- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A denúncia de Moro de interferência política na PF aponta que Bolsonaro entende o poder público como um negócio de família
A ascensão do populismo em várias democracias veio também acompanhada pelo desprezo às instituições políticas e ao conhecimento científico. Ambas fruto de uma estratégia importante: no primeiro caso, visando reduzir mecanismos de controle dos poderes e de “accountability” governamental. No segundo, o desprezo pela ciência incentiva narrativas, meias verdades e informações falsas. Controle da informação é poder, mas nas democracias, com suas instituições educacionais, científicas e de difusão como jornais, revistas, blogs trabalhando em liberdade, o ambiente para os populistas fica mais difícil.
Para Donald Trump, Viktor Orbán e Jair Bolsonaro, a solução encontrada não poderia ser mais simples e direta: negar a validade do conhecimento para erigir um mundo sem essas amarras, dialogar diretamente com o “povo” (sic!) e reinventar a forma de gerar informação para as sociedades.
A versão tropicalizada dessa onda destrutiva tem no presidente Bolsonaro um exemplar ainda mais profundo, pois ela faz também pouco caso da filosofia política que esteve no centro do debate do amadurecimento das democracias ocidentais desde o século XVIII.
Ainda que o utilitarismo tenha perdido força como referência para o mundo capitalista, suas teses foram defendidas pelas classes dominantes do século XIX como forma de maximizar as preferências e as liberdades individuais. Conforme dois expoentes dessa tradição, Jeremy Bentham e John Stuart Mill, um dos fundadores do liberalismo, governos devem maximizar a felicidade da maioria. A ressalva é que esta teoria nasce numa época de preconceitos atrozes, moralismos e perseguições. O utilitarismo não julgava os meios, mas os resultados, o que se apresentou como uma verdadeira revolução no pensamento da época.
A sofisticação do pensamento utilitarista foi mais longe com Mill, ao associar a busca da felicidade geral (utilidade) com a liberdade. Choques de vontades podem existir e, assim, como arbitrar? A resposta está no princípio do dano: somos livres para fazermos o que desejamos desde que não causemos prejuízos a ninguém. Liberdade individual como base para a maior utilidade social. Nesse sentido, sustenta uma visão chamada de consequencialista: sempre avaliamos os efeitos de nossas ações, de sorte que há uma moralidade no que fazemos ao buscar calibrar a utilidade que buscamos com liberdade que exercemos.
Por suposto, essa convivência é complicada. Se a função é maximizar a utilidade do maior número, será que minorias e indivíduos devem pagar essa conta? É aceitável violar regras com a justificativa de ganhos coletivos maiores? Cálculos de custo versus benefícios baseados na premissa de que o valor monetário de uma vida humana não pode ser maior que a sobrevivência da comunidade podem ser falsas escolhas de Sofia que advém dos “trade offs” postos pelos dilemas morais.
Contudo, se o bem-estar coletivo for a métrica, e a maximização de ganhos conviver com a minimização de perdas, “why not”? De fato, pragmatismo social e moralidade podem não ser boas conselheiras uma para a outra. Onde reside a régua da correção? Onde está o justo meio, lembrando de Aristóteles.
O presidente Bolsonaro já tem a resposta para esses dilemas: em tempos de guerra “vai morrer gente”, mas há dois problemas a serem enfrentados: o vírus e o desemprego. Onde está a baliza da solução para essa difícil equação: na vida ou na economia? O utilitarismo vulgar do presidente tem a resposta pronta: o remédio contra a covid-19 não pode ser mais custoso do que sua cura, pois a sociedade pode “perder” dessa forma com a recessão econômica e o desemprego.
Logo, ao trabalho, pois será preciso o sacrifício de alguns para a maior utilidade possível da coletividade! Nessa cruzada, o presidente poderia ter aprendido que filosofia utilitarista defende que prazer e felicidade, objetivos máximos da busca individual, devem evitar sofrimento. A dor é uma desutilidade social e as mortes provocadas pelo vírus são a tradução mais concreta disso.
