DEU NO BOLETIM CEDES – DEZEMBRO-JANEIRO
Em 2002, todas as previsões de descontinuidade, ruptura e desordem após a eleição de Lula provaram-se equivocadas. Não porque os receios não fossem justificados. Afinal, tratava-se de um candidato advindo da esquerda, três vezes derrotado em eleições anteriores com um discurso de ruptura com a ordem “neoliberal” que havia dominado a Nova República, e cuja campanha presidencial naquele ano, apesar da maquiagem de paz e amor, mantinha uma postura de confronto com as forças conservadoras que haviam se aglutinados ao redor dos governos anteriores.
Veio a Carta aos Brasileiros, é verdade, no fundo uma carta ao empresariado e aos bancos estrangeiros, e com ela um sinal de que, governando, Lula seria menos intransigente com as classes dominantes do que demonstrara ser nas campanhas anteriores.
O primeiro ano do governo Lula teve o sentido simbólico de uma transição e o efeito real de uma reorientação no Partido dos Trabalhadores (PT). Deu continuidade ao governo de Fernando Henrique Cardoso em praticamente todas as políticas, fazendo modestos ajustes de gestão. A esquerda do PT não aceitou e abandonou o partido. Agregou-se às razões para tanto a opção de Lula por um modelo de coalizão parlamentar baseado em um varejo de corrupção junto aos partidos conservadores menores que ele tanto havia criticado por anos. Até o PP de Maluf, nêmese do PT paulista, entrou na roda. O episódio do mensalão foi apenas uma
decorrência inevitável deste jogo.
No primeiro mandato, Lula não ousou mexer na macroeconomia. E nunca antes na história desse país o Banco Central foi tão “monetarista” e gozou de tanta autonomia. Ademais, o presidente realizou a consolidação dos tímidos programas sociais do governo anterior, assistencialistas e focalizados, sinônimos de clientelismo e descriminação. O Fome Zero, mais ambicioso, morreu na praia, e o Bolsa Família virou a bandeira de Lula, símbolo de sua atenção para com os menos favorecidos. Consolidação de programas já existentes, injetado com mais recursos, o Bolsa Família conseguiu atingir metas modestas de erradicação de miseráveis, já que 58% de seus recipientes permanecem miseráveis. O modelo assistencialista, quase desnecessário mencionar, mantém os recipientes hipossuficientes e dependentes do Estado. Foi um primeiro passo; curto e tímido demais, entretanto. O seguinte, no plano da educação básica, nunca foi dado com determinação. A ampliação do FUNDEF para o FUNDEB não conseguiu produzir efeitos tangíveis na base da pirâmide educacional. “Andar com as próprias pernas”, como se diz, ficou para depois, e os milhões de empregos que foram gerados com a graciosa ajuda do prosperidade da economia mundial ficaram para os educacionalmente aptos e treinados, e para as universidades federais e privadas, topo da pirâmide educacional brasileira.
O primeiro mandato terminou implementando políticas pouco distintas das executadas pelo governo anterior. A expectativa de uma transição para um modelo mais universal nas suas preocupações sociais e mais republicano na sua gerência do poder público era grande ainda. Havia uma dívida com os votos que elegeram Lula em 2002.
O segundo mandato, obtido de forma contundente contra um candidato fraco e mais conservador que o partido ao qual pertence, e contando com uma economia ainda próspera aqui e alhures, permitiu a Lula adotar políticas sociais mais agressivas e, em particular, a mobilização de gastos públicos em infraestrutura para incentivar o crescimento da indústria nacional. Lula entregou o mercado financeiro às delicias da especulação do capital internacional, enquanto monopolizou, através do PAC, a organização da grão-burguesia nacional, dando-lhe isenções fiscais e subsídios, além de amplo acesso aos juros subsidiados do BNDES.
O resultado dessas políticas foram taxas de crescimento elevadas e uma distribuição de renda modesta pela via de programas sociais e de geração de emprego, principalmente para as classes C e D. O modelo de coalizão político-parlamentar ganhou novo contorno, com um parceiro protagonista, o PMDB, capaz de dar a sustentação política que o PT – mais fisiológico, fragmentado e menos potente – já não era capaz de prover sozinho. A corrupção permaneceu em níveis elevados com o novo aliado. Mas o carisma de Lula se multiplicou com o sucesso econômico brasileiro e com sua capacidade de expurgar tudo e todos no caminho de sua autoproclamação como o melhor presidente que o Brasil já teve.
