sexta-feira, 29 de julho de 2022

Flávia Oliveira - A maior das urgências

O Globo

País vive alívio para abastecer o carro, sufoco para encher o estômago

No país de 33,1 milhões de pessoas em situação de fome e onde seis em cada dez habitantes enfrentam algum nível de insegurança alimentar, segundo o inquérito da Rede Penssan, índices de preços escancaram as prioridades oficiais. No IPCA-15 (IBGE), prévia da inflação oficial, enquanto os preços da gasolina (-5,01%) e do etanol (-8,16%) caíram por cortes tributários impostos pelo governo e pelo Legislativo, o leite longa vida disparou livremente 22,27%, desde meados de junho. No Rio, R$ 10 compram um litro de leite ou quase dois de gasolina. Alívio para abastecer o carro, sufoco para encher o estômago.

Os combustíveis estão mais baratos pelo corte no ICMS que Planalto e Congresso Nacional determinaram aos estados; à custa de diminuição nos orçamentos de Educação e Saúde, a alíquota do imposto caiu para 17% ou 18%. Houve também queda na cotação internacional da gasolina. Não por acaso, a Petrobras reduziu o preço nas refinarias por duas vezes em dez dias. O óleo diesel, que move o PIB e contamina a inflação pelo impacto nos custos de circulação das mercadorias, e o gás de cozinha, essencial aos mais pobres, já tinham tributação mais baixa; não foram afetados. Só neste mês, o diesel ficou 7,32% mais caro no IPCA-15. Desde o início do ano, o índice avançou 5,79%, enquanto a alimentação no domicílio disparou 11,42% — o dobro.

A insegurança alimentar nas famílias brasileiras se manifesta em diferentes dimensões. A mais dramática é a fome, quando falta comida. Mas há consequências nocivas, causadas pela dificuldade financeira, na supressão de refeições, na redução da quantidade consumida e na substituição de alimentos caros por baratos. De julho de 2021 a junho deste ano, dos 20 itens que mais subiram de preço nos mais de 370 pesquisados pelo IBGE para calcular o índice da meta de inflação, o IPCA, 16 são alimentos in natura ou minimamente processados: da mandioca (+35%) ao café (+62%), do leite (37%) ao tomate (67%), da cebola (60%) ao mamão (+74%), da cenoura (+84%) à batata-inglesa (+76%).

— Vários itens essenciais da dieta popular estão com alta elevada. Por isso o povo opta por alimentos ultraprocessados (caso de linguiça, nuggets, macarrão instantâneo e achocolatados), troca almoço por lanche, piora a alimentação. Os ultraprocessados subiram de forma mais coerente com o IPCA ou até abaixo. Assim, acabaram ficando mais baratos em relação aos mais saudáveis — analisa Arnoldo Campos, economista, ex-consultor da FAO e do Banco Mundial, especialista em agricultura familiar.

A escalada no preço da comida é consequência também de uma conjuntura internacional agravada pela guerra na Ucrânia, pela demanda aquecida no pós-pandemia, por problemas de produção e circulação global das commodities agrícolas. Por aqui, na última década, o governo desativou armazéns e abandonou os estoques reguladores, que ajudariam no abastecimento e na calibragem de preços dos alimentos. Reportagem da Agência Nossa mostrou que, no primeiro semestre, chegaram ao fim as reservas de trigo e despencaram as de milho, arroz e café; de mandioca não havia desde 2021. Paula Johns, socióloga que integra o comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, atribui a políticas equivocadas, inclusive tributárias, o desajuste nos preços da comida:

— Sobem mais os alimentos que deveriam ser mais acessíveis. Quanto pior para a saúde, mais incentivo fiscal recebem. As pessoas com mais vulnerabilidades, que já sofrem com as doenças crônicas não transmissíveis, ficam ainda mais fragilizadas.

Os efeitos são graves no curto, médio e longo prazos. A ingestão insuficiente de calorias subtrai capacidade de aprendizagem de crianças e jovens, produtividade dos adultos no trabalho, vida. Pressiona o sistema de saúde, destaca o ex-ministro da Saúde, médico e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP):

— De um lado, a fome, a desnutrição, o aumento de internações, principalmente de crianças, impactando os serviços de saúde. Outra face da insegurança alimentar é a piora dos hábitos da população, exatamente pela inflação dos alimentos in natura e pelo preço do gás de cozinha. Famílias mais pobres estão migrando para alimentos ultraprocessados, que levam à ingestão de mais gordura, sal e conservantes. Isso provoca ou agrava doenças crônicas, como obesidade, problemas cardiovasculares e até câncer.

A espiral da insegurança alimentar no Brasil é criminosa do ponto de vista humano, irresponsável no aspecto político e estúpida sob a ótica da responsabilidade fiscal. Precisa ser combatida. E já.

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