Revista Veja
Para um bom número de pessoas, ajudar a pôr fogo no circo se tornou um bom negócio. Mas um certo cansaço da gritaria já começa a se fazer sentir
A polarização está em toda parte. Os grupos
de WhatsApp se tornaram uma empreitada difícil. Você entra em um grupo para
discutir a obra de Santo Agostinho e uma semana depois passa a receber, de hora
em hora, figurinhas, vídeos e “alertas” sobre Lula ou Bolsonaro. Nada contra, é
um direito das pessoas. De certo modo, direito ao trivial. As coxas do Lula, o
fumacê dos tanques em Brasília, o último golpe dado por não sei quem, tudo isso
que parece divertir nosso cotidiano político, mas talvez não devesse.
Há um lado mais complicado nisso tudo. Além
de explodir amizades e partidos (o Novo está aí para mostrar), a polarização
obsessiva traz um problema à governabilidade do país. Gera um clima de
incerteza que desestimula investimentos, prejudica a formação de consensos
mínimos para reformas e, o mais importante, afeta o funcionamento das
instituições, gerando incentivos para que seus titulares entrem em um tipo de
jogo que jamais deveriam entrar. Nem aí para essas coisas, nos preparamos para
assistir a mais dois dias de comícios, um “em defesa das liberdades” e outro
“contra o fascismo”, num exercício de grandiloquência a gosto pela toxina
política poucas vezes visto por estas bandas.
A polarização atende a um tipo de mercado. Diante do avanço dos meios digitais, parte da mídia abre mão do distanciamento jornalístico e passa a atender nichos de opinião que lhe garantam uma audiência fiel. Ganha espaço o jornalista-militante, o blogueiro, o youtuber, em múltiplas plataformas digitais. A regra é simples, como li por esses dias: “se você não causar”, se não for capaz de atiçar os instintos de uma tribo política, “não terá audiência”. Vale o mesmo para políticos, em busca de repercussão fácil. E em menor escala para magistrados, policiais ou promotores, alçados a líderes de opinião. Criou-se uma economia da polarização. Para um bom número de pessoas, ajudar a pôr fogo no circo se tornou um bom negócio.
Algumas coisas já sabemos sobre a
hiperpolarização. Uma delas é que ela sempre transborda, fazendo com que a
lógica da política inunde as demais áreas da vida. As salas de aula, exposições
de arte, o mercado de trabalho. E as amizades, por óbvio, que começam a balançar
porque o João vai à Paulista no dia 7 e a Catarina, no dia 12. Vem daí o traço
do exagero. O debate feito à moda do espantalho. A ideia de que o outro lado é
“inadmissível” e nós somos a “própria democracia”, como ouvi, curiosamente, de
dois tipos, um governista, outro antigovernista, e ambos bastante
autoconfiantes, dias atrás.
Outra coisa que sabemos é que a polarização aguda está longe de ser um fenômeno da base da sociedade. Seu ecossistema é o da minoria barulhenta, que dá o tom do debate público, em especial na internet. A democracia digital se tornou um gigantesco mecanismo de seleção adversa. Em vez de selecionar gente ponderada para liderar, disposta a gerar consensos e resolver problemas (pasmem: é para isso que a política foi inventada), ela tende a premiar o bufão ou o “grande moralista”. O senador que lacra na CPI, o deputado que bomba detonando o STF (supondo que não irá preso), e assim por diante.
O resultado disso é a mediocrização do
debate público. A maioria dos temas importantes da vida pública não se encaixa
na lógica do tudo ou nada, e só ao pequeno mundo político interessa ir contra
ou a favor de alguma coisa apenas porque ajuda ou atrapalha o governo. Há, em
regra, boas razões a favor e contra qualquer política relevante. Há ajustes a
fazer e gente diferente a ser escutada. É uma perfeita bobagem tratar essas
coisas como religião. Havia, pasmem, prós e contras no tema do voto impresso,
tanto quanto há na ideia da renda básica de cidadania. A polarização doentia
expulsa a sutileza e a atenção a efeitos adversos de qualquer decisão. E de
quebra torna boa parte da imprensa acrítica, ao confundir senso crítico com a
adoção de uma agenda política, que em geral se resume a variações sem fim dos
mesmos xingamentos.
