Adolfo Suárez, em fevereiro de 1988.
Em menos de três anos, Suárez comandou a transformação de um Estado ditatorial em uma democracia constitucional. “Nós fomos o nosso próprio antecedente”, disse o ex-premiê certa vez
Joaquín Prieto – El Pais
Era a coragem em forma de pessoa, e o mais firme defensor dos valores do diálogo e do consenso. Mas, acima de tudo, Adolfo Suárez González, morto aos 81 anos após uma longa enfermidade neurodegenerativa, entra para a história por ter guiado uma autêntica mudança no rumo dos assuntos públicos da Espanha, que transitou do Estado ditatorial para a democracia constitucional em apenas dois anos e meio, apesar da intensidade dos esforços da extrema direita e do terrorismo do ETA e dos GRAPOs para impedir isso e das conspirações de franquistas entrincheirados no imobilismo.
Uma manobra do rei dom Juan Carlos foi precisamente o que desbloqueou o caminho de uma reforma política que teve muitos pais. Suárez havia redigido um mapa da futura democracia, “algumas folhas” que pôs nas mãos do rei no maior dos segredos, conforme afirma seu círculo íntimo. Essa versão contrasta com as Memórias póstumas de Torcuato Fernández Miranda, o maduro professor que atuou de mentor político de dom Juan Carlos em seus primeiros anos como rei, e que atribuía a si próprio nessa obra o papel de desenhista da Transição. Líderes da esquerda, como Felipe González e Santiago Carrillo, também participaram plenamente das decisões da Transição e, embora mais tardiamente, também é preciso reconhecer o papel de Manuel Fraga.
Mas o fato é que nada teria sido possível se Suárez, à frente do segundo Governo do rei, tivesse titubeado ou se atrapalhado na condução do processo durante o escasso ano que transcorreu entre sua nomeação como chefe de Governo e as eleições de 15 de junho de 1977. Ele decidiu uma primeira anistia de presos políticos, dissolveu o Movimento Nacional, legalizou os partidos que lutavam pela democracia; socialistas e comunistas contiveram os mais radicais, e Suárez se empenhou em que as estruturas franquistas praticassem o haraquiri, como um general que torce o braço da sua tropa, sempre pelo procedimento de “da lei para a lei”. Daí a aversão que lhe dedicam os elementos imobilistas.
Dom Juan Carlos demitiu Carlos Árias, seu primeiro presidente de Governo, em 30 de junho de 1976. Este não tinha apresentado sua demissão, mas tampouco resistiu. Nos dias subsequentes, Fernández Miranda manobrou para tornar possível que os conselheiros do Reino incluíssem Suárez na lista tríplice de nomes propostos ao cargo de primeiro-ministro (a “terna”, no jargão da época). Era um assunto delicado, porque, segundo a legislação da ditadura, o chefe de Estado só poderia designar um dos três que fossem propostos por aquele órgão, dominado por franquistas de toda a vida. Daí a habilidade com que Fernández Miranda conduziu as deliberações para que o nome de Suárez figurasse como se fosse um mero recheio. Ao final, anunciou: “Estou em condições de oferecer ao rei o que ele me pediu”, sem especificar em que consistia. O segredo ficou guardado até o dia em que o monarca convocou Suárez ao palácio da Zarzuela para lhe pedir “o favor” de aceitar a presidência do Governo. E ao futuro condutor da Transição só lhe ocorreu esta primeira resposta: “Por fim!”.
Suárez tinha então 43 anos. Criado politicamente no Movimento Nacional (o partido único de Franco, um magma de falangistas, sindicalistas verticais e ocupantes de cargos públicos), fazia nove anos que se dedicava à política. Havia começado como procurador nas Cortes (hoje deputado) por Ávila, sua província natal, até assumir a secretaria geral do Movimento no primeiro governo sob o Rei. Uma trajetória com pouco brilho e muita juventude para a elite intelectual e burocrática da época, que, sem querer, compartilhou com a oposição clandestina a impressão de que o rei havia cometido o maior engano da sua vida.
“Obrai sem medo”
Foi isso que disse o rei na primeira reunião do Conselho de Ministros formado por Suárez, segundo testemunho do seu então vice-presidente, Alfonso Osorio. Não haviam transcorrido nem duas semanas desde a designação quando o novo Executivo anunciou a realização de eleições em menos um ano, sendo fixado o prazo máximo de 30 de junho de 1977. Abandonada a hesitante reforma política do Governo anterior, o novo projeto passava por estabelecer um objetivo mais claramente democrático. A base para isso saiu do cérebro de Fernández Miranda, o que ele mesmo chamou de um documento “sem pai”. Por mais limitado que pareça atualmente o objetivo, tratava-se de escolher um Parlamento por sufrágio universal, pela primeira vez desde 1936. Para conseguir isso, era necessária a aprovação por dois terços dos votos nas Cortes franquistas. No tentativa de superar os obstáculos, Suárez protagonizou em 8 de setembro uma reunião com o alto comando militar, da qual saiu a versão de que o presidente tinha prometido não legalizar o Partido Comunista da Espanha. Por isso, quando o fez, nove meses mais tarde, uma parte do alto comando se sentiu traída e considerou que havia pretexto suficiente para protagonizar um princípio de rebelião.
