- O Estado de S.Paulo
Sete décadas após o fim da 2.ª Guerra em solo europeu, a Europa que construímos desde então está sob ataque da extrema-direita
Enquanto a Catedral de Notre Dame queimava, o partido de Marine Le Pen empatava nas pesquisas com o movimento de Emmanuel Macron pelo que ele chama de “renascimento europeu”. Na Espanha, um partido de extrema-direita chamado Vox, que promove ideias nacionalistas reacionárias contra as quais a democracia pós-franquista da Espanha fora supostamente imunizada, ganhou a preferência de um em cada dez eleitores em uma eleição nacional.
Os populistas nacionalistas governam a Itália, onde um bisneto de Benito Mussolini concorre ao Parlamento Europeu na lista dos chamados Irmãos da Itália. Na Grã-Bretanha, as eleições europeias de 23 de maio podem ser vistas como um outro referendo sobre o Brexit, mas a luta subjacente é a mesma de nossos colegas europeus. Nigel Farage é um Le Pen em uma icônica jaqueta Barbour.
Enquanto isso, para marcar o 30.º aniversário da Revolução de Veludo de 1989, o partido governista Lei e Justiça da Polônia denunciou uma carta dos direitos LGBT + como um ataque às crianças. Na Alemanha, a Alternative für Deutschland (AfD) adota com sucesso uma retórica ‘völkisch’ (movimento popular) que acreditávamos ter sido derrotado para sempre, embora agora use muçulmanos como bodes expiatórios em vez de judeus. Lembre-se do aviso de Bertolt Brecht: “O útero do qual isso rastejou permanece fértil”.
Viktor Orbán, o jovem herói revolucionário de 1989 tornou-se o buldogue neo autoritário, efetivamente demoliu a democracia liberal na Hungria, usando ataques antissemitas contra o bilionário George Soros e generosos subsídios da UE. Ele também desfrutou de proteção política de Manfred Weber, o político bávaro que o Partido do Povo Europeu, o poderoso agrupamento de centro-direita da Europa, sugere que seja o próximo presidente da Comissão Europeia. Orbán resumiu a situação da seguinte forma: “Havia 30 anos, achávamos que a Europa era o nosso futuro. Hoje acreditamos que somos o futuro da Europa.”
O italiano Matteo Salvini concorda, a ponto de ser anfitrião de um comício eleitoral dos partidos populistas de direita da Europa, uma internacional de nacionalistas, em Milão no final deste mês.
Certamente, o espetáculo de um país outrora grandioso, reduzido a um ridículo global, numa farsa trágica chamada Brexit, silencia toda a conversa sobre Hungexit, Polexit ou Italexit. Mas o que Orbán e companhia pretendem é mais perigoso. Farage apenas quer sair da UE; eles propõem desmantelá-la de dentro, retornando a uma mal definida “Europa das nações”, obviamente muito mais desunida.
Para onde quer que se olhe, velhas e novas fendas aparecem, entre o norte e o sul da Europa, catalisadas pela crise da zona euro, entre o Ocidente e o Oriente, revivendo os antigos estereótipos do orientalismo intraeuropeu (Ocidente civilizado, Oriente bárbaro), entre duas metades de cada sociedade europeia, e mesmo entre a França e a Alemanha.Para qualquer um que tenha uma visão mais ampla, esses crescentes sinais de desintegração europeia não devem ser uma surpresa. Não é este um padrão familiar da história europeia?
Na virada do século 18 para o 19, o continente foi dilacerado por duas décadas de guerras napoleônicas, então costurado em outro padrão pelo Congresso de Viena. A 1.ª Guerra foi seguida pela paz de Versalhes. A cada vez, a nova ordem europeia do pós-guerra leva um tempo, mas gradualmente se esvai pelas bordas, com tensões tectônicas se acumulando sob a superfície, até que finalmente irrompe um novo período de problemas. Nenhuma colonização europeia, ordem, império, Reich, aliança ou união dura para sempre.
Partindo dessa medida de aferição histórica, a nossa Europa saiu-se muito bem: fez 74 anos, se datarmos seu nascimento do final da 2.ª Guerra na Europa. Deve-se essa longevidade ao colapso miraculosamente não violento em 1989-91 de um império russo com armas nucleares que ocupou metade do continente. O que aconteceu após o fim da Guerra Fria foi uma ampliação pacífica e o aprofundamento da existente ordem europeia ocidental pós-1945.
Mas, hoje, a Europa luta para permanecer um tema, em vez de se tornar meramente um objeto da política mundial – com Pequim ávida por moldar um século chinês, uma Rússia revanchista, os EUA unilateralistas de Donald Trump e a mudança climática ameaçando dominar todos nós.
Nacionalistas como Le Pen e Orbán insistem que querem apenas um tipo diferente de Europa. Mas a instituição central do projeto pós-1945 de europeus trabalhando em conjunto é a União Europeia, e seu futuro está agora em questão. Nada desta radicalização e desintegração é inevitável, mas para evitar isso, temos de compreender por que ainda vale a pena defender essa Europa, com todos os seus defeitos.
