O lento caminho entre o dever no papel e o direito na prática
Carlos Marchi
O taxista Wilson Roberto dos Santos acreditou que o Sistema Único de Saúde (SUS) funcionava bem. Há três anos, parou de pagar o plano de saúde que manteve por 22 anos. Há seis semanas, sentiu-se mal quando dirigia. Estacionou num hospital da Penha, zona leste de São Paulo, e foi ao pronto-socorro. Gostou do atendimento. Depois de dez horas no hospital, saiu com a pressão em ordem e a recomendação para consultar um cardiologista do SUS.
Foi marcar consulta na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa, em Cangaíba, zona leste, e descobriu que antes tinha de tirar uma carteira. Tirou. Esperou quatro horas até o computador voltar a funcionar para agendar a consulta com o cardiologista para 30 dias depois, no Hospital São Paulo, zona sul. No dia, chegou pontual, às 7h30; foi atendido às 9. O médico pediu um cateterismo. Teve de retornar à UBS em Cangaíba para marcar o exame. Recebeu um papelzinho com a anotação: volte à UBS em dezembro para saber a data. “Até lá, eu morro”, desola-se Wilson.
O caso de Wilson é um um retrato trágico da falta de atendimento de saúde para moradores das periferias das metrópoles. Mas os números da saúde antes e depois do SUS apontam na direção contrária. Antes de 1988, quem não tinha carteira assinada não era atendido nos hospitais conveniados e filantrópicos, lembra Carlos Mosconi (PMDB-MG), relator da Subcomissão de Saúde da Constituinte.
No âmbito do atendimento universal previsto pelo SUS, a mortalidade infantil caiu pela metade entre 1990 e 2005. No Nordeste, em 1990, morriam 87,3 crianças em cada mil nascidas vivas até os 5 anos; em 2005, eram 38,9. No País, morriam 53,7 e agora morrem 28,7 - 46% a menos.
Várias razões contribuíram para isso, mas a principal, aponta a socióloga Elizabeth Barros, consultora do Ipea, foi a disseminação, pelo SUS, dos serviços de atendimento pré-natal e atenção básica para a infância.
No Nordeste, onde a rede de saúde tem uma presença privada reduzida, o SUS teve de expandir mais a sua capacidade, diz Elizabeth. Uma solução simples - a disseminação da fórmula do soro caseiro - reduziu drasticamente as mortes de crianças por diarréia.
Mas o fator mais importante, assegura a consultora, foi o espírito de ampliação de serviços estimulado pelo conceito do “dever do Estado”, incluído na Carta. “A saúde entrou na agenda do Estado”, diz. Estudiosa do setor há quase 30 anos, ela garante: “O SUS fez diferença - e muita.” Ajudou, por exemplo, a melhorar a expectativa de vida do brasileiro, de 66,9 anos, em 1991, para 72,1, em 2005, melhoria mais expressiva no Nordeste, onde, em média, a população vivia até 62,8 anos em 1991 e em 2005 passou a viver até os 69.
Nesse processo, diz Elizabeth, mudou o perfil da atenção da saúde. Desde os primeiros anos após a Constituição, seguindo outra norma inaugurada por ela - a descentralização -, municípios e Estados passaram a assumir papel preponderante, substituindo o governo federal. Em 1990, a União participava com 72,7% do financiamento da saúde, os Estados, com 15,4%, e os municípios, com 11,8%. Em 2005, a União respondia por 49,9%; os Estados, por 23,1%; e os municípios, por 27%. De 1992 a 2005, surgiram no Brasil 27.388 estabelecimentos de saúde; 23.887 deles eram municipais.
As transferências do Ministério da Saúde para Estados e municípios crescem sem parar desde 1996. Naquele ano, os repasses foram de R$ 400 milhões para Estados e R$ 2,9 bilhões para municípios, diz o Ipea; em 2005, os Estados receberam R$ 9 bilhões e os municípios, R$ 14,8 bilhões.
A idéia de um atendimento de saúde “universalista, gratuito, equânime e descentralizado”, almejado na Constituinte pelos setores de esquerda, ainda enfrenta muitos obstáculos, mas está no caminho certo, mostram os números. O principal problema ainda é o financiamento do sistema, insuficiente para consertar deficiências seculares.