Primeiro foi a lei de reforma política, negociada não com a oposição ilegal –embora esta tenha sido mantida a par –, e sim com a Aliança Popular, o grupo que Manuel Fraga acabava de fundar e que contava com 200 procuradores nas Cortes franquistas. Em 18 de novembro de 1976, uma ampla maioria de procuradores das Cortes (425 a favor, 59 contra, 13 abstenções) aprovou a lei que autorizava o Governo a convocar eleições para o Congresso e o Senado, excetuando-se os 40 senadores reservados à nomeação pelo rei. Imediatamente foi convocado um referendo de ratificação que contou com uma participação de 77% do eleitorado (apesar da abstenção pregada pela oposição), dos quais 94% votaram a favor.
Suárez conseguiu uma grande vitória após torcer o braço da sua própria tropa. Esse triunfo reforçou a posição do presidente de Governo frente a Fernández Miranda, que havia se limitado a atuar à sombra. Aí começou o distanciamento entre os dois. Suárez tomou decididamente as rédeas da negociação a respeito das condições em seriam realizadas as primeiras eleições, a legalização dos partidos clandestinos (não todos, mas os que eram considerados mais importantes) e os preparativos para as urnas. O terrorismo do ETA, dos GRAPOs e da extrema direita se abateu sobre o incipiente projeto democrático, mas isso não impediu a legalização dos principais grupos de esquerda que viriam a formar a base da estrutura política do Estado reformado. Em 9 de abril de 1977 foi legalizado o Partido Comunista, pouco depois de ser retirado o gigantesco jugo e as flechas instalados na rua Alcalá, 44, em Madri, na sede do (até então) partido único.
Em 11 de abril demitiu-se o ministro da Marinha, almirante Pita da Veiga, e no dia 12 ocorreu a reunião do Conselho Superior do Exército que expressou a “repulsa geral” à legalização do PCE “em todas as unidades do Exército”. A publicação desse comunicado militar coincidiu com a primeira reunião pública do PCE em Madri, que buscou responder ao movimento militar colocando a bandeira vermelha e amarela do Reino na mesma sala onde estava a bandeira vermelha comunista. Seu secretário-geral, Santiago Carrillo, fez uma declaração de reconhecimento ostensivo à Monarquia. A maioria da imprensa, que em janeiro havia publicado um editorial conjunto contra a desestabilização, voltou a difundir outro em abril, intitulado Não Frustrar Uma Esperança, em defesa da democracia e da neutralidade dos militares.
O presidente do Governo confirmou a vontade de ir às eleições. Ele mesmo quis concorrer; não tinha partido político nenhum, mas desembarcou em uma coalizão de 14 grupos (democratas-cristãos, liberais, sociais-democratas) que pululavam sob o nome de Centro Democrático. Após deslocar a sua figura principal, José María da Areilza, alçou-se ao comando da improvisada UCD. Muita gente sua também entrou para o grupo, ficando conhecidos como “os azuis”, pela cor da camisa falangista. Da campanha para as eleições de 1977 data uma das suas frases mais famosas, “posso prometer e prometo”, sugerida por seu colaborador Fernando Ónega.
Bipartidarismo imperfeito
Os resultados do 15-J desenharam esse “bipartidarismo imperfeito” que ainda perdura, com um partido dominante, mas sem maioria absoluta (UCD), que obteve 166 deputados, bem mais que a Aliança Popular, de Manuel Fraga, que ficou com 16. Enquanto isso, o PSOE assumia a hegemonia à esquerda, com 118 deputados, contra o PCE de Santiago Carrillo, que elegeu 19. A coalizão nacionalista de Jordi Pujol obteve 11, e o PNV, 8.
Sem maioria absoluta, mas à frente da força dominante (UCD), Suárez se lançou em múltiplas direções. Por um lado, tentou reforçar sua autoridade sobre a UCD empurrando seus diversos partidos para uma dissolução em favor da unidade, enquanto se apoiava para a tarefa de governo em um número dois de confiança, Fernando Abril Martorell. Por outro lado, reconheceu a legitimidade da Generalitat da Catalunha na pessoa do seu presidente no exílio, Josep Tarradellas. E ao mesmo tempo lançou à arena pública a invenção do “consenso”, cujo primeiro fruto foram os pactos de Moncloa (outono europeu de 1977), que reuniram um amplo leque de partidos e sindicatos sob um acordo para fazer frente à crise econômica.
A Constituição foi o segundo fruto do consenso. Foi elaborada ao longo de 1978, enquanto a direita e parte dos centristas chiavam contra Suárez, seu poder e sua atitude presidencialista. O mal-estar militar só crescia, e o terrorismo etarra deixou bem clara sua tentativa de acabar com a incipiente democracia. Nessas condições, foi selado o acordo da Constituição, afinal aprovada num referendo em 6 de dezembro de 1978.
