Correio Braziliense
Costumamos dizer que, no parto, a mãe
"dá à luz" ao filho, mais exato seria dizer que ela "dá o
tempo", seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre
em busca de não morrer cedo e de transcender à morte
A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica.
Giannetti adota o estilo de ensaios curtos —
235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como
um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza
a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse
destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde
muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano
busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo
ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de
permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao
longo de milênios.
O autor passa por obras orientais e antigas,
como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de
filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que
havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte
foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um
deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia
clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos
átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez,
expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que "viemos do pó e
ao pó voltaremos".
Costumamos dizer que, no parto, a mãe
"dá à luz" o filho, mais exato seria dizer que ela "dá o
tempo", seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre
em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida
pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram
ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos
deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade
intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja
apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda
que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a
história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de
buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e
transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal,
que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois
em outros corpos.
O livro Imortalidades é um belo e rigoroso
estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de
morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma
eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao
criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar
moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte
definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com
produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no
limite, o suicídio da espécie.
De certo modo, é isso que ocorre com o ser
humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a
própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada
vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem
consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da
imortalidade.
Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a
curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser
consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico
e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças,
especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar
imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: "Cada minuto eterno
enquanto dura". Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de
livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos:
sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.
*Professor emérito da Universidade de
Brasília (UnB)
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