segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Bruno Carazza* - Emendas, ineficiência, crises e corrupção

Valor Econômico

Orçamento impositivo não combina com sistema eleitoral proporcional

Na semana passada, discutindo a recente obra de Rodrigo de Oliveira Faria (Emendas Parlamentares e o Processo Orçamentário no Presidencialismo de Coalizão) argumentei que o maior controle de deputados e senadores sobre o orçamento altera radicalmente o jogo da política no Brasil.

A execução obrigatória de um montante cada vez maior de emendas parlamentares tem implicações significativas sobre a governabilidade, a eficiência do gasto público e a propensão a novos casos de corrupção.

O fortalecimento do protagonismo do Legislativo sobre a aplicação do dinheiro público tem justificativas plausíveis. Práticas distorcidas, porém, tendem a levar a resultados bastante distantes das boas intenções iniciais.

Durante muito tempo os presidentes da República valeram-se da prerrogativa de ter a palavra final sobre a execução do orçamento para chantagear parlamentares. Embora deputados e senadores alocassem recursos para atender a seu eleitorado, o governo só autorizava os pagamentos depois que votassem a favor dos projetos de seu interesse.

Sob esse prisma, a promulgação das mudanças constitucionais que determinaram a execução impositiva de emendas parlamentares atende a uma justa reivindicação de se obter um melhor equilíbrio de forças.

Em seu livro, Faria recorda o discurso do ex-deputado Henrique Eduardo Alves, autor da PEC que sacramentou a impositividade das emendas individuais: “Quando eu ia despachar as emendas do meu Estado, vinha o constrangimento: dez, doze, quinze deputados [esperando] para serem atendidos por um funcionário de Ministério que ia dizer ‘sim’ ou ‘não’. Isso é uma falta de respeito ao parlamentar e ao Legislativo!”

Mas ao garantirem a aplicação de recursos em suas bases, os parlamentares ficaram menos dependentes do Executivo, e assim tornou-se muito mais difícil manter uma base estável no Congresso para governar.

A elevação dos recursos para as emendas também é justificada pelo argumento de que os deputados conhecem melhor a realidade de suas bases eleitorais e têm melhores condições de atender as demandas. O problema é que há uma dissonância entre o sistema eleitoral e a distribuição de recursos públicos via emendas.

No Brasil, os deputados são eleitos conforme o desempenho do seu partido e de sua votação individual em todo o Estado. Dessa forma, embora alguns efetivamente tenham seus votos concentrados numa determinada área, outros têm seus votos espalhados pelo território porque são eleitos em função de religião, defesa de uma causa ou categoria profissional.

Em função de nosso sistema proporcional de lista aberta (essa é a classificação técnica), temos nos Estados regiões que elegem mais de um deputado, enquanto outras não têm representante no Congresso. Faz toda a diferença sobre a eficiência do sistema de emendas, pois algumas áreas são agraciadas com muitos recursos (destinados por vários parlamentares) e outras se tornam desertos orçamentários.

A única forma de corrigir essa distorção seria migrar para um sistema com base distrital. Nesse caso, o parlamentar seria eleito por uma região bem definida e aí sim faria sentido a elevação das emendas impositivas.

O voto distrital também aumentaria o controle da população no processo: se o deputado levasse recursos para áreas que não fossem vistas como prioritárias pela maioria dos eleitores da sua região (exemplo: caminhões de lixo, quando a demanda maior seria por educação de qualidade) ele seria punido pelo voto nas eleições seguintes.

Por fim, há a questão da corrupção. Numa citação também destacada no livro de Faria, o cientista político americano David Samuels levantou uma hipótese sobre nossas disputas orçamentárias ainda nos anos 1990: “deputados não negociam orçamento em busca de votos, eles usam o orçamento em troca de dinheiro”.

O argumento do precursor das pesquisas sobre as relações entre dinheiro, eleições e poder é que os parlamentares brasileiros usam o orçamento para gerar obras e contratações que, mediante licitações fraudulentas, abastecerão o financiamento de suas campanhas eleitorais.

Num contexto em que as doações de empresas foram proibidas e a abundância do fundão eleitoral faz com que todos os candidatos bem conectados com as elites partidárias recebam o máximo permitido pela Justiça Eleitoral, é bem razoável imaginar que as obras e compras públicas estimuladas pelas emendas estejam alimentando um pujante mercado de superfaturamento de contratações e caixa dois.

A ampliação das emendas impositivas abre um novo capítulo no presidencialismo de coalizão. Para minimizar os efeitos negativos gerados pelo agravamento do “dilema institucional brasileiro” é necessário mais do que articulação política para evitar crises ou a atuação dos órgãos de controle para combater a corrupção.

Para alinhar os interesses dos parlamentares com as necessidades da população, é preciso repensar as regras de disputa eleitoral e o sistema de financiamento de campanhas.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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