- O Globo
A maior polêmica da semana se concentrou em como a imprensa cobriu os achados, pelo Ministério Público, de indícios de desvio e lavagem de dinheiro no gabinete do então deputado estadual do Rio Flávio Bolsonaro
Poderão as democracias sobreviver quando são as crenças pessoais, e não os fatos, que sustentam nossa visão de mundo? Esta é a pergunta que deverá marcar não apenas 2020, mas também os anos seguintes. É uma pergunta não só para o Brasil. É um drama de direita e esquerda.
A maior polêmica da semana centrou em como a imprensa cobriu os achados, pelo Ministério Público, de fortes indícios de desvio e lavagem de dinheiro no gabinete do então deputado estadual do Rio Flávio Bolsonaro. O filho Zero Um do presidente, hoje senador. Desde o primeiro momento, ainda antes de Jair Bolsonaro vestir a faixa presidencial, jornalistas profissionais estão em cima do caso. Tudo o que veio a público até agora foi através da imprensa.
Em algum momento, alguém percebeu que alguns veículos utilizavam em seus títulos apenas o prenome do senador. Flávio — ao invés de Flávio Bolsonaro. De presto um naco das redes chegou à conclusão de que jornais, revistas e sites estavam, com isso, tentando proteger o presidente. Não usar ‘Bolsonaro’ no título, de alguma forma, serve a um estratagema que protege a imagem daquele que ora ocupa o Planalto.
Perante a desinformação, ainda mais em se tratando de nosso ofício, mais de um jornalista tratou de explicar como funciona a construção de um título.
Fazer jornalismo, estagiários descobrem em seus primeiros dias na redação, é conviver com limites. Cada segundo é contado no rádio e TV, cada caractere no impresso ou na web. A capa de um site jornalístico é plenamente automatizada e todas as chamadas para notícias ocupam seu lugar num grid. Por vezes, várias pequenas chamadas se alinham uma ao lado da outra. Ou se empilham. O texto tem de ter tamanho máximo fixo para que o alinhamento não quebre. Não bastasse, estes sites são também fluidos — precisam se reorganizar de acordo com o tamanho da tela, do grande monitor ao menor celular. É uma característica técnica de como se faz salsichas, mas algo que o digital não mudou em relação ao impresso. Fazer título é a arte de contar letrinhas desde o velho Gutenberg.
Getúlio, JK, Jango, Lula, FH, ACM — um incrível número de personagens políticos, conforme se tornaram conhecidos, tiveram seus nomes ajustados para os limites de título. Com Flávio Bolsonaro, não foi diferente. E o leitor, quando lê seu nome, logo sabe de quem se trata pelo contexto da notícia ou mesmo pela foto. O mesmo ocorreu com seu parceiro de rachadinha — Fabrício Queiroz, nos títulos, é também só Queiroz.
O último Datafolha, divulgado na primeira semana de dezembro, dá mostras de que o escândalo — divulgado sempre pela grande imprensa — custa à imagem do presidente. Em nenhum ponto Bolsonaro piorou tanto em avaliação como na percepção de combate à corrupção. Foi um dos quesitos que o levou ao Palácio, e toda movimentação para evitar que Flávio seja investigado afeta esta percepção.
Não é uma teoria que fique de pé. Pesquisas mostram o impacto real da rachadinha no gabinete de Flávio na imagem de Jair. E é a própria imprensa que, desde o início, vem mostrando cada passo desta história. Os jornais, aliás, competem por furos. É nosso alimento.
Mas não basta à teoria conspiratória. Chegamos ao ponto em que, sem dados mas com muita semiótica e outros fragmentos teóricos, até PhDs defendem sem qualquer dado que sustente convicções as mais diversas. O exemplo da semana é só isso — um dentre muitos exemplos.
A democracia liberal nasce do Iluminismo, do método científico, e se sustenta no debate baseado em fatos. Sem fatos, não há democracia. Estamos doentes.
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