É 1942. Em um bonde passando pela Varsóvia ocupada pelos nazistas, senta-se um menino de 10 anos emaciado, faminto. Seu nome é Bronek. Todos o olham com curiosidade. Todos, ele tem certeza, veem que ele é um garoto judeu que fugiu do gueto através de um buraco na parede. Felizmente, ninguém o denuncia, e um passageiro polonês o avisa para tomar cuidado com um alemão sentado na seção marcada “apenas para alemães”. E assim Bronek sobrevive, enquanto seu pai é assassinado em um campo de extermínio nazista e seu irmão enviado para Bergen-Belsen.
Sessenta anos depois, eu estava andando com Bronek por um dos longos corredores do Parlamento de uma Polônia agora independente e ele disse com uma paixão silenciosa: “Para mim, a Europa é algo como uma essência platônica”.
Na vida do professor Bronisław Geremek, você tem a história essencial de como e porque a Europa chegou a ser o que é hoje. Tendo escapado dos horrores do gueto com sua mãe ele foi criado por um padrasto católico polonês. Portanto ele também tinha, em seus ossos, a herança cristã profunda e definidora da Europa. Então, aos 18 anos, ele se juntou ao Partido Comunista, acreditando que construiria um mundo melhor. Dezoito anos depois, despojado de suas últimas ilusões pela invasão soviética da Checoslováquia em 1968, renunciou ao mesmo partido em protesto.
Meu primeiro encontro com ele durante uma histórica greve de ocupação no estaleiro Lenin em Gdańsk, em agosto de 1980, quando o líder dos trabalhadores grevistas, Lech Walesa, pediu a Geremek para se tornar um conselheiro do movimento de protesto que logo seria batizado de Solidariedade. Dez anos depois, ele foi o ministro das Relações Exteriores que assinou o tratado com o qual a Polônia se tornou membro da Otan. Tendo sido instrumental em direcionar seu amado país para a União Europeia, ele se tornou membro do Parlamento Europeu, o mesmo para o qual estamos elegendo novos representantes este mês.
A história de Geremek é única, mas a forma básica do seu europeísmo é típica de três gerações de construtores da Europa que fizeram do nosso continente o que ele é hoje. Quando você olha como o argumento para a integração europeia foi promovido em vários países, cada história nacional parece muito diferente. Mas cave mais fundo e você encontrará o mesmo pensamento subjacente: “Estivemos em um lugar ruim, queremos estar em um melhor, e esse lugar é chamado Europa.”
Muitos eram os pesadelos dos quais esses países estavam tentando acordar. Para a Alemanha, foi a vergonha do regime criminoso que assassinou o pai de Bronek. Para a França, foi a humilhação da derrota e da ocupação; para a Grã-Bretanha, o relativo declínio político e econômico; para a Espanha, uma ditadura fascista; para a Polônia, uma comunista. Mas para todos eles, o molde do argumento pró-europeu era o mesmo.
Quando a crise financeira global chegou, ela expôs todas as falhas inerentes a uma zona do euro no meio do caminho. A crise da zona do euro deu início a uma nova onda de política radical e populista, tanto da esquerda quanto da direita. Os populistas culpam remotas e tecnocráticas elites liberais pelos sofrimentos do “povo”.
O caso da Europa de hoje é muito diferente daquele de meio século atrás. Na década de 70, pessoas na Grã-Bretanha, Espanha ou Polônia olharam para países como a França e a Alemanha Ocidental, chegando ao fim das três décadas de crescimento econômico do pós-guerra, na então muito menor Comunidade Europeia e disseram: “queremos o que eles estão tendo”. Hoje, o caso começa com a defesa de uma Europa que já existe, mas agora está ameaçada de desintegração. Se a construção fosse tão forte, poderíamos dizer, sem hesitação, “a Europa é ótima!” e nosso apoio não seria tão necessário.
A União Europeia hoje, como a Alemanha, a França ou a Grã-Bretanha, é uma entidade política madura, que não precisa tirar sua legitimidade de algum futuro utópico. Existe agora um argumento realista, até mesmo conservador para manter o que já foi construído – o que, naturalmente, significa também reformá-lo. Se preservarmos nos próximos 30 anos a UE de hoje, em seus atuais níveis de liberdade, prosperidade, segurança e cooperação, isso já seria uma conquista surpreendente.
Numa longa perspectiva histórica, esta é a melhor Europa que já tivemos. Esta União Europeia é muito mais do que apenas uma organização internacional. Então, eis o desafio mais profundo deste momento: nós realmente precisamos perder tudo isso para encontrá-lo novamente? Esse projeto de uma Europa melhor precisa realmente descer até a barbárie novamente antes que as pessoas se mobilizem para trazê-la de volta? À medida que lembranças pessoais como aquelas que inspiraram a paixão europeia de Bronisław Geremek desaparecem, a questão é saber se a memória coletiva pode nos permitir aprender as lições do passado sem ter de passar por tudo de novo nós mesmos.
Existem múltiplas variantes do pro-europeísmo em oferta de diferentes partidos nas eleições europeias deste mês, a maioria admitindo a necessidade de reformas. O que está claro é que, por uma vez e finalmente, estas eleições europeias referem-se realmente ao futuro da Europa. Em 28 países, novos partidos e velhos fantasmas competem pelos corações dos eleitores, com cerca de 100 milhões deles ainda indecisos sobre como votarão. O que é exigido agora, em todos os cantos do nosso continente, é a defesa do nosso lar comum europeu, não com armas, mas por meio das urnas. / Tradução de Claudia Bozzo
*É professor de estudos europeus na Universidade de Oxford e membro sênior da Hoover Institution, Stanford University
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