O Estado de S. Paulo
Melhor funcionamento do sistema político no conjunto pode atenuar o descontentamento e, portanto, bloquear o caminho para aventuras redentoras
Relatório divulgado em Estocolmo esta
semana indica a democracia brasileira como uma das que mais decaíram nos
últimos cinco anos.
O relatório é assinado pelo Instituto
Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea) e considera que
a democracia foi afetada negativamente pela gestão da pandemia, por escândalos
de corrupção, protestos antidemocráticos e ameaças ao Estado de Direito.
Para quem acompanha o cotidiano nacional,
isso não é uma grande surpresa. A democracia está em acentuado declínio desde a
eleição de Bolsonaro, em 2018, e o presidente eleito é o ator mais importante
no retrocesso.
Os Estados Unidos, pela primeira vez, apesar do vigor de sua democracia, aparecem em ligeiro declínio, graças, sobretudo, à passagem de Donald Trump pelo poder.
Um dos fatores que atingiu a democracia
americana acabou se expandindo para o Brasil: o questionamento do sistema
eleitoral. Trump recusouse a aceitar a derrota, alegando fraudes, enquanto
Bolsonaro, no Brasil, atacava o voto eletrônico.
Não sei se o relatório chegou até lá, mas a
escalada autoritária no Brasil sofreu um abalo depois do Sete de Setembro.
Naquele dia, Bolsonaro reuniu multidões para atacar o Supremo Tribunal Federal
(STF) e havia dezenas de cartazes pedindo intervenção militar.
Não há dúvida de que a maior ameaça à
democracia no Brasil nasce com Bolsonaro e seus aliados. O relatório aponta o
processo de declínio como iniciando em 2016, com o impeachment de Dilma. No
entanto, a crise que corroeu o sistema político antes de 2018 e que permitiu a
ascensão de Bolsonaro já expressava um declínio no processo de
redemocratização. Esse declínio pode ser traduzido no desencanto dos eleitores
com o sistema político e sua abertura para aventuras que varressem todos os
seus vestígios.
Nesse sentido, Bolsonaro é o principal ator
do declínio democrático, mas não o inventou, apenas tirou partido da crise,
para aprofundá-la ainda mais.
A compreensão de que a crise democrática
não se resume apenas no seu ator principal é algo que talvez possa afinar um
pouco nossos instrumentos de análise.
Esta semana foi marcada pelo fiasco
tecnológico nas eleições prévias do PSDB. O partido teve a boa ideia de
importar o sistema de eleições primárias americanas, mas, ao adaptá-lo às suas
circunstâncias, acabou revelando seu próprio fracasso.
O PSDB, um dos grandes partidos brasileiros
do processo de redemocratização, já estava em decadência. A crise de confiança
causada pelas denúncias de corrupção o atingiu em cheio.
Nas eleições de 2018, alguns principais
nomes não só abandonaram o candidato do partido, como embarcaram na campanha de
Bolsonaro.
Na falta de uma visão nacional e na
incapacidade de perder de cabeça erguida, o PSDB acabou precipitando sua perda
de identidade. Isso repercutiu na própria bancada no Parlamento, seduzida por
votar com o governo em troca das vantagens que isso proporciona. De certa
maneira, é possível dizer que o partido foi colhido por um processo de
decadência anterior a Bolsonaro e agravado por ele.
Um dos argumentos da escalada autoritária
era a luta contra um sistema corrompido. Sem voltar atrás nas suas pretensões
antidemocráticas, Bolsonaro recuperou algumas das práticas que alimentaram sua
aventura. O jogo de toma lá dá cá no Parlamento, do qual o chamado orçamento
secreto é a principal expressão, mostra que Bolsonaro usa de duas armas
simultâneas para atacar o processo democrático. Usa a decadência para defender
suas pretensões autoritárias e, ao mesmo tempo, aprofunda o fisiologismo para
se manter no governo.
As pesquisas indicam que a decadência da
democracia é um fator mais amplo do que se pensa e acredita-se que apenas a
minoria da população mundial viva sob um Estado Democrático de Direito.
Os processos que minaram nossa democracia
em grande parte foram inspirados no governo Trump (questionamento das eleições,
máquinas de fake news), mas uma compreensão maior, certamente, virá do fato de
que quando Bolsonaro surgiu em cena já estávamos em condição de grande
vulnerabilidade.
No ano que vem faremos eleições
presidenciais e para o Congresso. Foram as eleições do período democrático que
acabaram enfraquecendo o prestígio do sistema político. Eram fabulosamente
caras e acabaram distanciando os partidos dos eleitores comuns.
Um roteiro para reagir ao ritmo declinante
pode estar nas próprias eleições, pelo menos em dois aspectos: na apresentação
de programas que possam superar a crise econômica e social, mas também em
ideias que possam vislumbrar uma nova relação entre governo e Parlamento, sem
idealismos, mas tentando corrigir os grandes erros, os que resultam em
processos como o mensalão ou o orçamento secreto.
Com o melhor funcionamento do sistema
político no conjunto, será possível atenuar o descontentamento e,
consequentemente, bloquear o caminho para aventuras redentoras. A democracia
nunca esteve tão perto de sucumbir desde o movimento das Diretas Já. O susto
vale um esforço de análise e uma vontade de mudança.
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