Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O debate eleitoral e os desafios da
governabilidade em 2023 irão muito além da transferência de R$ 400
A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal em favor de um programa permanente de renda básica mostra que as premissas de um Auxílio Brasil passageiro já foram superadas. A construção de uma agenda ampla e efetiva de combate à pobreza e à desigualdade social no Brasil tornou-se inescapável e não poderá ser apenas uma plataforma eleitoreira. Na verdade, essa temática será fundamental para ganhar a eleição presidencial, mas também, e com mais relevância, para governar o Brasil a partir de 2023. O país precisa de uma liderança que faça a ponte entre estes dois momentos e construa, efetivamente, um projeto de nação destinado aos mais pobres.
A percepção atual sobre a importância dos
mais pobres para a nação brasileira deriva de dois fatores contraditórios entre
si. De um lado, num plano mais amplo e como forma de combater a desigualdade
como marca histórica do país, está a Constituição de 1988 e o espírito social
derivado dela. Desde sua promulgação, estabeleceu-se um modelo lastreado em
direitos a todos, beneficiando especialmente os mais vulneráveis, que pela
primeira vez tinham se tornado sujeitos sociais relevantes na agenda pública.
Esse contrato social deu guarida a diversos avanços durante 30 anos, melhorando
vários indicadores e gerando uma esperança de mobilidade e emancipação à maior
parcela da população. Tudo isso, ressalte-se, foi garantido porque houve
eleições contínuas e os mais pobres foram cortejados por seu voto, e pela maior
autonomia em exercê-lo.
De outro lado, porém, a crise social que
começara na segunda metade da década passada foi muito aprofundada pelo bolsonarismo,
por conta de uma mistura explosiva de gestão preconceituosa em relação aos mais
pobres, pouco interessada na luta contra a desigualdade, com incompetente no
campo da economia e das principais políticas sociais, ao que se somou uma
pandemia gerida de forma desastrosa. O Brasil de Bolsonaro é a marca deste
retrocesso que levou à miserabilidade e à perda de esperança de quem estava se
acostumando a sonhar com um futuro melhor para si e para seus filhos, como bem
mostraram os dois documentários sobre a família Braz, feitos em 2000 e 2010,
uma história de quem mudava de patamar de vida na periferia de São Paulo. Vendo
esses filmes hoje, parecem retratar um passado longínquo.
O governo Bolsonaro pretendeu implantar um
modelo econômico e social darwinista, no qual venceriam os mais fortes e os
costumes seriam a salvação perante a miséria e a desigualdade. Essa ideia não
se sustentou por muito tempo, mesmo tendo causado um estrago terrível à vida
dos mais pobres. O espírito da Constituição de 1988 trouxe um sopro
civilizatório que levou a reações de instituições, de organizações da sociedade
civil, de partidos de oposição, de setores da classe média e do empresariado.
Mesmo os políticos do Centrão e alguns bolsonaristas-raiz não aguentaram ver o
esgarçamento do tecido social e temem, no mínimo, pela perda de votos na
próxima eleição. Por isso, aprovaram o Auxílio Brasil, contanto que junto com
ele venha um bom orçamento para emendas, inclusive as secretas.
É importante frisar que os pobres não
constituem um conjunto homogêneo, nem em termos de problemas, tampouco no que
se refere aos valores. Existem diversos tipos de pobreza distribuídos pelo
território nacional, com singularidades próprias. Isso pode ser visto na
comparação entre regiões metropolitanas, áreas ribeirinhas no Norte do país e o
Semiárido. Também há identidades específicas, de modo que a vinculação a um
grupo religioso, a questão racial e o sentimento de pertencimento regional,
entre outros, podem fazer diferença. Daí haver pessoas em situação de
vulnerabilidade social pertencentes a algumas denominações evangélicas que
deram apoio importante a Bolsonaro em 2018, do mesmo modo que a maior parcela
dos pobres nordestinos tem uma forte identificação com a história de vida de
Lula.
Tais singularidades, no entanto, perdem
parte de sua importância quando há uma piora ou uma melhora geral de vida dos
mais pobres. Ver os filhos estudando ou fora da escola, ter mais comida na mesa
ou passar fome, perder ou obter uma moradia, estar empregado ou desempregado,
além de se sentir amparado ou desamparado perante problemas de saúde são
questões que unificam as pessoas das classes D e E. O atual cenário é de
declínio para os mais pobres e a continuidade desse processo está gerando um
descontentamento enorme. A eleição de 2022, neste sentido, será marcada pela
interseção de temas sociais com o quadro econômico na definição do voto da
grande maioria dos eleitores.
