dados do Detran de São Paulo mostram que apenas 1,5 milhão (6,36%) de motoristas paulistas acumularam 20 ou mais pontos na carteira de habilitação nos últimos 12 meses. O número de documentos suspensos caiu de 560 mil para 434 mil entre 2017 e 2018. Há 17,9 milhões de motoristas paulistas sem um único ponto na carteira.
Esses dados comprovam que os beneficiados pelo projeto encaminhado com entusiasmo por Bolsonaro são uma minoria de infratores - a maioria absoluta dos condutores segue a lei, que em duas décadas ajudou a reduzir o número de acidentes e de mortes no trânsito. Aparentemente, contudo, os formuladores do projeto não levaram em conta essa realidade, preferindo talvez basear-se apenas na intuição do presidente sobre a “indústria da multa”.
Se tivesse consultado algum estudo e não sua intuição, o presidente não teria incluído em seu projeto o relaxamento da punição para os motoristas que transportarem crianças de maneira inadequada. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que o uso obrigatório de cadeirinhas em automóveis pode reduzir em pelo menos 60% a possibilidade de mortes de crianças em acidentes. Desde que a obrigatoriedade das cadeirinhas entrou em vigor no Brasil, em 2008, o número de mortes de crianças em acidentes caiu 12,5%.
Mas o presidente Bolsonaro parece muito seguro de sua decisão, porque, segundo ele, “todo mundo que é pai e mãe é responsável”. Além disso, pelo fato de que só foi suspensa a multa em dinheiro, valendo a pontuação na carteira, “vamos ver se o pessoal vai multar ou é a multa pela multa”. Traduzindo: para o presidente, o “pessoal” só multa para arrecadar dinheiro; portanto, sem dinheiro, não haverá multa.
O projeto de lei, assim, se presta a provar uma tese de Bolsonaro: a de que as multas só existem para castigar injustamente os brasileiros, com o objetivo de encher os cofres de administradores públicos inescrupulosos, que mandam guardas ficarem escondidos na moita para multar cidadãos desavisados. É evidente que não é assim que se formulam políticas públicas, especialmente as destinadas a reduzir o número de mortes de brasileiros. A “indústria da multa” deve ser combatida com fiscalização e punição aos maus administradores, e não com leniência em relação aos maus motoristas.
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