Pessoalmente, desliguei-me afetivamente do PT no primeiro mês do primeiro mandato, depois de duas décadas de militância e simpatia. Por que, me pergunto, se a transição parecia ter sido tão boa? Errei, então, na avaliação do que viria, ou meu erro ocorre agora, ao avaliar “positivamente” os oito anos de governo Lula?
Governos pretéritos contam com o benefício, ao serem avaliados, de estarem acima das lutas políticas e da cadência dos conflitos que os cercam no momento em que ocorrem. Por oito anos, exceto no primeiro mês, tornei-me um crítico voraz do governo Lula. Faria e diria tudo de novo. Mas agora que já passou, não há como negar que, dezoito anos depois (dois de Itamar, oito de FHC e oito de Lula), e não oito anos depois, o Brasil é um país melhor do que antes. Era difícil piorar, mas não é difícil perceber, em retrospectiva, que se trata de duas décadas de continuidade de políticas conservadoras do ponto de vista fiscal e monetário; tímidas, mas em evolução, no plano social, acopladas a investimentos estatais baixos, mas crescentes, em infraestrutura.
Atentemos, entretanto, que foram dezoito anos, reitero, e não dois mandatos de Lula que fizeram isso. A ruptura que eu e parcela da esquerda queríamos nunca aconteceu. Nas três frentes de análise que expus aqui, “nós” (a) perdemos o debate macroeconômico, (b) fomos derrotados por um modelo assistencialista de política social a que sempre nos opusemos, e (c) os investimentos estatais nunca chegaram na proporção do PIB que gostaríamos. Mas a trajetória do Brasil, há que se reconhecer, teve seus êxitos, mesmo que não se reconheça, em geral, que as continuidades destes dezoito anos são bem maiores que as rupturas.
Nesse contexto temporalmente mais dilatado de análise, as perspectivas para o governo Dilma Rousseff são de continuidade, pelo menos enquanto a economia mundial permitir. No plano político, entretanto, sem a personagem carismática de Lula para amalgamar forças políticas polares, a aliança renovada com o PMDB, PSB e demais partidos do guarda-chuva da coalizão que Lula criou para eleger sua ministra, os riscos de instabilidade e paralisia são maiores, e o processo de composição do ministério já demonstra isto, agradando a poucos. Na verdade, desagradando a quase todos. Este será também um governo pleno de protagonismo para os quadros da burocracia do PT, sem a sombra de Lula para ofuscar seus desejos de brilho próprio.
Creio, entretanto, que a presença de Lula no cenário político pode acabar sendo um imperativo de “governabilidade”, sob risco de a nova presidente perder controle sobre a base aliada com a qual governará e sobre o partido que nunca foi o seu. O ex-presidente que a república brasileira terá em 2011 pode, portanto, acabar por ser um protagonista e um fiador da aliança PT/PMDB que se instaura com Rousseff. Mas se Lula agir demais e com eficácia, corre o risco de ser um candidato natural para um terceiro mandato e ofuscar sua escolhida para sucedê-lo. Se não o fizer, porém, o governo de Dilma pode naufragar nas entranhas da democracia representativa e do jogo de clientela que estrutura a relação executivo-legislativo em nosso país.
Dilma é uma mulher. Este fato em si só é razão para celebrarmos. Seu valor simbólico não pode ser desprezado. Meu receio, no entanto, é que seja só isso; que dezoito anos depois, a construção de um Brasil melhor sofra um retrocesso exatamente nas mãos de um partido que parecia ser a maior promessa de transformação social em nosso país quando tudo isso começou. Tudo isso, sabemos, vai depender da economia mundial e de seus protagonistas. E nesse jogo, a nova presidente, como Lula, ainda será bagre pequeno. Afinal, o Brasil ainda é bagre pequeno. Se a maré estiver a nosso favor, e torçamos por isso, creio que os próximos quatro anos devem ser tranquilos, sem sobressaltos positivos ou negativos. Se a maré não estiver para peixe, porém, tenho dúvidas se estas são as melhores mãos para nos conduzir por uma crise mais profunda da economia mundial.
*Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em 2002, todas as previsões de descontinuidade, ruptura e desordem após a eleição de Lula provaram-se equivocadas. Não porque os receios não fossem justificados. Afinal, tratava-se de um candidato advindo da esquerda, três vezes derrotado em eleições anteriores com um discurso de ruptura com a ordem “neoliberal” que havia dominado a Nova República, e cuja campanha presidencial naquele ano, apesar da maquiagem de paz e amor, mantinha uma postura de confronto com as forças conservadoras que haviam se aglutinados ao redor dos governos anteriores.
Veio a Carta aos Brasileiros, é verdade, no fundo uma carta ao empresariado e aos bancos estrangeiros, e com ela um sinal de que, governando, Lula seria menos intransigente com as classes dominantes do que demonstrara ser nas campanhas anteriores.
O primeiro ano do governo Lula teve o sentido simbólico de uma transição e o efeito real de uma reorientação no Partido dos Trabalhadores (PT). Deu continuidade ao governo de Fernando Henrique Cardoso em praticamente todas as políticas, fazendo modestos ajustes de gestão. A esquerda do PT não aceitou e abandonou o partido. Agregou-se às razões para tanto a opção de Lula por um modelo de coalizão parlamentar baseado em um varejo de corrupção junto aos partidos conservadores menores que ele tanto havia criticado por anos. Até o PP de Maluf, nêmese do PT paulista, entrou na roda. O episódio do mensalão foi apenas uma
decorrência inevitável deste jogo.
No primeiro mandato, Lula não ousou mexer na macroeconomia. E nunca antes na história desse país o Banco Central foi tão “monetarista” e gozou de tanta autonomia. Ademais, o presidente realizou a consolidação dos tímidos programas sociais do governo anterior, assistencialistas e focalizados, sinônimos de clientelismo e descriminação. O Fome Zero, mais ambicioso, morreu na praia, e o Bolsa Família virou a bandeira de Lula, símbolo de sua atenção para com os menos favorecidos. Consolidação de programas já existentes, injetado com mais recursos, o Bolsa Família conseguiu atingir metas modestas de erradicação de miseráveis, já que 58% de seus recipientes permanecem miseráveis. O modelo assistencialista, quase desnecessário mencionar, mantém os recipientes hipossuficientes e dependentes do Estado. Foi um primeiro passo; curto e tímido demais, entretanto. O seguinte, no plano da educação básica, nunca foi dado com determinação. A ampliação do FUNDEF para o FUNDEB não conseguiu produzir efeitos tangíveis na base da pirâmide educacional. “Andar com as próprias pernas”, como se diz, ficou para depois, e os milhões de empregos que foram gerados com a graciosa ajuda do prosperidade da economia mundial ficaram para os educacionalmente aptos e treinados, e para as universidades federais e privadas, topo da pirâmide educacional brasileira.
O primeiro mandato terminou implementando políticas pouco distintas das executadas pelo governo anterior. A expectativa de uma transição para um modelo mais universal nas suas preocupações sociais e mais republicano na sua gerência do poder público era grande ainda. Havia uma dívida com os votos que elegeram Lula em 2002.
O segundo mandato, obtido de forma contundente contra um candidato fraco e mais conservador que o partido ao qual pertence, e contando com uma economia ainda próspera aqui e alhures, permitiu a Lula adotar políticas sociais mais agressivas e, em particular, a mobilização de gastos públicos em infraestrutura para incentivar o crescimento da indústria nacional. Lula entregou o mercado financeiro às delicias da especulação do capital internacional, enquanto monopolizou, através do PAC, a organização da grão-burguesia nacional, dando-lhe isenções fiscais e subsídios, além de amplo acesso aos juros subsidiados do BNDES.
O resultado dessas políticas foram taxas de crescimento elevadas e uma distribuição de renda modesta pela via de programas sociais e de geração de emprego, principalmente para as classes C e D. O modelo de coalizão político-parlamentar ganhou novo contorno, com um parceiro protagonista, o PMDB, capaz de dar a sustentação política que o PT – mais fisiológico, fragmentado e menos potente – já não era capaz de prover sozinho. A corrupção permaneceu em níveis elevados com o novo aliado. Mas o carisma de Lula se multiplicou com o sucesso econômico brasileiro e com sua capacidade de expurgar tudo e todos no caminho de sua autoproclamação como o melhor presidente que o Brasil já teve.
