O Estado de S. Paulo
China vem criando um modelo de colonização
com base na dependência econômica
O Partido Comunista Chinês comemorou
na semana passada 100 anos de existência, dos quais, 72
no poder. O centenário coincide com a reinterpretação, por parte de Joe Biden,
da natureza do desafio chinês à hegemonia americana, como sendo “a disputa do
século entre a autocracia e a democracia”. Um exame isento, porém, revela que
as ameaças à democracia vêm das próprias sociedades democráticas, e não de
fora.
O rótulo “comunista” perdeu o sentido original, da busca de uma sociedade igualitária. Essa doutrina fracassou em todos os lugares nos quais foi experimentada, incluindo a própria China, produzindo ditaduras, elites burocráticas, economias disfuncionais, atraso e pobreza. A partir da morte de Mao Tsé-tung, em 1976, seu sucessor, Deng Xiaoping, livrou a China dessa armadilha, integrando sua economia ao restante do mundo, e criando o capitalismo de Estado.
Partindo de uma base extremamente pobre, a China tem conseguido desde então gerar nos seus cidadãos o sentimento de que cada geração vive melhor do que a anterior. O ganho no campo econômico não tem como contrapartida uma perda palpável no campo político, porque os chineses nunca gozaram de liberdades democráticas, nem essa é uma exigência cultural. Ao contrário: as raízes confucionistas da cultura chinesa priorizam a hierarquia e a disciplina sobre a liberdade.
Durante a Guerra Fria, União Soviética e Estados
Unidos disputavam influência sobre o mundo, que se consumava muito mais num
alinhamento geopolítico do que na adoção rigorosa do modelo econômico e
político de um ou de outro.
Tanto que, embora a principal justificativa
para o golpe militar no Brasil tenha sido não sucumbir ao domínio soviético,
este país se afastou ainda mais da democracia e da economia de mercado que
caracterizam os Estados Unidos. Os rótulos “comunista” e “capitalista”,
“esquerda” e “direita” sempre esconderam realidades muito diversas.
No momento em que vivemos, a China não está
empenhada em exportar seu modelo, até porque o rótulo “comunista”, no caso
dela, é ainda mais vazio do que quando usado pelos soviéticos. O regime chinês
está consumando o controle político sobre Hong Kong e
pretende fazer o mesmo com Taiwan. Ambos são considerados pelos chineses como
parte integrante de sua nação.
Fora isso, não há um interesse, visível no
tempo, de interferir militarmente em outros países, como fizeram a extinta
União Soviética, a própria China e os Estados Unidos durante a Guerra Fria,
levando às guerras da Coreia e do Vietnã, a muitos outros conflitos diretos ou
“por procuração” na Ásia, África, Europa e América Central.
Por meio da Nova Rota da Seda (Belt &
Road) e outros programas de investimentos, a China vem elaborando um novo
modelo de colonização, com base não na força militar, mas na dependência
econômica. A infraestrutura que os chineses estão construindo na Ásia e na
África os torna credores de dívidas, muitas vezes impagáveis, cuja garantia são
as próprias obras. Sem o comércio com a China, países produtores de
commodities, como o Brasil, estariam arruinados. Sem os produtos e componentes
industriais importados da China, o capitalismo entraria em colapso.
O sucesso da China, seja no campo
econômico, tecnológico, militar ou epidemiológico – o país estancou
abruptamente o surto de coronavírus, mesmo tendo surgido lá – pode inspirar
algumas correntes do pensamento iliberal nas sociedades democráticas. É nesse
sentido que Biden aponta a necessidade de demonstrar que regimes democráticos
são capazes de entregar prosperidade a suas populações.
Mas a dúvida existe não porque os EUA tenham deixado de ser o maior
centro dinâmico da inovação e do empreendedorismo do mundo. Eles continuam
sendo, e isso é inseparável do ambiente de liberdade econômica, política e
cultural usufruído pelos americanos.
A dúvida acerca dos valores democráticos
foi plantada por correntes iliberais, que manipulam, no Ocidente, um sentimento
inverso ao que existe na China: o de que grandes fatias da classe média vivem
pior do que seus pais.
Esse ressentimento dá origem a um niilismo,
que se traduz na negação de todas as conquistas – da vigilância epidemiológica
ao voto eletrônico, passando pelos direitos das minorias – que tenham ocorrido
simultaneamente a essa perda de privilégio, e que portanto possam ser, ainda
que de forma ilógica, associadas a ela.
Assim, o desafio que os valores democráticos enfrentam é maior e mais próximo do que a ascensão da China. O vírus do niilismo (e do negacionismo) não veio de lá. É uma criação e transmissão locais.
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