Entre os instrumentos para atuar contra a
deterioração da vida dos mais pobres estão, evidentemente, os programas de
transferência de renda, peça-chave numa sociedade tão desigual como o Brasil.
Sem recursos básicos à sobrevivência, não há como usufruir plenamente de outras
políticas sociais. Mas as transferências de renda precisam, antes de tudo, ser
estáveis. Ao longo dos últimos dois anos, os auxílios dados pelo governo
Bolsonaro foram muito instáveis, gerando um sentimento de injustiça em quem não
recebeu ou recebeu em um momento e perdeu no outro. Isso para não falar da
diferença de valores transferidos em 2020 e os que serão concedidos em 2022, o
que significa uma sensação de uma grande perda de renda para boa parte dessas
pessoas, algo que fica mais forte por causa da aceleração da inflação.
Além dessa instabilidade das transferências
de renda, as ações do governo Bolsonaro pouco ou quase nada dialogaram com as
outras vulnerabilidades que afetam os pobres. O bolsonarismo não entendeu ainda
que a pobreza é multidimensional. Criar o Auxílio Brasil, por exemplo, e não
articular esse programa com as políticas locais de assistência e de saúde é um
grande erro, porque as pessoas precisam de mais do que dinheiro para lidar com
suas carências. No fundo, predomina no atual governo uma visão imediatista que
supõe o repasse de algum recurso, tal qual um esparadrapo que evita o pior do
machucado, para assim resolver o problema da miséria que tanto incomoda quando
aparece na televisão durante o jantar.
Do mesmo modo que há vários tipos de
pobreza, esta precisa de múltiplas políticas. A questão central é como fazer
ações governamentais estáveis, com conexão intersetorial e que se transformem
em alavancas para mudança contínua na vida desses cidadãos e de seus filhos,
pois se trata de um problema intergeracional. É nesta linha que se encaixa um
efetivo combate à desigualdade e que se constrói um projeto nacional destinado
aos mais pobres.
Juntamente com programas de transferência
de renda, são necessárias alavancas para o futuro dos mais pobres. Este ponto
deveria guiar o debate eleitoral em 2022 e, sobretudo, ser um elemento
estratégico do próximo governo. Um bom exemplo disso está na política
educacional, onde duas questões serão centrais no debate do ano que vem. A
primeira refere-se à educação básica depois da pandemia. Haverá um crescimento
da evasão escolar e dificuldades para que as famílias mantenham seus filhos na
escola. Embora a provisão do serviço seja basicamente estadual e municipal, o
governo federal é essencial neste processo, como já foi no passado recente na
universalização do ensino fundamental. Desse modo, o próximo presidente terá
uma enorme tarefa pela frente e apenas dizer que vai lutar contra a ideologia
de gênero e defender pautas conservadoras será muito pouco para conquistar o
voto de quem teme não ver a formatura de suas crianças e jovens.
Há um segundo ponto da educação que irá
gerar grande discussão nas eleições: as cotas raciais no ensino superior. O uso
delas por universidades federais expira no fim de 2022 e uma nova legislação
precisará ser feita. O bolsonarismo é contrário a essa pauta e tem tido um
discurso violento contra políticas afirmativas, o que se soma a ações
específicas contra a comunidade negra - vide a gestão desastrosa do presidente
da Fundação Palmares. É provável que um novo “Ele, não” apareça na campanha
presidencial, vinculado não mais (só) à questão de gênero, mas à temática
racial.
A questão das cotas raciais terá muita
influência na agenda pública, porque os beneficiados e os que esperam se
beneficiar dessa política compõem um universo muito grande dos eleitores. Mas
para além desse efeito mais imediato, trata-se de estratégia consistente de
combate à desigualdade social. Essa política de ação afirmativa permite que
haja profissionais negros e negras em áreas nobres do mercado de trabalho onde
não há hoje nenhuma diversidade racial. Além disso, esse movimento pode mudar a
cor da elite brasileira, que é atualmente completamente distinta das feições
típicas do homem do povo. Neste sentido, as cotas raciais são importantes no
combate ao racismo, mas sua relevância é ainda maior como forma de alavancar um
projeto nacional de longo prazo voltado à maioria da população do país.
O debate eleitoral e os desafios da
governabilidade em 2023 irão muito além da transferência de R$ 400. Outras
questões vão pautar o voto dos mais pobres e, sobretudo, definir o futuro da
nação para a parcela majoritária da população. Um candidato que não tenha uma
visão ampla do problema social terá muitas dificuldades para ganhar a eleição
e, se vencer, certamente será um péssimo presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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