Nem a participação no referendo foi muito elevada (67%), nem se conseguiu o apoio ao texto constitucional por parte do PNV, que optou pela abstenção no País Basco. Em todo caso, considerou-se um grande triunfo que se chegasse a promulgar a Carta Magna elaborada com participação ativa da direita (AP), da centro-direita (UCD), do socialismo, do comunismo e do nacionalismo catalão. Mas aí acabou o consenso. A partir desse resultado compartilhado, cada setor político decidiu continuar seu próprio caminho. O presidente dissolveu as Cortes constituintes, convocou novas eleições e voltou a ganhar, em março de 1979, em condições semelhantes às anteriores: sem maioria absoluta, mas outra vez em posição dominante.
O trem empaca
O resultado das eleições de 1979 marcou uma nítida ruptura entre Adolfo Suárez e o grupo socialista situado em torno de Felipe González, algo com grandes consequências para o futuro. Suárez fechou a campanha eleitoral com um pronunciamento televisivo em que atacou o PSOE como sendo defensor do “aborto livre”, do “desaparecimento do ensino religioso” e de “uma economia coletivista”. Felipe González devolveu essa bola na sessão de posse de Suárez, expondo seu passado no Movimento Nacional. Um ano mais tarde, a moção de censura socialista contra Suárez não obteve votos suficientes para derrubá-lo, mas o fragilizou. As posições dentro da UCD se dividiram; a lei do divórcio e a do Estatuto de Centros Docentes tropeçaram na oposição interna dos democratas-cristãos. A opinião publicada da época usou as palavras “desilusão” e “desencanto” para se referir à situação do país em 1980. O ambiente de confusão e mal-estar impregnou a opinião pública, que retirou rapidamente o apoio a Suárez, conforme as pesquisa da época.
Se a chave do consenso havia sido uma reforma democrática compartilhada pela direita civilizada, pela esquerda e pelo nacionalismo catalão, no final de 1980 o presidente do Governo já não tinha força para convencer os barões do seu próprio partido. As conspirações militares e civil-militares avançavam em ritmo acelerado. Os principais banqueiros pressionavam parte da UCD para que abandonasse Suárez – que acabava de implantar uma política fiscal digna desse nome. “Queriam que nos incorporássemos à direita pura e dura, ou seja, ao grupo da Aliança Popular”, relatou o democrata-cristão Fernando Álvarez de Miranda em suas Memórias. O trato entre o rei e Suárez esfriou: o presidente queria ser o responsável constitucional por um rei que lhe escapava, fiel à ideia de que preferia atribuir os êxitos do Governo à Coroa, e seus fracassos, ao próprio Governo. E o terrorismo etarra continuava sua tarefa de demolição implacável da confiança na democracia.
No fim de janeiro de 1981, Adolfo Suárez decidiu atirar a toalha e renunciou à presidência do Governo. Isso acelerou o nervosismo dos implicados nas diversas conspirações militares em marcha. Desconhecedor do que se tramava, assistiu como presidente demissionário à segunda e definitiva votação de investidura de seu sucessor, Leopoldo Calvo Sotelo, em 23 de fevereiro de 1981, quando o então tenente-coronel Antonio Tejero invadiu o Congresso à frente de centenas de guardas civis. Aí ressurgiu o melhor Suárez, o homem arrojado, que enfrentou os invasores sem outro respaldo que o da sua coragem pessoal diante das armas rebeladas.
Saiu prestigiado daquele teste, mas, na verdade, foi seu canto do cisne: o animal político de raça tentou se recuperar e já não conseguiu. A Espanha deixou o líder genial cair, considerando que seu tempo havia passado e que outros protagonistas lutavam para abrir espaço. Ainda construiu outro partido, o Centro Democrático e Social (CDS), mas os resultados foram medíocres. Suárez se retirou do primeiro plano da política em 1991 e se refugiou em um discreto escritório profissional como advogado. Em 2003, começou a sofrer os sintomas do Alzheimer, e a notícia, mantida na discrição por seu primogênito, Adolfo, tornou-se pública em 1º. de junho de 2005.
E a partir de então tudo foram homenagens e reconhecimentos ao estadista, ao homem adequado no momento oportuno, sublimado na consideração pública pela nostalgia de um tempo em que os conflitos políticos se resolviam pelo diálogo e a negociação, numa Espanha onde a crispação era limitada aos extremismos, sem afetar as correntes centrais da política. Seja como for, ninguém pode negar o méritos de Adolfo Suárez na tarefa de ter conduzido o trem da Transição sem que descarrilasse. E sem conhecer a ferrovia pela qual trafegava. Como recorda seu biógrafo Juan Francisco Fontes, Adolfo Suárez disse que não existiam modelos nacionais ou internacionais que pudessem servir de molde para a transição espanhola, e por isso afirmou: “Nós fomos o nosso próprio antecedente”.
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