Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A intolerância entre nós, em 2018,
transformou-se em poder, por delegação e por usurpação
As muitas, diversificadas e crescentes
manifestações de intolerância no Brasil parecem não surpreender nem suas
vítimas nem seus espectadores passivamente cúmplices. Ao longo do tempo já
havíamos desenvolvido técnicas autoindulgentes de dissimulação da surpresa. É
uma das nossas características culturais autodefensivas mais complicadas, não
raro utilizada com a complacência e mesmo a conivência da vítima.
É que por trás de quem não tolera e,
também, de quem não é tolerado está a força acabrunhante do medo e uma certa
consciência de desigualdade social tida como legítima, que, pelo medo,
justifica nossa anômala, arcaica e antidemocrática dominação social e política.
Essa dominação se atualiza e se “moderniza”. O “bullying” dos valentões de
calça curta é manifestação deste nosso atraso.
O medo é historicamente estrutural na formação da sociedade brasileira. Numa carta de meados do século XVI ao rei de Portugal, o culto jesuíta padre Manoel da Nóbrega, referindo-se aos indígenas brasileiros, dizia-lhe que esta gente não podia ser sujeita senão pelo medo.
Os primeiros missionários procuraram nas
culturas indígenas um equivalente do Deus europeu para disseminar aqui a fé
cristã. Descobriram Tupã, dos entes do imaginário nativo o mais assustador, o
que mais pavor causava aos indígenas do tronco linguístico tupi. Sua expressão
mais significativa é o raio.
Só que, nos atributos culturais de Tupã,
nada se parece com o Deus cristão, a não ser com o que era Deus no século XVI,
quando cristãos de diferentes facções matavam-se entre si, queimavam-se vivos
em nome da fé, não toleravam a diferença representada pelos outros. Tinham em
comum a mesma “qualidade”: a violência e a intolerância. Do ponto de vista de
hoje, Deus não era deus. Ou era?
Tupã era apenas o dono do fogo. Tudo que é
relativo ao fogo, como os raios e suas decorrências, como o trovão, são de
Tupã.
De vários modos, o cristianismo difundido
no Brasil naquela época ainda não era cristão. Foi o fundamento da cultura
brasileira, na difusão do medo muito além de raios e trovões, que por aí se
espalhou. Esse medo tornou-se antropológica e sociologicamente estruturante,
fundamento dos diferentes ramos da nossa cultura.
Por trás de todo intolerante há não só
medo, mas também ignorância nos erros de interpretação da realidade e nas
decisões a ela relativas. A primeira grande ação propriamente militar da
República foi contra pobres camponeses do sertão da Bahia, na Guerra de
Canudos.
Os insurgentes do povoado de Canudos eram
no geral gente simples, religiosa, muito católica, que no temor do fim do
milênio e, portanto, do fim do mundo, agregou-se em torno do milenarismo
joaquimita. O da expectativa do advento do Império do Divino Espírito Santo, a
terceira era, um reino de alegria, fartura e justiça no lugar do medo, da
escravidão, da injustiça e da pobreza. Muita gente morreu nessa guerra do
canhão contra a fé.
A intolerância se renova ao longo da
diferenciação das circunstâncias históricas. Assume várias caras. Está em tudo
que desafia seja o poder do Estado, seja a presunção de poder dos régulos de
província, seja o poderio da dominação machista dos ignorantes e incapazes de
reconhecer o direito do outro de ser o que é.
Sua perpetuação apoia-se na segmentação que
a reduz à aplicação tópica em função de momentâneo e setorizado fator de medo e
da ira decorrente.
Um exemplo muito frequente é o do racismo.
A palavra “racismo” já é até mesmo invocada para designar o que racismo não é,
de modo a abranger todas as formas práticas de preconceito ativo e socialmente
destrutivo. “Racismo” é aqui assumido como a forma do preconceito apenas contra
o negro, quando é de fato contra a condição humana. Intolerância em relação ao
que humano é.
Os diferentes grupos vitimados por
preconceito o vivem segundo formas de sofrimento que lhes são peculiares. É que
o preconceito não é conceito nem é apenas categoria genérica. É seletivo e
covarde. Destaca na vítima o atributo estigmatizante que a fragiliza.
A intolerância se definiu quando o medo
social já não dispôs dos costumeiros meios de violência e sujeição próprios do
escravismo. Robusteceu-se como fator de disseminação de técnicas sociais de
discriminação, minimização e marginalização social. Instrumentos da
intolerância.
O Brasil moderno desmoderniza-se na
incapacidade de reconhecer que sem tolerância não há a igualdade contratual, o
que faz deste capitalismo o de uma economia anômala e anticapitalista. Não é à
toa que temos escravidão ainda hoje.
A intolerância entre nós, em 2018,
transformou-se em poder, por delegação e por usurpação. O país do futuro
tornou-se um país sem presente nem futuro.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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