DEU NO VALOR ECONÔMICO
Falei aqui há pouco, a propósito do tema geral da "conciliação" em política, de avaliações ambíguas a respeito da socialdemocracia. Por um lado, de um ponto de vista socialista radical, ela é há muito denunciada (e no Brasil era objeto de anátema, ainda há pouco, no PT) como capitulação diante de propostas de conciliação de intuitos manipuladores e fraudulentos. Por outro lado, há o fato de que a moderação socialdemocrática redundou em distribuição e inegável aumento da igualdade, com acesso popular a bens de saúde, educação e seguridade social, além de variadas garantias econômicas.
Na linha das críticas vindas da esquerda, Perry Anderson a caracterizou recentemente como "a política das expectativas em permanente diminuição", em que, com a afirmação do neoliberalismo, a socialdemocracia como movimento acabaria renunciando não só ao reformismo que já a marcava antes, como via para o socialismo alternativa à revolução, mas também ao próprio socialismo como meta. Já na linha das releituras e reavaliações realistas que o neoliberalismo triunfante imporia, tivemos, por exemplo (além da famosa e confusa "Terceira Via" de Tony Blair e Anthony Giddens), o importante estudo de Fritz W. Sharpf sobre a socialdemocracia europeia ("Crisis and Choice in European Social Democracy", publicado em inglês em 1991), em que se lamentava a ênfase socialdemocrática nos salários e na intervenção social por parte do Estado e se propunha como desejável a ênfase na redistribuição da propriedade e da riqueza, rumo a um "capitalismo popular" e em convergência com a ideia de uma "democracia de proprietários" de que outros andaram falando.
Naturalmente, seja o que for que caiba dizer de positivo a respeito dessa forma alternativa de redistribuição e da conexão do tema geral da distribuição com o eventual equilíbrio eficiente entre políticas econômicas orientadas pela demanda e pela oferta, ao fato do êxito distributivo da socialdemocracia veio juntar-se o fato das crises e do desastre do retorno à aposta irrestrita no liberalismo. E, se a enorme intervenção do Estado se tornou economicamente imperiosa, é notável observar não só que o "welfare state" se manteve largamente incólume em seu apoio nos países europeus, além de mostrar-se agora em expansão nos Estados Unidos, mas também que, contra o diagnóstico de Sharpf da "derrota irreversível por toda parte" dos social-democratas em sua luta distributiva, até mesmo em países como o nosso políticas socialdemocráticas resultam, não obstante as condições adversas, em significativa redistribuição.
Recentemente, a imprensa internacional tem celebrado a figura de Tony Judt, historiador inglês com diversificadas raízes intelectuais europeias ligado presentemente à New York University e autor de trabalhos de grande erudição e argúcia (alguns dos quais publicados no Brasil, incluído o notável "Pós-Guerra", uma história da Europa no pós-1945). No momento, dois fatos justificam que Judt receba atenção especial: em primeiro lugar, o de que ele, com não mais de 62 anos, encara a morte próxima em consequência de doença neurológica que aos poucos o priva da capacidade de mover-se e da própria fala; em segundo lugar, o de que sua provação não tem impedido o incansável esforço - em palestras, artigos e mesmo num livro que acaba de aparecer - de persuasão intelectual sobre a necessidade de que se apreciem adequadamente as conquistas da socialdemocracia, não obstante a disposição de conceder realisticamente o que ela ficaria a dever a uma visão exigente da boa sociedade que em particular certos setores da esquerda possam ter entretido como ideal. Quanto a essa defesa da socialdemocracia, é talvez especialmente útil como apresentação breve e eloquente das ideias de Judt a palestra pronunciada na New York University em outubro do ano passado (transcrita na "New York Review of Books" de 17 de dezembro) e dirigida ao público estadunidense às voltas com denúncias e disputas em torno de ameaças "socialistas" do governo Obama.
De minha parte, creio que vale acrescentar um ponto de vista contido em posições que tenho martelado: o de que não há por que opor, relativamente à socialdemocracia, a apreciação realista dos fatos a princípios normativos ambiciosos. Pois, mais que a capitulação realista que indispõe Perry Anderson, há nela valores importantes a defender - e a equilibrar na tensão que envolvem. De um lado, o valor da autonomia e da busca dos interesses ou objetivos pessoais de qualquer natureza (incluídos os que se podem alcançar com a iniciativa pessoal no plano econômico, ou seja, no mercado), valor este que se destaca na dimensão "civil" e liberal do ideal contemporâneo de cidadania. De outro lado, o valor da solidariedade e da responsabilidade coletiva, correspondente à dimensão "cívica" daquele mesmo ideal.
