DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em artigo na "Folha de S. Paulo" de 22 de março, Hélio Schwartsman examina trabalhos recentes de especialistas estadunidenses em psicologia e ciência cognitiva (especialmente George Lakoff, de quem me ocupei aqui há algum tempo, a propósito de conselhos dados à campanha de Obama), os quais demonstrariam que, na escolha dos candidatos pelos eleitores, "emoções são significativamente mais importantes que a razão". A ideia de metáforas ou de "framing" ou "enquadramento" (esta última devida, na verdade, ao trabalho anterior de outros estudiosos), com seu substrato de conexões neuronais, envolvem a percepção dos mesmos objetos com sentimentos positivos ou negativos que condicionariam fortemente as decisões, e a possibilidade de racionalidade na política seria posta em xeque, bem como, eventualmente, a viabilidade da própria democracia.
A discussão de Schwartsman, de maneira afim às ênfases de Lakoff, não considera as ramificações sociológicas do tema. A questão da "racionalidade" do eleitor, vista em ligação com as informações de que dispõe ou sua sofisticação intelectual geral e com o condicionamento por fatores de estratificação social, é há muito tomada por especialistas de ciência política ou sociologia dedicados ao processo político-eleitoral. Provavelmente o nome de maior destaque a ser associado a uma posição restritiva a respeito do assunto é o de Philip Converse: desde os anos 1960, Converse aponta as deficiências de "estruturação ideológica", e a dificuldade de situar-se diante de rótulos como "progressista" e "conservador" ou "esquerda" e "direita", em parcelas substanciais não apenas do eleitorado dos Estados Unidos, país com respeito ao qual isso talvez soe menos surpreendente, mas mesmo do eleitorado francês. E sua perspectiva básica, como revelam balanços de que ele mesmo participa em publicações recentes (como o "Oxford Handbook of Political Behavior", de 2007, editado por R. J. Dalton e H.-D. Klingemann), resiste bem a revisões de seu trabalho que outros têm procurado fazer.
Uma área específica em que surge o tema da informação e da racionalidade do eleitorado diz respeito à política externa, que me tem interessado aqui. No mesmo volume de Dalton e Klingemann, R. Eichenberg trata de avaliar, em perspectiva transnacional, os embaraços e avanços no estudo da opinião dos cidadãos sobre a política externa. Sua avaliação mostra "disposições" gerais da opinião pública ("moods", como as chama J. Stimson) que surgiriam em diferentes contextos nacionais e internacionais e cujos vaivéns podem ser relacionados de forma significativa a considerações relevantes em qualquer momento dado. Esse padrão de "movimentos estáveis e sensatos" da opinião dos cidadãos servem de base à tese central de Eichenberg: enquanto haveria, até os anos 1980, um consenso entre os estudiosos segundo o qual um público desinformado e desinteressado seria "quase por definição incapaz de produzir uma opinião pública ´racional´ em questões de política externa", estudos mais recentes em vários países, com métodos supostamente mais apropriados, permitiram falar agora de uma opinião pública não só racional por sua estabilidade e coerência, mas também plausível, isto é, cujas variações seriam respostas razoáveis a ocorrências no ambiente global ou a políticas governamentais.
Apesar dos supostos avanços metodológicos mencionados, em particular o empenho das pesquisas em diversificar tanto quanto possível as questões com referência às quais se procuraria apreender a "opinião pública", o balanço de Eichenberg tampouco destaca, bem como os estudos de que trata, a provável importância da dimensão relativa à estratificação social para o tema geral da "racionalidade". É notável, por exemplo, que haja a assimilação tranquila entre a ideia de "opinião pública" e o que resulta de pesquisas com amostras do eleitorado em geral, sem que qualquer informação seja dada sobre possíveis variações na "racionalidade" de diferentes categorias socioeconômicas (ou educacionais) de eleitores. Em síntese, qual será a contribuição do eleitorado mais pobre e sabidamente mais politicamente desatento, em particular quanto aos temas de política internacional e política externa, na conformação dessa "nova" opinião pública vista como sensata e racional? No caso do Brasil da atualidade, por exemplo, é patente o contraste entre as disposições do eleitorado popular majoritário e o que costumamos designar por "opinião pública", conformada amplamente pela elite de maior interesse político e informação e pela imprensa que politicamente se dirige sobretudo a ela.
Seja como for, uma constatação particular produzida em pesquisas do próprio Eichenberg me parece de grande interesse. Fechei minha última coluna com a menção ao imperativo de construção de uma legalidade transnacional e mundial, eventualmente capaz de mitigar o peso das meras assimetrias de poder nacional no terreno baldio em que as relações internacionais sempre se desenrolam. O exemplo mais dramático da importância desse aspecto na história recente pode ter sido a Guerra do Golfo, talvez a guerra mais "legal" jamais ocorrida, em que, não obstante os elemenos de "realkpolitik" certamente presentes, o respaldo legimitador da ONU permitiu aos Estados Unidos exercerem poder de polícia diante da flagrante violação das normas internacionais pelo Iraque de Saddam Hussein. Pois os dados de Eichenberg mostram os níveis inéditos de aprovação com que a ação militar contou então em populações de países muçulmanos (Barein, Oman, Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes Unidos): o nível de aprovação oscila entre 50% e 60% em média, contra médias correspondentes que não vão além de 25% em outras circunstâncias. "Enquadramento", sem dúvida. Mas não parece haver por que contrapor, nele, a adesão a normas, e seu necessário componente emocional, à racionalidade.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Em artigo na "Folha de S. Paulo" de 22 de março, Hélio Schwartsman examina trabalhos recentes de especialistas estadunidenses em psicologia e ciência cognitiva (especialmente George Lakoff, de quem me ocupei aqui há algum tempo, a propósito de conselhos dados à campanha de Obama), os quais demonstrariam que, na escolha dos candidatos pelos eleitores, "emoções são significativamente mais importantes que a razão". A ideia de metáforas ou de "framing" ou "enquadramento" (esta última devida, na verdade, ao trabalho anterior de outros estudiosos), com seu substrato de conexões neuronais, envolvem a percepção dos mesmos objetos com sentimentos positivos ou negativos que condicionariam fortemente as decisões, e a possibilidade de racionalidade na política seria posta em xeque, bem como, eventualmente, a viabilidade da própria democracia.
