- Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Bolsonaro quer tornar condições para mobilização ainda mais hostis
Nas democracias, a relação amiúde conflituosa entre mobilização social e instituições governamentais e administrativas não apenas é normal como também exprime dinâmicas básicas que constituem o cerne da própria democracia.
Políticos, independentemente de sua posição no espectro, normalmente compreendem com sabedoria prática essas dinâmicas, mesmo quando lhes são desfavoráveis ou desgostam de seus resultados.
Nas democracias, a mobilização e o ativismo social dirigidos a contestar as decisões das autoridades políticas são legítimos porque, embora o governo em turno possa definir e implementar as políticas que julgar adequadas —pois para tanto passou pelo crivo das urnas—, os cidadãos não são obrigados a concordar com as decisões tomadas em seu nome, nem os grupos sociais a aguardar a próxima eleição para exprimir sua insatisfação.
Mais: a mobilização social e o ativismo são em princípio valiosos porque alertam a sociedade sobre interesses e problemas correta ou incorretamente preteridos pelo jogo e pela inércia da política.
O Brasil é inóspito ao ativismo social. Relatórios comparativos internacionais das entidades Global Witness e Anistia Internacional, publicados em 2018, situam o país entre aqueles com maior número de assassinatos de ativistas dedicados à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente.
O governo do presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado determinado a tornar ainda mais hostis as condições para a mobilização social.
Não apenas reiterou, durante a campanha, que iria acabar com o ativismo como, após eleito, continuou a incentivar o ódio e a violência pelas redes sociais. Mantém firme o compromisso de alargar os excludentes de ilicitude, conforme pode ser constatado não apenas nas alusões constantes ao assunto mas no pacote anticrime do ministro Sergio Moro.
Por certo, o ativismo a ser banido é o daqueles que pensam diferente e defendem valores dissidentes em relação às prioridades e concepção de mundo do atual governo.
Nas democracias, espera-se que conflitos persistentes encontrem vias de canalização institucional, não para dar a eles solução definitiva e plenamente satisfatória às partes envolvidas —possibilidade ideal e estranha ao mundo da política—, mas para normalizá-los, permitindo sua expressão e negociação continuada.
Quando interesses e problemas sistematicamente preteridos mal podem ser trabalhados nas suas especificidades no arcabouço institucional existente, criam-se novos canais institucionais e incorporam-se a eles atores capazes de vocalizar tais interesses e de iluminar a compreensão de tais problemas.
No Brasil pós-transição, diversas instituições participativas, como conselhos gestores e conferências nacionais, deram concreção ao princípio constitucional de participação social na gestão das políticas públicas.
Neste flanco, o país tornou-se referência mundial pela abrangência e capilaridade das inovações participativas. Elas tornam possível que atores sociais atuem, voluntariamente ou com remuneração, vocalizando os interesses e valores de segmentos da população em relação às políticas públicas que os afetam, contribuindo para seu aprimoramento.
Não se trata de quaisquer segmentos da população, mas precisamente daqueles objetos de diversas exclusões. O decreto 9.759-19, do presidente Jair Bolsonaro, extingue colegiados em que, especificamente, se fazem ouvir as vozes da população em situação de rua, de trabalhadores rurais, agricultores dedicados à agroecologia e cultura orgânica, indígenas, afro-brasileiros, povos e comunidades tradicionais, vítimas de trabalho escravo, idosos e pessoas com deficiência.
O elenco dificilmente podia ser mais emblemático: extingue os canais de expressão institucional da alteridade, dos que não são centrais nas prioridades do governo.
Por fim, nas democracias entende-se que a compreensão e crítica das decisões de autoridades governamentais passa por um processo coletivo de avaliação e formação de juízo, que depende do acesso à informação e da liberdade de opinião.
Esse processo de formação de juízo precede a eventual contestação das decisões de autoridades e é a tal ponto essencial às democracias que a liberdade de opinião e expressão pública de ideias se encontram consagradas como direito fundamental. Não se trata apenas de um direito civil, próprio ao mundo das convicções de foro íntimo, mas também de um direito político indispensável à crítica pública.
Aos olhos do ministro da Educação, Abraham Weintraub, todavia, o exercício da crítica pública nem sequer merece o estatuto de “ideia”, mesmo que errada, mas apenas o de “balbúrdia” ou ruído incompreensível.
As universidades que permitem a expressão de vociferações “sem sentido” em suas instalações devem ser punidas com arrojo orçamentário. Novamente, é a voz do outro que resta privada de sentido.
Hostilizar a ação do outro, extinguir-lhe os canais de reconhecimento institucional e privar-lhe a voz de sentido é política de negação da alteridade... política sem o outro. Certamente é política, mas não é democrática e periga levar de roldão a própria democracia.
*Adrian Gurza Lavalle é cientista político, professor da USP e pesquisador do Cebrap.
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