A primeira saída para garantir recursos para o setor foi a criação da CPMF, extinta este ano. Agora, as esperanças de um financiamento sólido estão centradas na Emenda Constitucional 29, de 2002, que destina ao SUS, anualmente, a verba federal do exercício anterior mais o porcentual de variação do Produto Interno Bruto (PIB); Estados ficam obrigados a aplicar 12% da receita tributária e municípios, 15%. Mas a regulamentação da Emenda 29 se arrasta lentamente no Congresso.
DIREITO DE SABER
Outro dever que o Estado brasileiro luta para cumprir, também sem completo êxito até aqui, é o de banir o analfabetismo. No início dos anos 1990, 80% da população entre 7 e 14 anos freqüentava o ensino fundamental; hoje, 97% dela está matriculada nas escolas. Como corolário dessa melhoria, lembra Paulo Corbucci, pesquisador do Ipea, houve forte expansão do ensino médio - no início dos anos 1990, 18% dos meninos de 15 a 17 anos estavam matriculados; hoje, são quase 50%. Mas existem gargalos: 82% dos jovens de 15 a 17 anos freqüentam a escola, mas 34% deles ainda estão retidos no ensino fundamental.
O dever imposto pela Constituição encaixou-se no compromisso das Metas do Milênio, resultado de um grande acordo global costurado pela Organização das Nações Unidas, que cobra a conclusão do ensino fundamental por todos os alunos. O Brasil peca nisso. Conseguiu chegar à quase universalidade de matrícula, mas com um percalço insanável: pouco mais que 50% concluem o curso. “É pouco factível que um país com condições sociais precárias queira ter uma educação de Primeiro Mundo. As coisas não são assim”, diz Corbucci. Para melhorar seus números na educação o Brasil precisa romper o círculo vicioso da miséria, afirma.
Há outros pecados. Duas décadas depois da Constituição Cidadã, estão fora da escola 17% dos jovens entre 15 e 17 anos, 66% dos entre 18 e 24 anos e 83% dos homens entre 25 e 29 anos. Nas duas últimas faixas, esclarecem estudos do Ipea, há uma clara opção dos jovens por desistir da escola, premidos pela necessidade de buscar trabalho.
“Gradualmente, a Constituição conduz a sociedade a cumprir os deveres”, resigna-se o constituinte Delfim Netto, que não se alinhava exatamente entre os defensores dos direitos sociais, mas hoje reconhece que eles melhoraram a sociedade. “Não se definiu um sistema de financiamento para os deveres porque os economistas da Constituinte tinham horror a vinculações orçamentárias”, replica Mosconi. “A Constituição criou os deveres, mas não definiu como eles seriam cumpridos”, diz Jarbas Passarinho, constituinte pelo PDS. “O excesso de liberalidades sociais atrapalhou o crescimento do País”, complementa Marcondes Gadelha (PFL-PB).
A distribuição do bolo tributário na Constituição transferiu recursos para Estados e municípios, mas não distribuiu obrigações na mesma proporção, adverte o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Isso custou a criação de contribuições para compensar a perda”, afirma, explicando a criação da CPMF. Delfim conta ter proposto, à época, que a questão tributária fosse tratada pela legislação comum: “O vínculo federalista no Brasil é histórico. Nossas revoluções sempre tiveram origem num problema fiscal.”
Tantos deveres para o Estado nasceram da utopia socialista que permeava a Constituinte. Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator-geral do texto, acha que, de alguma forma, o desenvolvimento brasileiro foi comprometido, mas relativiza: “Não se pode esquecer o momento histórico. Nela estavam cassados, banidos, guerrilheiros, revanchistas, os quais contribuíram para o detalhismo exagerado nas relações de trabalho e no papel do Estado na economia.”
A esquerda patrocinou os deveres, mas não designou fontes de recursos. Ainda hoje, muitos sustentam que a utopia dos deveres é factível: “Os deveres do Estado não são incompatíveis com a realidade brasileira. Podem ser, isso sim, incompatíveis com os administradores brasileiros”, diz o deputado Roberto Freire (PCB-PE).
“Para a esquerda, o bom era o Estado. Sempre sugeria coisas inexeqüíveis. O Centrão propunha no outro extremo”, lembra Fernando Henrique. “Realmente acreditávamos que a sociedade caminhava para o socialismo”, diz Freire. “Eles se achavam portadores do futuro”, ironiza Delfim.