Pessoalmente, desliguei-me afetivamente do PT no primeiro mês do primeiro mandato, depois de duas décadas de militância e simpatia. Por que, me pergunto, se a transição parecia ter sido tão boa? Errei, então, na avaliação do que viria, ou meu erro ocorre agora, ao avaliar “positivamente” os oito anos de governo Lula?
Governos pretéritos contam com o benefício, ao serem avaliados, de estarem acima das lutas políticas e da cadência dos conflitos que os cercam no momento em que ocorrem. Por oito anos, exceto no primeiro mês, tornei-me um crítico voraz do governo Lula. Faria e diria tudo de novo. Mas agora que já passou, não há como negar que, dezoito anos depois (dois de Itamar, oito de FHC e oito de Lula), e não oito anos depois, o Brasil é um país melhor do que antes. Era difícil piorar, mas não é difícil perceber, em retrospectiva, que se trata de duas décadas de continuidade de políticas conservadoras do ponto de vista fiscal e monetário; tímidas, mas em evolução, no plano social, acopladas a investimentos estatais baixos, mas crescentes, em infraestrutura.
Atentemos, entretanto, que foram dezoito anos, reitero, e não dois mandatos de Lula que fizeram isso. A ruptura que eu e parcela da esquerda queríamos nunca aconteceu. Nas três frentes de análise que expus aqui, “nós” (a) perdemos o debate macroeconômico, (b) fomos derrotados por um modelo assistencialista de política social a que sempre nos opusemos, e (c) os investimentos estatais nunca chegaram na proporção do PIB que gostaríamos. Mas a trajetória do Brasil, há que se reconhecer, teve seus êxitos, mesmo que não se reconheça, em geral, que as continuidades destes dezoito anos são bem maiores que as rupturas.
Nesse contexto temporalmente mais dilatado de análise, as perspectivas para o governo Dilma Rousseff são de continuidade, pelo menos enquanto a economia mundial permitir. No plano político, entretanto, sem a personagem carismática de Lula para amalgamar forças políticas polares, a aliança renovada com o PMDB, PSB e demais partidos do guarda-chuva da coalizão que Lula criou para eleger sua ministra, os riscos de instabilidade e paralisia são maiores, e o processo de composição do ministério já demonstra isto, agradando a poucos. Na verdade, desagradando a quase todos. Este será também um governo pleno de protagonismo para os quadros da burocracia do PT, sem a sombra de Lula para ofuscar seus desejos de brilho próprio.
Creio, entretanto, que a presença de Lula no cenário político pode acabar sendo um imperativo de “governabilidade”, sob risco de a nova presidente perder controle sobre a base aliada com a qual governará e sobre o partido que nunca foi o seu. O ex-presidente que a república brasileira terá em 2011 pode, portanto, acabar por ser um protagonista e um fiador da aliança PT/PMDB que se instaura com Rousseff. Mas se Lula agir demais e com eficácia, corre o risco de ser um candidato natural para um terceiro mandato e ofuscar sua escolhida para sucedê-lo. Se não o fizer, porém, o governo de Dilma pode naufragar nas entranhas da democracia representativa e do jogo de clientela que estrutura a relação executivo-legislativo em nosso país.
Dilma é uma mulher. Este fato em si só é razão para celebrarmos. Seu valor simbólico não pode ser desprezado. Meu receio, no entanto, é que seja só isso; que dezoito anos depois, a construção de um Brasil melhor sofra um retrocesso exatamente nas mãos de um partido que parecia ser a maior promessa de transformação social em nosso país quando tudo isso começou. Tudo isso, sabemos, vai depender da economia mundial e de seus protagonistas. E nesse jogo, a nova presidente, como Lula, ainda será bagre pequeno. Afinal, o Brasil ainda é bagre pequeno. Se a maré estiver a nosso favor, e torçamos por isso, creio que os próximos quatro anos devem ser tranquilos, sem sobressaltos positivos ou negativos. Se a maré não estiver para peixe, porém, tenho dúvidas se estas são as melhores mãos para nos conduzir por uma crise mais profunda da economia mundial.
*Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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