Assim, o bem-estar geral merece esse sacrifício? Na filosofia política do bolsonarismo a resposta é inequívoca: tem que enfrentar essa “gripezinha” como homem, e não como moleque; então, vá trabalhar e morra pelo bem-estar comum! Na sua matemática vulgar e pragmática, os benefícios buscados são apenas aqueles que favorecem seu projeto político, enquanto os custos em termos de perdas de vidas são uma consequência da função de utilidade que representa seu objetivo de poder. Convenhamos, o utilitarismo na pena de um Mill ou um Bentham merecia uma tradução melhor!
Os esforços do presidente por reinventar a filosofia política do século XX não param por aí. Também o libertarianismo, cuja grande expressão foi o filósofo americano Robert Nozick, não vem sendo poupado de ser reinterpretado de modo a quase torná-la uma corrente adepta da desobediência civil. Anarquia que nunca foi pregada por Nozick e nem tampouco proibiria o “golden shower”. Se os governadores pregam a quarentena, vamos às ruas em defesa de nossa liberdade! Isso até pode ser razoável para a patranha imoral que sai às ruas em carreata, com seus carros fechados para o vírus não entrar, para defender a volta ao trabalho... dos outros.
Mas quando isso se torna um ato praticado pelo presidente contrariamente a atitudes adotadas por outros governos, e contra a legislação votada e proposta pelo seu próprio governo, a concepção libertária é deturpada: não há mais limites a serem respeitados em nome da liberdade, como se todos vivessem em sua própria bolha.
Um argumento basilar do libertarianismo é a posse de si mesmo, cuja origem está em John Locke, e uma visão extremada de liberdade negativa na qual devemos estar livres da interferência de terceiros, “a liberdade de”. Esta faz oposição à “liberdade para”, ou a liberdade positiva, central para as teorias contemporâneas de justiça como de John Rawls e Ronald Dworkin. No limite, o meu direito de escolha não pode ser tolhido por nenhuma forma constituída de poder, pois a vontade individual pode ser falsificada.
Nem mesmo a maximização do bem-estar maior se salva das críticas, pois ela pode ser construída às custas da liberdade individual. A genuína possibilidade de exercer meus direitos deve ser proporcional ao tamanho do Estado, de forma que muitos serviços públicos podem ser privatizados, a exemplo da saúde, educação e assistência social. Não deve ser à toa a contrariedade do governo para implementar medidas de mitigação social gerada pela covid-19...
Para o libertarianismo, somos livres para fazermos as escolhas de vida que desejarmos. Afinal, indivíduos são racionais e portadores de preferências que definem suas escolhas. A cada um conforme suas possibilidades, de cada um conforme suas opções.
No entanto, a reinvenção da filosofia política bolsonarista vem caminhando a passos largos para superar mesmo essa visão extremada da liberdade negativa. O libertarianismo é defensor do Estado mínimo e contrário a qualquer tipo de “paternalismo” que tolha as escolhas pessoais. Contudo, não se trata de uma volta ao Estado de natureza hobbesiano no qual, na ausência de parâmetros mínimos de segurança, os seres humanos matavam para não morrer.
A defesa do fim do isolamento horizontal que vem sendo proposta pelo presidente é, ao mesmo tempo, uma aposta libertária em favor da liberdade negativa, mas também um salto no escuro em direção ao estado de natureza. O estímulo para que todos exerçam suas liberdades - de locomoção, de trabalho ou qualquer outra - é uma contradição fundamental com o libertarianismo: a posse de nós mesmos pode, nesse caso, ser a nossa própria perda, pois muitos morrerão.
A indução para que essas escolhas individuais prevaleçam ultrapassa a barreira do Estado mínimo ao deslegitimar instituições políticas e governos. Nessa batida, o caminho para o estado de natureza não estará tão longe. Vá lá que você concorde que os libertários podem ser “too much” para ser defendidos, mas a filosofia política do bolsonarismo consegue nos oferecer um panorama mais distorcido, regressivo e cruel do que se poderia conceber em Nozick e seus discípulos.