Carlos Marchi
O taxista Wilson Roberto dos Santos acreditou que o Sistema Único de Saúde (SUS) funcionava bem. Há três anos, parou de pagar o plano de saúde que manteve por 22 anos. Há seis semanas, sentiu-se mal quando dirigia. Estacionou num hospital da Penha, zona leste de São Paulo, e foi ao pronto-socorro. Gostou do atendimento. Depois de dez horas no hospital, saiu com a pressão em ordem e a recomendação para consultar um cardiologista do SUS.
Foi marcar consulta na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa, em Cangaíba, zona leste, e descobriu que antes tinha de tirar uma carteira. Tirou. Esperou quatro horas até o computador voltar a funcionar para agendar a consulta com o cardiologista para 30 dias depois, no Hospital São Paulo, zona sul. No dia, chegou pontual, às 7h30; foi atendido às 9. O médico pediu um cateterismo. Teve de retornar à UBS em Cangaíba para marcar o exame. Recebeu um papelzinho com a anotação: volte à UBS em dezembro para saber a data. “Até lá, eu morro”, desola-se Wilson.
O caso de Wilson é um um retrato trágico da falta de atendimento de saúde para moradores das periferias das metrópoles. Mas os números da saúde antes e depois do SUS apontam na direção contrária. Antes de 1988, quem não tinha carteira assinada não era atendido nos hospitais conveniados e filantrópicos, lembra Carlos Mosconi (PMDB-MG), relator da Subcomissão de Saúde da Constituinte.
No âmbito do atendimento universal previsto pelo SUS, a mortalidade infantil caiu pela metade entre 1990 e 2005. No Nordeste, em 1990, morriam 87,3 crianças em cada mil nascidas vivas até os 5 anos; em 2005, eram 38,9. No País, morriam 53,7 e agora morrem 28,7 - 46% a menos.
Várias razões contribuíram para isso, mas a principal, aponta a socióloga Elizabeth Barros, consultora do Ipea, foi a disseminação, pelo SUS, dos serviços de atendimento pré-natal e atenção básica para a infância.
No Nordeste, onde a rede de saúde tem uma presença privada reduzida, o SUS teve de expandir mais a sua capacidade, diz Elizabeth. Uma solução simples - a disseminação da fórmula do soro caseiro - reduziu drasticamente as mortes de crianças por diarréia.
Mas o fator mais importante, assegura a consultora, foi o espírito de ampliação de serviços estimulado pelo conceito do “dever do Estado”, incluído na Carta. “A saúde entrou na agenda do Estado”, diz. Estudiosa do setor há quase 30 anos, ela garante: “O SUS fez diferença - e muita.” Ajudou, por exemplo, a melhorar a expectativa de vida do brasileiro, de 66,9 anos, em 1991, para 72,1, em 2005, melhoria mais expressiva no Nordeste, onde, em média, a população vivia até 62,8 anos em 1991 e em 2005 passou a viver até os 69.
Nesse processo, diz Elizabeth, mudou o perfil da atenção da saúde. Desde os primeiros anos após a Constituição, seguindo outra norma inaugurada por ela - a descentralização -, municípios e Estados passaram a assumir papel preponderante, substituindo o governo federal. Em 1990, a União participava com 72,7% do financiamento da saúde, os Estados, com 15,4%, e os municípios, com 11,8%. Em 2005, a União respondia por 49,9%; os Estados, por 23,1%; e os municípios, por 27%. De 1992 a 2005, surgiram no Brasil 27.388 estabelecimentos de saúde; 23.887 deles eram municipais.
As transferências do Ministério da Saúde para Estados e municípios crescem sem parar desde 1996. Naquele ano, os repasses foram de R$ 400 milhões para Estados e R$ 2,9 bilhões para municípios, diz o Ipea; em 2005, os Estados receberam R$ 9 bilhões e os municípios, R$ 14,8 bilhões.
A idéia de um atendimento de saúde “universalista, gratuito, equânime e descentralizado”, almejado na Constituinte pelos setores de esquerda, ainda enfrenta muitos obstáculos, mas está no caminho certo, mostram os números. O principal problema ainda é o financiamento do sistema, insuficiente para consertar deficiências seculares.
