O ‘clamor da sociedade’ – Editorial | O Estado de S. Paulo
O ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, sugeriu há algum tempo, em entrevista ao Estado, que o pacote de medidas de segurança pública encaminhado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, não avançou como o governo gostaria porque os parlamentares não levaram em conta o “clamor da sociedade”.
Subentende-se da declaração que, para o ministro Ramos, o Congresso teria aprovado o pacote do ministro Moro se estivesse mais atento às demandas dos cidadãos em relação à segurança pública. De fato, o problema da criminalidade e da sensação de violência nas grandes cidades tem frequentado o topo das preocupações da maior parte dos brasileiros, e é certo que providências devem ser adotadas com urgência para enfrentá-lo com firmeza. A questão é que o governo do presidente Jair Bolsonaro parece acreditar que tudo o que sai de sua lavra deve ser aprovado o mais rapidamente possível pelo Congresso, de preferência sem mudanças que desfigurem o projeto original. Afinal, conforme a lógica expressa na declaração do ministro Ramos, o que emana do governo é, em si, manifestação inequívoca do “clamor popular”, cuja fonte de legitimidade seriam os quase 58 milhões de votos obtidos por Jair Bolsonaro ao se eleger presidente.
A votação de fato foi bastante expressiva, dando ampla chancela ao projeto de governo oferecido por Bolsonaro, mas é preciso lembrar que o presidente não foi o único a ter votos na eleição do ano passado. Todo o Congresso foi igualmente eleito pelos cidadãos, e cada um dos parlamentares dispõe de um mandato legítimo para representar seus eleitores. Em certo sentido, é o Congresso que mais bem representa os interesses do conjunto da população, pois lá estão representantes de todos os Estados e de diversos partidos políticos, tanto de situação como de oposição. Assim, se há um “clamor popular”, este se manifestará primeiro no Congresso, que dificilmente deixará de dar ouvidos a essa demanda.
Assim, ao presumir que os parlamentares deveriam ter aprovado o pacote do ministro Moro sem mais delongas porque este seria o desejo do povo, o governo de certa forma tenta reduzir a legitimidade do Congresso para fazer as modificações que julgar necessárias - ou mesmo para rejeitar projetos de iniciativa do Executivo, se for o caso. Ora, se estiver mesmo interessado em que seus projetos sejam aprovados, o governo deve organizar uma base parlamentar e negociar no Congresso - isto é, fazer política.
É possível que a necessidade acabe por forçar o governo a mudar de comportamento e a deixar de crer que o Congresso é apenas despachante dos projetos enviados pelo Palácio do Planalto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, mudou bastante desde que defendeu que o governo desse uma “prensa” no Congresso para aprovar as reformas. Hoje, mostra-se mais aberto ao diálogo com as lideranças parlamentares, o que é um bom caminho.
Mas ainda é pouco. Como denota a declaração do ministro Ramos, continua predominante no coração do governo a percepção de que o presidente Bolsonaro está dispensado de fazer política, já que se considera indiscutível expressão da vontade popular e daquilo que é o melhor para o País. O próprio presidente, sempre que pode, trata de alimentar esse discurso.
No mês passado, por exemplo, quando informou que mandaria um projeto ao Congresso para autorizar o emprego da Garantia da Lei e da Ordem para reintegração de posse em propriedades rurais, Bolsonaro declarou: “Se o Parlamento achar que assim deve ser tratada a propriedade privada, aprova. Se achar que a propriedade privada não vale nada, aí não aprova”. Ou seja, o presidente considera que a rejeição a seu projeto - que invade área de atuação dos governos estaduais - significará nada menos que o fim das garantias à propriedade privada no País, o que é um evidente disparate.
O governo teria mais sucesso no encaminhamento de suas propostas se compreendesse que a harmonia entre os Poderes (artigo 2.º da Constituição) não significa submissão do Legislativo aos desejos do Executivo. Significa, antes, aceitar que a vox populi é mais bem traduzida pelas leis aprovadas após debate democrático no Congresso, e não no grito dos populistas.
O governo personalista de Bolsonaro – Editorial | O Globo
Sancionar o juiz de garantias é mais um ato do presidente para beneficiar o seu entorno
O presidente Jair Bolsonaro governa dando atenção prioritária aos seus próprios interesses. Da família, de currais eleitorais e de corporações que o apoiam. Não mede os riscos de decisões que toma em favor do seu entorno. Chega a retirar radares de rodovias federais para agradar a caminhoneiros. Mesmo que cresça o número de acidentes graves. E vai na mesma direção ao permitir, por meio de portaria, a venda de bebidas alcoólicas em postos de descanso de caminhoneiros localizados em perímetro urbano.
Seguiu o mesmo tipo de visão em sanções e vetos na promulgação do pacote anticrime encaminhado ao Congresso pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Vetou, por exemplo, a triplicação de penas para punir crimes contra a honra cometidos nas redes sociais. Sabe-se como Bolsonaro e filhos usam a internet como meio de comunicação.