Finalmente, vindo ao Brasil, cabe também registrar que, à parte as confusões no enfrentamento entre um partido que traz no nome a suposta adesão à socialdemocracia como aspiração e um outro levado a ela na confluência problemática de aspirações e circunstâncias, a socialdemocracia acaba representando o leito inevitável de nosso processo político-eleitoral. E tornando grandemente irrelevante o conflito entre esquerda e direita nas feições que assumiu longamente entre nós.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Falei aqui há pouco, a propósito do tema geral da "conciliação" em política, de avaliações ambíguas a respeito da socialdemocracia. Por um lado, de um ponto de vista socialista radical, ela é há muito denunciada (e no Brasil era objeto de anátema, ainda há pouco, no PT) como capitulação diante de propostas de conciliação de intuitos manipuladores e fraudulentos. Por outro lado, há o fato de que a moderação socialdemocrática redundou em distribuição e inegável aumento da igualdade, com acesso popular a bens de saúde, educação e seguridade social, além de variadas garantias econômicas.
Na linha das críticas vindas da esquerda, Perry Anderson a caracterizou recentemente como "a política das expectativas em permanente diminuição", em que, com a afirmação do neoliberalismo, a socialdemocracia como movimento acabaria renunciando não só ao reformismo que já a marcava antes, como via para o socialismo alternativa à revolução, mas também ao próprio socialismo como meta. Já na linha das releituras e reavaliações realistas que o neoliberalismo triunfante imporia, tivemos, por exemplo (além da famosa e confusa "Terceira Via" de Tony Blair e Anthony Giddens), o importante estudo de Fritz W. Sharpf sobre a socialdemocracia europeia ("Crisis and Choice in European Social Democracy", publicado em inglês em 1991), em que se lamentava a ênfase socialdemocrática nos salários e na intervenção social por parte do Estado e se propunha como desejável a ênfase na redistribuição da propriedade e da riqueza, rumo a um "capitalismo popular" e em convergência com a ideia de uma "democracia de proprietários" de que outros andaram falando.
Naturalmente, seja o que for que caiba dizer de positivo a respeito dessa forma alternativa de redistribuição e da conexão do tema geral da distribuição com o eventual equilíbrio eficiente entre políticas econômicas orientadas pela demanda e pela oferta, ao fato do êxito distributivo da socialdemocracia veio juntar-se o fato das crises e do desastre do retorno à aposta irrestrita no liberalismo. E, se a enorme intervenção do Estado se tornou economicamente imperiosa, é notável observar não só que o "welfare state" se manteve largamente incólume em seu apoio nos países europeus, além de mostrar-se agora em expansão nos Estados Unidos, mas também que, contra o diagnóstico de Sharpf da "derrota irreversível por toda parte" dos social-democratas em sua luta distributiva, até mesmo em países como o nosso políticas socialdemocráticas resultam, não obstante as condições adversas, em significativa redistribuição.
Recentemente, a imprensa internacional tem celebrado a figura de Tony Judt, historiador inglês com diversificadas raízes intelectuais europeias ligado presentemente à New York University e autor de trabalhos de grande erudição e argúcia (alguns dos quais publicados no Brasil, incluído o notável "Pós-Guerra", uma história da Europa no pós-1945). No momento, dois fatos justificam que Judt receba atenção especial: em primeiro lugar, o de que ele, com não mais de 62 anos, encara a morte próxima em consequência de doença neurológica que aos poucos o priva da capacidade de mover-se e da própria fala; em segundo lugar, o de que sua provação não tem impedido o incansável esforço - em palestras, artigos e mesmo num livro que acaba de aparecer - de persuasão intelectual sobre a necessidade de que se apreciem adequadamente as conquistas da socialdemocracia, não obstante a disposição de conceder realisticamente o que ela ficaria a dever a uma visão exigente da boa sociedade que em particular certos setores da esquerda possam ter entretido como ideal. Quanto a essa defesa da socialdemocracia, é talvez especialmente útil como apresentação breve e eloquente das ideias de Judt a palestra pronunciada na New York University em outubro do ano passado (transcrita na "New York Review of Books" de 17 de dezembro) e dirigida ao público estadunidense às voltas com denúncias e disputas em torno de ameaças "socialistas" do governo Obama.
De minha parte, creio que vale acrescentar um ponto de vista contido em posições que tenho martelado: o de que não há por que opor, relativamente à socialdemocracia, a apreciação realista dos fatos a princípios normativos ambiciosos. Pois, mais que a capitulação realista que indispõe Perry Anderson, há nela valores importantes a defender - e a equilibrar na tensão que envolvem. De um lado, o valor da autonomia e da busca dos interesses ou objetivos pessoais de qualquer natureza (incluídos os que se podem alcançar com a iniciativa pessoal no plano econômico, ou seja, no mercado), valor este que se destaca na dimensão "civil" e liberal do ideal contemporâneo de cidadania. De outro lado, o valor da solidariedade e da responsabilidade coletiva, correspondente à dimensão "cívica" daquele mesmo ideal.
Finalmente, vindo ao Brasil, cabe também registrar que, à parte as confusões no enfrentamento entre um partido que traz no nome a suposta adesão à socialdemocracia como aspiração e um outro levado a ela na confluência problemática de aspirações e circunstâncias, a socialdemocracia acaba representando o leito inevitável de nosso processo político-eleitoral. E tornando grandemente irrelevante o conflito entre esquerda e direita nas feições que assumiu longamente entre nós.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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