A primeira saída para garantir recursos para o setor foi a criação da CPMF, extinta este ano. Agora, as esperanças de um financiamento sólido estão centradas na Emenda Constitucional 29, de 2002, que destina ao SUS, anualmente, a verba federal do exercício anterior mais o porcentual de variação do Produto Interno Bruto (PIB); Estados ficam obrigados a aplicar 12% da receita tributária e municípios, 15%. Mas a regulamentação da Emenda 29 se arrasta lentamente no Congresso.
DIREITO DE SABER
Outro dever que o Estado brasileiro luta para cumprir, também sem completo êxito até aqui, é o de banir o analfabetismo. No início dos anos 1990, 80% da população entre 7 e 14 anos freqüentava o ensino fundamental; hoje, 97% dela está matriculada nas escolas. Como corolário dessa melhoria, lembra Paulo Corbucci, pesquisador do Ipea, houve forte expansão do ensino médio - no início dos anos 1990, 18% dos meninos de 15 a 17 anos estavam matriculados; hoje, são quase 50%. Mas existem gargalos: 82% dos jovens de 15 a 17 anos freqüentam a escola, mas 34% deles ainda estão retidos no ensino fundamental.
O dever imposto pela Constituição encaixou-se no compromisso das Metas do Milênio, resultado de um grande acordo global costurado pela Organização das Nações Unidas, que cobra a conclusão do ensino fundamental por todos os alunos. O Brasil peca nisso. Conseguiu chegar à quase universalidade de matrícula, mas com um percalço insanável: pouco mais que 50% concluem o curso. “É pouco factível que um país com condições sociais precárias queira ter uma educação de Primeiro Mundo. As coisas não são assim”, diz Corbucci. Para melhorar seus números na educação o Brasil precisa romper o círculo vicioso da miséria, afirma.
Há outros pecados. Duas décadas depois da Constituição Cidadã, estão fora da escola 17% dos jovens entre 15 e 17 anos, 66% dos entre 18 e 24 anos e 83% dos homens entre 25 e 29 anos. Nas duas últimas faixas, esclarecem estudos do Ipea, há uma clara opção dos jovens por desistir da escola, premidos pela necessidade de buscar trabalho.
“Gradualmente, a Constituição conduz a sociedade a cumprir os deveres”, resigna-se o constituinte Delfim Netto, que não se alinhava exatamente entre os defensores dos direitos sociais, mas hoje reconhece que eles melhoraram a sociedade. “Não se definiu um sistema de financiamento para os deveres porque os economistas da Constituinte tinham horror a vinculações orçamentárias”, replica Mosconi. “A Constituição criou os deveres, mas não definiu como eles seriam cumpridos”, diz Jarbas Passarinho, constituinte pelo PDS. “O excesso de liberalidades sociais atrapalhou o crescimento do País”, complementa Marcondes Gadelha (PFL-PB).
A distribuição do bolo tributário na Constituição transferiu recursos para Estados e municípios, mas não distribuiu obrigações na mesma proporção, adverte o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Isso custou a criação de contribuições para compensar a perda”, afirma, explicando a criação da CPMF. Delfim conta ter proposto, à época, que a questão tributária fosse tratada pela legislação comum: “O vínculo federalista no Brasil é histórico. Nossas revoluções sempre tiveram origem num problema fiscal.”
Tantos deveres para o Estado nasceram da utopia socialista que permeava a Constituinte. Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator-geral do texto, acha que, de alguma forma, o desenvolvimento brasileiro foi comprometido, mas relativiza: “Não se pode esquecer o momento histórico. Nela estavam cassados, banidos, guerrilheiros, revanchistas, os quais contribuíram para o detalhismo exagerado nas relações de trabalho e no papel do Estado na economia.”
A esquerda patrocinou os deveres, mas não designou fontes de recursos. Ainda hoje, muitos sustentam que a utopia dos deveres é factível: “Os deveres do Estado não são incompatíveis com a realidade brasileira. Podem ser, isso sim, incompatíveis com os administradores brasileiros”, diz o deputado Roberto Freire (PCB-PE).
“Para a esquerda, o bom era o Estado. Sempre sugeria coisas inexeqüíveis. O Centrão propunha no outro extremo”, lembra Fernando Henrique. “Realmente acreditávamos que a sociedade caminhava para o socialismo”, diz Freire. “Eles se achavam portadores do futuro”, ironiza Delfim.
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