A discussão de Schwartsman, de maneira afim às ênfases de Lakoff, não considera as ramificações sociológicas do tema. A questão da "racionalidade" do eleitor, vista em ligação com as informações de que dispõe ou sua sofisticação intelectual geral e com o condicionamento por fatores de estratificação social, é há muito tomada por especialistas de ciência política ou sociologia dedicados ao processo político-eleitoral. Provavelmente o nome de maior destaque a ser associado a uma posição restritiva a respeito do assunto é o de Philip Converse: desde os anos 1960, Converse aponta as deficiências de "estruturação ideológica", e a dificuldade de situar-se diante de rótulos como "progressista" e "conservador" ou "esquerda" e "direita", em parcelas substanciais não apenas do eleitorado dos Estados Unidos, país com respeito ao qual isso talvez soe menos surpreendente, mas mesmo do eleitorado francês. E sua perspectiva básica, como revelam balanços de que ele mesmo participa em publicações recentes (como o "Oxford Handbook of Political Behavior", de 2007, editado por R. J. Dalton e H.-D. Klingemann), resiste bem a revisões de seu trabalho que outros têm procurado fazer.
Uma área específica em que surge o tema da informação e da racionalidade do eleitorado diz respeito à política externa, que me tem interessado aqui. No mesmo volume de Dalton e Klingemann, R. Eichenberg trata de avaliar, em perspectiva transnacional, os embaraços e avanços no estudo da opinião dos cidadãos sobre a política externa. Sua avaliação mostra "disposições" gerais da opinião pública ("moods", como as chama J. Stimson) que surgiriam em diferentes contextos nacionais e internacionais e cujos vaivéns podem ser relacionados de forma significativa a considerações relevantes em qualquer momento dado. Esse padrão de "movimentos estáveis e sensatos" da opinião dos cidadãos servem de base à tese central de Eichenberg: enquanto haveria, até os anos 1980, um consenso entre os estudiosos segundo o qual um público desinformado e desinteressado seria "quase por definição incapaz de produzir uma opinião pública ´racional´ em questões de política externa", estudos mais recentes em vários países, com métodos supostamente mais apropriados, permitiram falar agora de uma opinião pública não só racional por sua estabilidade e coerência, mas também plausível, isto é, cujas variações seriam respostas razoáveis a ocorrências no ambiente global ou a políticas governamentais.
Apesar dos supostos avanços metodológicos mencionados, em particular o empenho das pesquisas em diversificar tanto quanto possível as questões com referência às quais se procuraria apreender a "opinião pública", o balanço de Eichenberg tampouco destaca, bem como os estudos de que trata, a provável importância da dimensão relativa à estratificação social para o tema geral da "racionalidade". É notável, por exemplo, que haja a assimilação tranquila entre a ideia de "opinião pública" e o que resulta de pesquisas com amostras do eleitorado em geral, sem que qualquer informação seja dada sobre possíveis variações na "racionalidade" de diferentes categorias socioeconômicas (ou educacionais) de eleitores. Em síntese, qual será a contribuição do eleitorado mais pobre e sabidamente mais politicamente desatento, em particular quanto aos temas de política internacional e política externa, na conformação dessa "nova" opinião pública vista como sensata e racional? No caso do Brasil da atualidade, por exemplo, é patente o contraste entre as disposições do eleitorado popular majoritário e o que costumamos designar por "opinião pública", conformada amplamente pela elite de maior interesse político e informação e pela imprensa que politicamente se dirige sobretudo a ela.
Seja como for, uma constatação particular produzida em pesquisas do próprio Eichenberg me parece de grande interesse. Fechei minha última coluna com a menção ao imperativo de construção de uma legalidade transnacional e mundial, eventualmente capaz de mitigar o peso das meras assimetrias de poder nacional no terreno baldio em que as relações internacionais sempre se desenrolam. O exemplo mais dramático da importância desse aspecto na história recente pode ter sido a Guerra do Golfo, talvez a guerra mais "legal" jamais ocorrida, em que, não obstante os elemenos de "realkpolitik" certamente presentes, o respaldo legimitador da ONU permitiu aos Estados Unidos exercerem poder de polícia diante da flagrante violação das normas internacionais pelo Iraque de Saddam Hussein. Pois os dados de Eichenberg mostram os níveis inéditos de aprovação com que a ação militar contou então em populações de países muçulmanos (Barein, Oman, Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes Unidos): o nível de aprovação oscila entre 50% e 60% em média, contra médias correspondentes que não vão além de 25% em outras circunstâncias. "Enquadramento", sem dúvida. Mas não parece haver por que contrapor, nele, a adesão a normas, e seu necessário componente emocional, à racionalidade.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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