Entre as sanções, a mais polêmica foi a aceitação da figura do juiz de garantias, incluída no projeto pelo Congresso — de forma legítima, por óbvio. Este segundo magistrado tem vantagens. Como afastar da condução direta do inquérito o juiz que dará o veredicto, o que alegadamente eliminaria qualquer viés no julgamento. Há, também, desvantagens. Uma delas, o risco de tornar ainda mais lenta uma Justiça paquidérmica. Mas o pior é que o juiz de garantias foi colocado no projeto de lei em retaliação ao ex-juiz Sergio Moro, por sua atuação na Lava-Jato. A prova é que PP e PT, centrão e a esquerda, alvos atingidos na Lava-Jato, estiveram juntos na empreitada.
O movimento que levou a esta manobra foi impulsionado pela vazamento de diálogos supostamente ilegais entre Moro e procuradores da Lava-Jato, Deltan Dallagnol à frente. As mensagens não valem como prova, por terem sido obtidas de forma criminosa. Nem sua divulgação atingiu a imagem de Moro, o ministro mais popular do governo — mais que o presidente, em fase de perda de sustentação na opinião pública.
Outra sugestiva coincidência é que a sanção por Bolsonaro do juiz de garantias pode ajudar seu filho Flávio, enredado em evidências de lavagem de dinheiro, por provocar um provável atraso no andamento do inquérito.
É possível que aumente a percepção, detectada por pesquisa Datafolha, de que o presidente não combate a corrupção como prometera na campanha. Na última pesquisa, divulgada no início do mês, 50% achavam que Bolsonaro não cumpria o prometido na repressão ao roubo do dinheiro público. Na sondagem anterior, tinham sido 44%.
Outra demonstração de que usa de maneira descuidada poderes da Presidência para retribuir o apoio recebido é o indulto a policiais condenados por crimes culposos. No perdão, também tenta aplicar o princípio do excludente de ilicitude já rejeitado pelo Congresso.
O indulto deverá ser levado ao Supremo. Tudo pela já proverbial despreocupação de Bolsonaro com os limites do seu cargo.
Políticas inculturais – Editorial | Folha de S. Paulo
Ataque a Porta dos Fundos fecha ano em que obscurantismo teve apoio do Planalto
O hediondo atentado à sede do programa humorístico Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, confere um fecho soturno a um ano farto em demonstrações de intolerância e obscurantismo relativas à produção cultural do país.
Com o caso ainda em apuração, parece óbvio que os idiotas autores do ataque com coquetéis molotov reagiam, na madrugada da véspera de Natal, ao recente filme satírico do grupo, que retrata Jesus como homossexual.
Manifestações de sectarismo não são novidade no país nem exclusivas de correntes radicais de direita. Já se noticiaram, entre outros, episódios de hostilidade e até truculência contra autores e temas liberais ou conservadores em universidades e festivais de cinema.
Infelizmente, a polarização ideológica passou a pautar as políticas culturais de governo com a ascensão de Jair Bolsonaro —que, a pretexto de enfrentar a influência esquerdista, estimula o espírito censório e tem promovido um desmanche revanchista na área.
Para um inventário das medidas desta etapa de seu mandato, cumpre distinguir o que representam escolhas legítimas de um governante eleito —goste-se ou não delas— de atos que contrariam o espírito democrático e republicano.
É razoável que Bolsonaro pretenda, por exemplo, reduzir verbas destinadas ao cinema e ao teatro, ainda mais num cenário de severa restrição orçamentária. Aqui estamos diante do processo de definição de prioridades, cuja iniciativa cabe, de fato, ao Executivo.
Tampouco há anormalidade no intento de rever aspectos dos mecanismos de incentivo oficial à produção artística, o que, a depender da profundidade das alterações, demanda o crivo do Legislativo.
Mais nebulosa, porém, é a gestão dos órgãos do setor. Se a nomeação de dirigentes constitui prerrogativa do presidente e de seus ministros, Bolsonaro dá mostras de fazê-lo com o intuito de aparelhar e aviltar as repartições.
A Secretaria da Cultura já conhece seu terceiro titular desde janeiro —Roberto Alvim, cujo feito mais vistoso antes de ganhar o posto era uma declaração de desprezo à atriz Fernanda Montenegro. Abaixo dele, apontaram-se figuras despreparadas e conflituosas para a Funarte, a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares.
Há, por fim, limites que não se podem ultrapassar sem ferir princípios básicos da administração pública e do Estado de Direito. Bolsonaro, lamentavelmente, não se intimida diante de tais questões.
O governante não tem o direito de impor suas preferências políticas, estéticas ou morais por meio do aparato estatal. Não pode querer “filtrar”, no termo empregado pelo presidente, as produções a merecerem recursos e espaços públicos, como se viu em ações ministeriais e de empresas controladas pelo Tesouro Nacional.