A polarização obsessiva tenciona as
instituições, mas é essencialmente um tema da cultura política de nossas
democracias. Vivemos em paz, mas é a estética da guerra que parece dar o tom de
nosso mundo político. Daí o interesse renovado pela obra de Carl Schmitt. Suas
construções sombrias, feitas nos anos difíceis que assistiram ao fim da
República de Weimar, parecem pairar sobre a política atual. A ideia de que a
vida política “é a vida essencial”, a descrença na suavidade e nas abstrações
da democracia liberal. E a partir daí a ideia de que é a inimizade, e não o
diálogo, que define o sentido da política. Nada das palavras doces de Joe Biden
sobre converter inimigos em adversários. O elemento natural da política é a
relação amigo-inimigo. Nos definimos, como comunidade política, precisamente
sabendo quem é nosso “outro”, e o limite disso tudo é a guerra, não o direito.
“Há uma cultura que joga pelo ralo valores
da tradição liberal”
A democracia liberal, nessa visão, com seu
respeito ao pluralismo, direitos individuais e toda a parafernália de freios e
contrapesos, se torna algo como uma fantasia. É evidente que não estamos nesse
ponto, entre outras razões porque não estamos na Alemanha dos anos 30. Mas há
nuvens no horizonte. Andamos namorando com uma cultura que joga pelo ralo
valores importantes da tradição liberal.
Meio século depois da adesão de Schmitt ao
nazismo, Norberto Bobbio fazia uma conferência em Milão sobre a Mitezza. A serenidade
ou “moderação” como a virtude desejável na democracia. Bobbio era o sábio
europeu. Ao menos eu o via assim em minha juventude. Havia passado por tudo,
pelo fascismo, pela reconstrução, e ninguém fez mais do que ele pela cultura da
democracia, naquele quase fim de século. Seu argumento, depois transformado em
livro, prefaciava um tempo em que não há mais tiroteios pelas ruas, mas os
modos da guerra, seus jeitos e sua intolerância, pareciam sobreviver. E isso
não era bom.
Daí sua pregação algo utópica sobre a
Mitezza. A virtude das pessoas simples que não desejam o poder pelo poder. A
virtude horizontal, das pessoas que se miram na altura dos olhos, como iguais
em legitimidade e direitos. A virtude “fraca”, diz Bobbio, por definição
“impolítica”, novamente contrastando com Schmitt, nos lembrando que a política
não é tudo, que ela tem limites e que o poder não pertence aos homens, mas ao
direito. E, por fim, uma virtude estética: a suavidade ao invés da arrogância.
A Mitezza não exclui a crítica, o contraditório, mas aprecia dizer as coisas no
subjuntivo, como um dia escutei de Richard Sennett, oferecendo espaço para a
aproximação com o outro. Não como o inimigo que me define, mas como a
possibilidade de um encontro sempre renovado.
Andamos longe disso, e nada indica que o
suave liberalismo de Bobbio, no ambiente turvo de nossas democracias
polarizadas, vai vencer a sombra implacável de Carl Schmitt. De qualquer modo,
não trato de uma batalha de curto prazo. Um certo cansaço da gritaria já começa
a se fazer sentir. Escuto vozes falando em moderação e bom senso. A infração a
direitos, praticada por instituições de Estado, começa a gerar algum
desconforto. Cada um pode escolher como agir, e fazer alguma diferença. De todo
modo as lições da história estão aí, ao nosso dispor, e não tenho dúvidas de
que, devagar, vamos aprendendo.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754
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