Não menos importante, a peculiar apropriação, pelo bolsonarismo, do republicanismo. Nessa forma de Estado prevalece o interesse público sobre as vontades privadas, mas a busca do bem comum não está dada, pois é objeto de constante educação para o exercício responsável de direitos e deveres de cidadãs e cidadãos. Liberdade é o resultado de aceitar limites iguais para todos, sem distinção alguma de cunho social, posição política ou religião. Cabe ao Estado conduzir o crescimento da comunidade, visto que este é o guardião de valores comunitários: igualdade, honestidade, benevolência, moderação, sobriedade, solidariedade e compromisso coletivo. Governantes não podem ser extravagantes, egoístas e cínicos, pois sendo a autoridade instituída, seu comportamento serve de referência coletiva.
Pedir à filosofia política do bolsonarismo que promova a consciência cívica dos cidadãos seria, no mínimo, uma contradição. O republicanismo busca o que nos une e a liberdade apoia-se na solidariedade em nome de interesses coletivos. Não por acaso, os deveres antecedem e estão acima dos direitos, pois estes encontram seu limite nas políticas de bem-estar geral.
No mundo bolsonarista, os direitos vêm antes e há poucos deveres quando o presidente argumenta que ninguém vai lhe tolher o direito de ir e vir quando o bom senso defende o isolamento horizontal.
Se a máxima autoridade republicana dá esse exemplo, como cobrar deveres cívicos da sociedade? No republicanismo bolsonarista não existe nenhuma forma de controle social e político, sua noção de solidariedade é inexistente, não há igualdade se o presidente está acima de cada um de nós e, ao fim e ao cabo, seu compromisso com a coletividade é nulo. Falta de moderação e coerência, pois a República é uma para o “povo”, de quem tanto fala o presidente, e outra para ele e sua família.
A denúncia feita por Sergio Moro de interferência política na Polícia Federal aponta que Bolsonaro entende o poder público como um negócio de família. O cinismo da liderança política, valor caro ao republicanismo, não compõe seu etos sobre a política, o que ajuda corromper o comportamento virtuoso dos cidadãos que sustentam a República. O familismo que sobrepõe interesses privados aos coletivos solapa a República. O presidente não entende isso, pois, sempre está disposto a dar o filé-mignon para seus filhos, como ocorreu na tentativa de nomear o deputado Eduardo Bolsonaro para embaixador nos Estados Unidos.
Práticas nepotistas fragilizam a confiança social necessária para manter as instituições republicanas. Ao dizer que encarna a Constituição e nomeia um delegado amigo da família para o comando da Polícia Federal a República perde força.
Ainda podemos mencionar Carl Schmitt, que tomava o conceito do político como uma relação amigo-inimigo. Bolsonaro desvirtua mais um pensador, e cria os inimigos “fake”, sendo Sergio Moro o último e mais rumoroso. Acuado e sem projeto de país, sem o PT para usar de “sparring”, o presidente se aproxima do Centrão em busca de apoio, espirra Moro do governo no meio de uma pandemia para conquistá-los e também evitar o prosseguimento de investigações que envolvem seus filhos. O presidente sofreu derrotas na Câmara e no STF, numa demonstração de que a teia das instituições republicanas impede que ele aja de forma imperial e autocrática. Todas viraram suas inimigas, e não formas de controle normais em democracias, pois em sua visão autoritária e plebiscitária da política, entre o presidente “amigo” e o “povo” não podem existir interferências que sejam consideradas inimigas.
Não resta dúvida, a filosofia política do bolsonarismo não aprendeu nada. Pior, como todos os demais populistas e tiranetes que vêm brotando mundo afora, talvez nem queira aprender. Na escola, maus alunos são reprovados. Na política, reprovar maus governantes é uma tarefa de utilidade social, de exercício de liberdade individual e de defesa da vida cívica com um mínimo de solidariedade. Uma dica para esse roteiro: leiam os clássicos, leiam todos! Há luz no fim do túnel contra a vulgarização promovida pela filosofia política do bolsonarismo.
*Eduardo José Grin é professor da Escola de Administração de Empresas de SP/ FGV e Lilian Furquim de C. Andrade é professora da Escola de Economia de SP/ FGV
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