Um desses episódios, aliás, levou em agosto à queda do primeiro secretário da Cultura da atual gestão, Henrique Pires, após suspensão de edital para projetos de TV que incluía séries com temática LGBT.
A recusa à impessoalidade, resta claro, não é um erro a ser corrigido com aprendizado. Trata-se de método, observável em outros setores, a ser contido pelas instituições, nos limites definidos em lei.
Onda protecionista não se esgotará a curto prazo - Editorial | Valor Econômico
O conflito geopolítico, que assumiu primeiro a forma de guerra comercial, tem enorme potencial de causar danos à economia global e não pode ser subestimado
Não é possível ser otimista com as consequências globais da guerra comercial entre Estados Unidos e China, e suas implicações geopolíticas decisivas. O presidente Donald Trump está na fase eleitoral de colheita de resultados. Após 20 meses de investidas contra a China, e com uma tentativa de impeachment nas costas, ele precisa vender trunfos e assim surgiu a “fase 1” de um acordo com Pequim, que mantém tarifas de 25% sobre metade das importações chinesas, de US$ 250 bilhões. Os chineses prometeram comprar mais mercadorias dos EUA e fizeram concessões aparentes na proteção à propriedade comercial. Logo em seguida, o governo americano passou a ameaçar a Europa com tarifas. A União Europeia, por sua vez, passou a pressionar a China, fechando um cerco de disputas que se estende a praticamente todas as economias desenvolvidas.
Não se conhecem os termos da “fase 1”, saudadas com gosto por Trump, em cujas palavras é impossível confiar. Pequim foi bastante discreta na divulgação e o acordo, com todas as letras, pode demorar. Sintomaticamente, poucos dias depois, o representante comercial americano, Robert Lighthizer, colocou a Europa na lista dos próximos alvos. “Não podemos reduzir o déficit global sem reduzirmos o déficit com a Europa”, disse, referindo-se ao relacionamento comercial com o bloco como “muito desequilibrado”. A taxa digital francesa é repudiada pelos EUA, que há pouco retirou, não se sabe por quanto tempo, a ameaça de taxar os automóveis vindos do outro lado do Atlântico.
Enquanto acena com trégua a Pequim, Washington seguiu perseguindo seu objetivo principal: impedir que a China lidere a nova revolução tecnológica, compreendida pela inteligência artificial, internet das coisas e aprendizado das máquinas. Há campanha para barrar, por motivos de segurança nacional, mas não só, o acesso da Huawei, que domina a tecnologia do 5G - a infraestrutura necessária para a revolução tecnológica - aos mercados europeu e americano. Nessa cruzada, os EUA já têm apoio da Austrália, pode obter o de Boris Johnson, no Reino Unido e, talvez, de governos europeus como a Alemanha, que está sob forte pressão. A última reunião da OTAN mencionou que a China é um problema que precisa ser abordado em conjunto pelos membros.
O nexo entre o modelo econômico chinês e o domínio da tecnologia de ponta é bem personificado pela Huawei. Ela recebeu bilhões de dólares em subsídios e vantagens dos governos central e regionais chineses, que se traduziram em avanços tecnológicos e conquista de mercados com preços menores que os dos concorrentes (Valor, ontem). Seria um exemplo típico daquilo que os EUA chamam de concorrência desleal - incentivos estatais de toda espécie, vários camuflados, para criar “campeões internacionais”.
É esse modelo que agora também tornou-se incômodo para os líderes da Europa, hoje emparedada pela briga das duas maiores economias do planeta. Em março, pela primeira vez, a Comissão Europeia qualificou Pequim como “rival sistêmico”. Em janeiro, os países da UE publicarão recomendações finais para apertar regras de segurança os equipamentos de 5G. A UE busca também regular fortemente investimentos estrangeiros, em especial de empresas de países que possam obter vantagens adquirindo rivais em solo europeu (FT, ontem).
De repente o termo “política industrial” foi ressuscitado na Europa. A união de vários países contra a Huawei tem álibi econômico - ao contrário do que ocorre em outros setores de ponta, os europeus estão à frente na 5G com a Nokia e a Ericsson. As restrições à participação chinesa em mercados, em estudo, levaram a uma significativa mensagem do embaixador chinês em Bruxelas, Zhang Ming, para quem essas tentativas, se levadas à prática, farão Pequim reduzir investimentos na região.
Os europeus têm um motivo político a mais para limitar a investida chinesa. A China criou o diálogo “17+1” com países europeus, como parte de seus planos para a “nova rota da seda”. A UE teme que essa estratégia possa dividir e cindir o bloco, cujas partes mais frágeis - países do leste e do sul europeus -, seriam mais seduzíveis aos investimentos chineses. Em suma, a UE teria um exemplo prático do poder chinês, e o tudo o que ele carrega consigo, dentro de suas próprias fronteiras.
O conflito geopolítico, que assumiu primeiro a forma de guerra comercial, tem enorme potencial de causar danos à economia global e não pode ser subestimado.
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